O que aprendi em quatro dias num barco da Greenpeace

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Viagens

O que aprendi em quatro dias num barco da Greenpeace

Uma crónica sobre a vida a bordo do Arctic Sunrise.

Um visitante em Sevilha. Até os avôs ficam sentimentais. Todas as fotos cedidas pelo autor.

"Bom dia, são sete e meia!". É com este toque de alvorada que abro os olhos e sou saudado por um olho de um peixe, uma estante com alguns livros e alguns autocolantes que uma parede exibe como se fossem condecorações no seu uniforme de madeira. Tenho de confessar que, apesar de serem sete e meia (sempre acreditei que acordar a esta hora devia ser proibido por alguma convenção internacional), sentia-me um pouco emocionado. Um dos autocolantes lembrou-me o nome do barco onde estava a acordar: "Arctic Sunrise".

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É verdade, quando me deram a oportunidade de ir para um barco da Greenpeace, passei a noite às voltas na cama. Será que vão obrigar os meus músculos subdesenvolvidos e desajeitados, por culpa dos quais chumbei a educação física na preparatória, a puxar cordas grossas e a mover engrenagens duríssimas? Será que vou acabar como "O Anjo Exterminador" de Buñuel, preso numa pequena sala com muitas pessoas durante demasiado tempo? E como vou resistir aos enjoos sem fim, sem nenhum refúgio ou conforto a não ser o do maior balde que encontrar?

A minha imaginação torturava-me com todas estas perguntas mas, ao mesmo tempo, a curiosidade apoderava-se dos meus pensamentos e juntos começámos a babar-nos. Como seria o exército de marinheiros hippies e experientes que eu imaginava? Como é que estes rebeldes cabeludos suportavam a rígida disciplina de um barco? E onde é que o romantismo que se vive nos navios da Greenpeace acaba por perder-se?

A Batcave. Está cheia de artefactos e brinquedos e é aqui que se preparam os planos mais engenhosos.

Lembrava-me de tudo isto enquanto afastava a manta da cama - cuja idade só pode ser determinada através do teste de carbono-14 - e tentava descer do beliche com os pés e não com a cabeça. Depois perdi-me no labirinto de escadas muito íngremes e portas muito estreitas do navio. Não foi a última vez, na verdade, passei a maior parte da viagem perdido. Ia contra todas as portas que cruzava e acho que nem no fim da minha viagem cheguei a descobrir os caminhos mais curtos e com menos obstáculos para ir de um lado para o outro.

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Durante o meu deambular fiquei surpreendido porque, estivesse ou não gente por ali, a maioria das luzes estavam acesas. Na verdade, alguns dos interruptores estavam "bloqueados" para que não se pudessem apagar. Que grandes ambientalistas me saíram estes! Das poucas coisas que sei sobre a ética ambiental é que devemos fechar a torneira e apagar as luzes quando não se estão a utilizar. Mas assim que cheguei à sala de refeições, onde um grande grupo de marinheiros tomava o pequeno-almoço, Thuleka, uma marinheira sul africana, disse-me que o barco gera eletricidade constantemente e aquela que não é usada perde-se, por isso não faz mal deixar as luzes acesas.

No espaço de refeições a variedade de personagens era surpreendente. À parte de dois ou três cabeludos, estavam meninas muito sensíveis que mal tinham 20 anos, um lobo do mar com pele morena e áspera, uns quantos espanhóis e uma colecção de caras aleatórias vindas das mais diversas partes do Mundo. A maior parte usava roupa de trabalho rota e camisas muito velhas. À medida que me fui informando, aprendi que os navios da Greenpeace são frequentemente compostos por três tipos de tripulantes: marinheiros, voluntários e responsáveis pelas campanhas. Os voluntários são, geralmente, jovens que vêm de todas as partes do Planeta e o seu papel pode ser de activista, marinheiro raso, ou ambos. O grupo das campanhas, por sua vez, decide as actividades que o barco fará para lograr o sucesso dos objectivos que tenham nesse momento.

