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cinema

Filmes: Mudar de vida

A vida e obra de José Mário Branco.

“Ir para a rua de cravo na mão a horas certas" para festejar o quê? "Foi por isto que lutámos?", pergunta. E tal como virou costas às comemorações, há 50 anos atrás recusou também o fogo da guerra colonial, fugindo para Paris em 1963, inconformado com o regime fascista, não fosse o seu nome a cor da paz. Anos antes fora preso pela PIDE por ser membro do PCP e participar nas manifestações estudantis da crise académica. Nos seis meses em que esteve detido, com 19 anos de idade, sofreu a tortura do sono, que ainda hoje o atormenta. Mas o que nunca o deixou dormir descansado foi o sentimento de revolta pelo sistema que nos assolava. Voltando à questão do exílio em França, que nem por um instante o afastou de Portugal, foi lá que continuou a lutar por Portugal. Empunhou cantigas como arma e tocou a liberdade presa nas cordas da guitarra. Assim se tornou fiel amante da música e companheiro do teatro e do cinema. Regressou a Portugal depois da Revolução com a mala cheia de sonhos e esperança, e um punhado vontades no bolso, que “nunca se chegaram a realizar”. Viveu intensamente o P.R.E.C. e fundou o Grupo de Acção Cultural que fez ouvir a sua voz em centenas de espectáculos e em Ser Solidário, sempre À Margem de certa maneira, dois dos seus álbuns. Desde então, até hoje, nunca deixou de fazer música. Este documentário cataloga todos estes momentos em 90 minutos de conversas, imagens, concertos, ensaios e testemunhos analíticos de gente que lhe é próxima. Se quisermos, podemos dividi-lo em duas partes: uma primeira mais biográfica e que se debruça sobre o seu activismo político e a situação portuguesa do pré e pós 25 de Abril. E uma segunda, que retrata o papel das canções na sua vida, o seu processo criativo enquanto cantautor e as parcerias que realizou com variadíssimas referências da música nacional como Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Fausto e até mesmo Chullage e Camané. Foi assim que cantou a música popular, chorou o fado, e foi samplado no hip hop, sempre com o propósito de lutar por um país mais justo e fazer valer as suas convicções. "Mudar de vida", realizado por Nelson Guerreiro e Pedro Fidalgo, demorou quase 10 anos a ser rodado, com a ajuda de um crowdfunding. Passados 40 anos já não estamos orgulhosamente sós mas vamos rastejando e rodeados de vampiros dissimulados. Já não há Guerra, mas há quem nos queira colonizar. Não há ditador, mas há tiques de Estado Novo. Não há exilados, mas há futuros amordaçados. Não há censura, mas há pudor nas vozes caladas que são muito, mas muito piores do que aquelas que gritam.

Este filme acende-nos a memória do Zeca de viola a cantar utopias saudosistas e pergunta-nos onde é que pára aquele Abril de vontades mil. Não sei onde está o vosso, mas o meu está nos olhos da PIDE, na ponta do Lápis Azul, nas grades de Caxias e do Tarrafal, nas minas da Guiné e em todos os direitos que hoje nos tentam roubar outra vez.

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” mas José Mário Branco resiste, de luto, por um sonho lindo de um país adormecido que precisa de acordar.