FYI.

This story is over 5 years old.

Noticias

O Brasil está na rua e não é só em São Paulo

A manifestação que parou o centro do Rio de Janeiro.

“Vem! Vem! Vem para a rua, vem contra o aumento!” Foram estes os gritos de ordem utilizados pelos mais de dois mil manifestantes cariocas que protestaram, mais uma vez, contra o novo aumento no preço do passe de autocarro. Cantavam também em coro: “Acabou o amor. Isso aqui vai virar a Turquia!” A manifestação que paralisou o centro da cidade conseguiu reunir grupos diferentes: estudantes das escolas secundárias do ensino público, universitários com afiliações partidárias, punks, anarquistas, comunistas e a população em geral. Até mesmo alguns idosos e crianças. A maior parte parecia apoiar o protesto, alguns aplaudiam e sorriam, mas também ouvi comentários do tipo “não sei como permitem esta confusão na cidade". Foi possível, até, ouvir este aparte de um senhor de fato e gravata, dirigindo-se a um polícia: “Se fosse na altura da revolução, com os militares a pôr ordem no país, já teriam acabado com esta libertinagem.” O que ele chama revolução, os manifestantes (e a história) apelidam de ditadura militar. Onde aquele senhor vê libertinagem, aqueles jovens vêem democracia. E foi de forma democrática, sim, que aqueles manifestantes decidiram avançar para além da Cinelândia, tal como era previsto. Quando se chegou ao local já se ouvia dizer que o passeio devia continuar. No momento em que os altifalantes perguntaram ao resto da multidão se queriam seguir até à Assembleia Legislativa do Rio, a resposta foi um unânime "sim". A Polícia Militar interrompeu, de imediato, o trânsito para que todos aqueles jovens, que empunhavam cartazes e cantavam “e quem não pula, quer aumento!”, pudessem passar. Embora o governador Sérgio Cabral tenha dito em entrevistas recentes que existem interesses partidários na origem destas manifestações, não foi isso que vi. Vários grupos demonstraram ser capazes de dividir o mesmo espaço numa alegria tipicamente carioca, ao mesmo tempo que se ouvia nos altifalantes "não há liderança!". Estavam lá bandeiras de alguns partidos, sim, mas eram poucas e encontravam-se ao lado de estudantes apartidários, dos representantes do movimento indígena e dos jovens das favelas que se manifestavam contra os despejos feitos nos seus bairros, graças às obras para o Mundial. De uma forma geral, as pessoas pareciam ter a consciência de que o protesto não era apenas contra o aumento de 20 cêntimos de real no valor do passe. Quando se conversava com os manifestantes, percebia-se que a sua motivação ia para além disso. Há um descontentamento generalizado com o governo do Rio de Janeiro, com a autoridade de Eduardo Paes, com o estado das empresas de transportes públicos, com a falta de autocarros. Os manifestantes tinham diferentes razões para ali estar. Não se viram, no entanto, cariocas felizes por receberem o Mundial. Outra característica importante: os protestos adquiriram uma dimensão nacional. Diversas faixas e gritos de ordem apoiavam os manifestantes que foram presos em São Paulo. Tudo corria bem até um dado momento. Após chegarmos à Alerj, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, a multidão cercou o prédio. Muitos jovens subiram às estátuas e as escadarias foram completamente invadidas. Palavras de ordem e músicas contra o Eduardo Paes, o Sérgio Cabral e a Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor) pareciam querer terminar de forma pacífica a tarde. Foi decidido, contudo, que a manifestação continuaria em direcção à Central do Brasil. Os tumultos começaram pelo caminho, antes de se chegar de novo à Avenida Presidente Vargas. As pessoas que ficaram mais para trás, perto da polícia, começaram a correr, e quem estava à frente começou a fugir sem saber porquê. Passado algum tempo as coisas acalmaram-se. Constou que a polícia começou a empurrar os manifestantes, outros disseram que não aconteceu nada. A verdade é que o ambiente começou a ficar pesado, os sacos de lixo que estavam nos passeios foram queimados e, quando os polícias viram isso, começaram a agredir quem se encontrava por perto. Quando se espalhou a notícia de que os manifestantes tinham sido agredidos, a situação ficou fora de controlo. Até então, a multidão vaiava quando um dos seus tinha uma atitude mais agressiva. Dava para perceber que a maioria das pessoas não queria confrontos mas, depois dos primeiros sacos de lixo queimados e das primeiras agressões policiais, o tumulto começou. Mais sacos de lixo foram queimados, explodiram bombas de gás por todos os lados, as paragens de autocarro foram apedrejadas e dispararam-se balas de borracha em todas as direcções. Nessa altura perdi o contacto com os outros fotógrafos que estavam comigo. As pessoas começaram a correr e, antes de entender o que estava a acontecer, ouvi um barulho diferente e percebi que uma bala de borracha tinha acabado de atingir o chão a um palmo do meu pé esquerdo. Corri e ouvi mais duas balas a atingir uma paragem de autocarro, a menos de um metro de mim. Foi aí que percebi: eu era o alvo! Atravessei a avenida a correr e quase ia sendo atropelado por um taxista, também ele assustado com a situação. Corria com a câmara fotográfica bem ao alto para tentar não ser atropelado ou alvejado, mas parece que os polícias e os taxistas não têm muita consideração pela imprensa. A maior parte da multidão foi-se embora enquanto os jovens desapareceram pelas ruas laterais, no momento em que as bombas explodiram. Voltaram para partir mais paragens e pilhar os autocarros que passavam por lá. Bombas, tiros e pedradas repetiram-se de tempos em tempos. Um carro da polícia estava parado na pista central e foi logo apedrejado. Grande parte da multidão foi-se embora. A polícia de choque cercou a câmara municipal enquanto as pessoas eram revistadas com as armas apontadas ao peito. Fui fazer uma entrevista com manifestantes que viram estas acções mas um deles enfrentou-me e acusou-me de ser um polícia infiltrado. Respondi-lhe que, para mim, ele também poderia ser um agente. Após esse mal-estar momentâneo, um grupo de estudantes apareceu para me defender. “Sabes como é, há agentes infiltrados entre nós. É preciso ter cuidado.” Depois disso, pouco aconteceu, mas está tudo ainda em aberto. A promessa dos que foram às ruas é a seguinte: se o passe não baixar, o Rio vai parar. Com a internet, o que acontece aqui faz também parte dos protestos nacionais. As conquistas dos que se manifestam numa cidade são comemoradas pelos que estão a protestar numa outra. E mais do que a luta contra o aumento do passe e pela melhoria dos transportes públicos, este parece ser um apelo por uma consciencialização política. Após anos de marasmo, uma cultura de protesto começa a fortalecer-se no Brasil. Aos poucos, a luta pelos direitos do consumidor começa a ser a luta pelos direitos do cidadão. Veremos.