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Durante a hora das limpezas, Julio o responsável das campanhas, transforma-se no Capitão Esfregona.

Depois do pequeno-almoço, às oito da manhã, começa o caos pelos corredores. Marinheiros selvagens vão e vêm com esfregonas e panos e o cheiro a vinagre para desinfectar as sanitas inunda o ar. É a hora das limpezas. Apercebi-me de que há mais pessoas a bordo do que tarefas para serem realizadas. A lista onde cada um escolhe o que quer limpar enche-se rapidamente. Que maneira mais fácil de alguém se esquivar da limpeza! Mas eu não podia cair nas garras da desonestidade, então responsabilizei-me por estar sempre pronto à hora certa.

Meia hora depois começa o dia de trabalho. Apresso-me para ver o que estão a fazer os marinheiros. Uma jovem rapariga enrola umas cordas grossas à volta do braço. Chama-se Mariona, é a enfermeira do barco e também activista, ela explica-me que há sempre trabalhos de manutenção para serem feitos: ferrugem para ser lixada, sal que deve ser limpo, cordas para arrumar, cobertas para serem pintadas. "É o trabalho diário de um barco", diz ela enquanto domina a corda com mais facilidade do que eu domino a minha caneta. "Se não tens de fazer trabalho de campanhas, tens de cuidar constantemente o barco para que esteja em boas condições".

Martti o "Viking" dirigindo-se às tropas.

Depois conheço a Hsuan, uma taiwanesa de 23 anos que está a ajudar o "garbologist" ("lixólogo"), uma posição de extrema importância. Enquanto comprime o conteúdo dos contentores da reciclagem com o seu peso pluma, ela explica-me que existem três regras básicas de gestão de resíduos: subir a bordo o menor número possível de embalagens, lavar e limpar muito bem todos os frascos e pacotes e prensá-los ao máximo. O ter de limpá-los não é trivial: o barco tem de viajar com esse lixo durante vários dias ou semanas, e este pode germinar ecossistemas que não são do agrado da Greenpeace. "Na última viagem houve uma praga daquelas moscas pequenas", diz ela. "Pusemos essas fitas em que as moscas ficam presas, mas por ser um barco tão estreito acabaram por ficar colados mais tripulantes do que moscas. Foi nojento".

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Ao meio-dia é hora do almoço. Já estão preparadas cinco ou seis bandejas de comida suculenta na sala de refeições, todas vegetarianas excepto uma, de carne. E que pratos, meu Zeus! Todos obra e graça de Willy, um roqueiro Filipino que corta cenouras ao som de Rage Against the Machine, AC/DC e outras bombas sónicas. "Antes trabalhava em barcos de passageiros", conta, "mas era muito mais aborrecido, porque não podia ouvir música". Esclarece-me que entrou na Greenpeace mais como activista do que como marinheiro. Um activista filipino! A ideia que eu tinha dos países do sudeste asiático é que estão mais preocupados em comprar todos os carros que possam e quanto mais caro melhor para puderem esquecer a pobreza a que estavam votados até há bem pouco tempo. Mas eis aqui uma mente iluminada, várias décadas à frente dos seus compatriotas! "Comecei a ficar interessado pelo meio ambiente por culpa das bandas filipinas que as minhas irmãs mais velhas me faziam ouvir nos anos 80: Joey Ayala, Noel Cabangon ou Asin. As suas letras ajudaram-me a perceber a importância do meio ambiente e, assim, acabei na Greenpeace".

Na parte da tarde um grupo de pessoas reúne-se na sala de refeições. Estão a preparar uma acção de denúncia por causa da poluição industrial no estuário de Huelva. Olho para os marinheiros rebeldes a planear as manobras no mapa, eles, que seguramente seriam contra a vida militar! E, num raro momento de luz, compreendo tudo: estes espíritos rebeldes obedecem às ordens por confiança e não por hierarquia. Perseguem um objectivo comum, que abraçaram livremente e, confiar na experiência dos companheiros é fundamental para alcançar esse objectivo. É assim um barco da Greenpeace: uma guerrilha de inconformistas, pacíficos apesar de guerrilheiros e ordeiros apesar de inconformistas.

