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Tecnologia

Videojogos: GTA V

Uma enciclopédia niilista da modernidade.

GTA V
Rockstar North
X-box 360 / Playstation 3
10/10 Para os leigos como eu, o mundo dos videojogos é relativamente aborrecido por ser um bocado como uma Disneylândia pueril da masculinidade. Para nós, os jogos dividem-se em três grandes grupos: o ninja-ciborgue-comando do espaço que mata aberrações mutantes; o simulador de não-sei-quê em que fazes de Mourinho, Júlio César ou do vereador Sá Fernandes ou ainda o enorme grupo de joguitos onde és uma merda qualquer querida aos pulos e trambolhões com outras merdas queridas. Nenhuma me seduz particularmente, nunca sequer joguei aquele joguinho onde tens de levar um avatar teu a fazer xixi e a pagar o imposto automóvel nas finanças da Avenida General Roçadas às oito da manhã. Ainda assim passei as últimas semanas em frente à televisão a jogar Grand Theft Auto V até ficar estúpido e adoentado. Ao contrário de na vida real no GTA podes fazer quase tudo o que quiseres, e melhor, podes fazer quase tudo o que quiseres n’América, e melhor ainda, quando acabas de fazer o que te deu na real gana podes entrar num carrão onde está a dar Germs e bazas com a bófia toda atrás de ti. Podes também lixar o carro todo a saltar de um penhasco no deserto e matar mais umas dezenas, depois morres e depois começa tudo outra vez. Pelo caminho cometes incontáveis atrocidades num acumular obsceno de comportamentos antissociais e psicopatológicos encenados num mundo de cinismo e niilismo total onde o único sentimento genuíno é o tédio e a raiva ante uma existência de plástico sem céu nem norte. A promessa é simples e apelativa: na bancarrota existencial, espiritual e moral do capitalismo tardio, a última hipótese de redenção está em tornares-te no maior filho da puta de todos os tempos. O homem do século XXI é um hamster amaricado, domesticado pelo capitalismo, pela troika, pelos gadgets, pelos comentadores de esquerda e de direita, pelos estilos de vida saudáveis e pela gestão new age das emoções e das relações. Já que não somos realmente capazes de dar um par de chapadas na puta da porteira, fazer uma tanga da pele do cãozinho dela, roubar a mota do vizinho e fazer metade da segunda circular a ouvir Suicidal Tendencies aos tiros a todos os cabrões que nos obriguem a mudar de faixa então joguemos GTA V e conquistemos, assim espero, a paz de espírito que nos permita ir amanhã cedo para o call-center aguardar ansiosamente o momento alto do dia em que dá para ver a alça do soutien da tipa mais ou menos gira que lá trabalha. Detalhes: o jogo regressa a Los Angeles (aqui rebaptizada Los Santos) e aos seus arredores pitorescos. Em vez de um, há três personagens, o que torna a história mais complexa e permite aos criadores do jogo deixar os imperativos morais para os dois primeiros personagens, um ex-assaltante de bancos aburguesado e um gangsta de South Central, e oferecer-nos o melhor personagem de todos os jogos da série: Trevor Phillips, o deus da destruição, o príncipe da metanfetanima, o quinto cavaleiro do apocalipse que passa metade do jogo em cuecas só porque quando se tem a presença e o carisma de um gigante se pode andar o tempo que quiser só de cuecas. As missões são bastante melhores do que no GTA IV e giram à volta de vários assaltos a bancos e instituições nos quais se pode ir trocando entre os vários personagens, cada um com a sua função. Pela primeira vez a tensão dramática da narrativa do jogo é boa suficiente para assumir o primeiro plano, levando alguns personagens a dizer que os jogos de vídeo são o próximo cinema. Na verdade esta sofisticação dos diálogos e das cenas deve-se à televisão e à alegada “idade de ouro” das suas séries mais habitadas por cosmogonias complexas do que pelas personagens individuais da história do cinema. Esta mudança das referências do jogo dos clássicos do cinema criminal para uma sociologia informal da sociedade acaba portanto por ser uma aposta interessante. Há ainda a possibilidade de jogar online com outros psicopatas de armário de todo o mundo, mas à data da escrita desta crítica a plataforma ainda corre com problemas portanto não foi possível entrar a fundo nesse décimo círculo do inferno. Gostava de ter algo de melhor a dizer sobre a vida e algo de pior a dizer sobre o GTA V mas não tenho. O documento histórico e social mais relevante de 2013 é um jogo de vídeo. O detalhe dado a todos os diálogos, aos programas de televisão e de rádio, às lojas e aos arquétipos sociais fazem do GTA V uma enciclopédia niilista da modernidade com todas as contradições e ultimatos morais que isso implica. Uma sociedade que produz algo assim, e um algo assim tão perfeito, é uma sociedade doente; e pode muito bem ser que o GTA V seja o canto do cisne da modernidade e que das ruinas e da terra devastada surja uma nova humanidade, conduzida por Trevor Phillips, o profeta maldito que veio das roulottes para nos mostrar a luz no coração das trevas.