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Partimos às duas da tarde. O estuário de Huelva é um lugar horrível: primeiro um estádio de futebol e, logo a seguir, uma longa fila de fábricas de produtos químicos, refinarias, depósitos de gás e outras porcarias do mesmo estilo que ajudaram a convertê-lo num lugar imundo. "É o estuário mais contaminado por metais pesados no Mundo", explica Julio, enquanto vai fotografando cada torre e cada chaminé e me conta que tipo de poluição ambiental (sob a forma de resíduos tóxicos) e social (na forma de corrupção) estas produzem. Lá em baixo, as lanchas apitam, os activistas sacam os seus cartazes e um drone grava uma operação mais longa e mais complicada do que aquela que depois vai aparecer na televisão.

Jantámos às seis da tarde. Pouco depois deixámos o estuário e avançámos para o mar alto. Aqui, o navio começa a saltar alegremente sobre as ondas, agora percebo o porquê de lhe chamarem "The Washing Machine" e "A Cafeteira". "Não te preocupes, é normal", diz-me o Erick, um marinheiro holandês, ao ver-me tão pálido. "Durante os meus 15 anos como marinheiro por todo o Mundo, nunca estive num barco que saltasse como este". Que consolo! A sensação é horrível e o mal-estar de pensar que não posso suplicar a nenhum condutor para travar, ou que a situação não tem um fim à vista ainda me causa mais sofrimento. O vai e vem afecta cada detalhe da vida quotidiana: beber água, por exemplo, converte-se num delicado exercício de equilíbrio entre fluxos. A única saída é esquecer tudo aquilo que querias fazer e concentrares-te apenas em não ficar enjoado. Das várias tácticas que tentei, dormir era a única satisfatória. Tomei um comprimido para os enjoos. Honestamente não sei se me ajudou a aliviar a má disposição, mas, certamente, ajudou-me a entrar num sono profundo.

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"Rrrrrrrrrrrrrrr". Quando o efeito do comprimido passou sofri com o rugido do motor do barco a todo o gás. Os meus ouvidos tiveram de se submeter a uns ruídos horríveis! Pode alguém habituar-se a algo assim durante tantos dias no mar? O motor, um monstro de dois andares de fogo, tubos, alavancas, indicadores ilegíveis e incontáveis dispositivos, está no centro do barco e ao seu redor estão situados uns quantos camarotes e a única barreira que os separa é um corredor estreito e duas paredes muito finas.

Pamela, o monstro de fogo que faz de motor.

Às seis da manhã desisti e fui para o convés. O enjoo já tinha passado, mas houve uma ligeira sensação de atordoamento e desconexão com a realidade, como uma espécie de ressaca de uma droga desconhecida. Com os olhos entreabertos vi que navegávamos em direcção a Sevilha por Guadalquivir. É aí que vai terminar a minha viagem, o barco ficará cheio de visitantes aos quais lhes será explicada a campanha e à noite vou levar os marinheiros para beber um gin tónico "consagrado" pelas virgens e os Cristos de Garlochi.

Mas agora, enquanto vejo o nascer do sol pela primeira vez, penso no dia de ontem. Realmente não aconteceu nada de extraordinário: não fomos abordados pelo exército russo, nem passámos três meses na prisão como os Arctic30, nem a Marinha atacou as nossas lanchas como em 2014. Foi um dia de trabalho normal, em que levámos a cabo uma pequena acção de protesto e documentámos a imundície do estuário de Huelva.

E o que é que ficou dentro de mim depois destes quatro dias no barco da Greenpeace? Penso em várias coisas: a determinação destas pessoas para construir uma estrada onde só existem incógnitas, a admiração por uma organização que é capaz de fornecer-lhes as ferramentas e o tempo necessário para o fazer e ter vivido, finalmente, uma aventura fora de uma sala de cinema. Ah, e mais dois quilos, por culpa da comida do Willy.