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Novas Oportunidades, o maior engodo de sempre da educação nacional

O que uma pessoa não faz por um salário.

12.º ano nas Novas Oportunidades: não consegue dizer o nome de um continente. Há coisas que acontecem em Portugal que são de uma gravidade absoluta, mas que passam despercebidas no meio da enxurrada de notícias como a conferência do Jorge Jesus (uma sumidade, no que diz respeito ao analfabetismo) ou a ignorância absoluta da Cátia da Casa dos Segredos — coisas que fazem a malta rir e que põem as pessoas a acharem que ainda detêm algum tipo de superioridade intelectual em relação aos outros. Coisinhas leves que nos fazem alhear dos nossos reais problemas. Somos, enquanto país, praticamente, imbatíveis nessa actividade.

Trabalhei, durante três anos, a recibos verdes (claro!) para o programa Novas Oportunidades. Recém licenciado em História, resignei-me ao facto de não poder viver das minhas bandas, ou da música que vou passando aqui e ali — ou dos artigos que vou escrevendo. Tinha de arranjar um trabalho e rápido. E esse trabalho foi nas Novas Oportunidades. Teoricamente, parecia uma coisa, mas, como em quase tudo, a teoria é uma coisa e a prática outra. Na teoria tratava-se de dar o 6.º, 9.º ou 12.º anos a pessoas que, por uma razão ou outra, haviam desistido da escola no passado. Gente que, tendo estado uma vida inteira a fazer meias ou sapatos numa fábrica, havia, supostamente, desenvolvido um rol de competências em várias áreas. Claro que, na prática, as únicas competências que possuíam eram as de fazer sapatos e meias. Nada contra, mas uma pessoa não ganha competências noutras áreas fazendo só isso. O processo era mais ou menos o seguinte: o padre anunciava, durante a missa de domingo, que o programa Novas Oportunidades chegaria em breve à aldeia (sim, andávamos em modo itinerante por vários salões gelados das freguesias do concelho). Um falso técnico-diagnóstico deslocava-se à dita freguesia e tentava enfiar toda a gente no programa. Não interessava sequer se conseguiam escrever duas frases seguidas com nexo. O centro onde trabalhava necessitava de certificar quase duas mil pessoas por ano — isso é que era importante. Se elas tinham competências para tal? Dos milhares de pessoas que me passaram pelas mãos, posso afirmar que talvez umas dez. A pessoa iniciava o programa escrevendo a história da sua vida. Assisti a casos de pessoas que a escreveram numa só folha. Essa folha chegava para contar toda a sua história de vida. A média rondava umas dez folhas para 40 anos de vida. O pior nem era isso: era a quantidade de calinadas e erros gramaticais que eram enfiados para lá. O nosso trabalho principal era corrigir e reescrever, um pouco à imagem da personagem principal do 1984 do Orwell. Mas pelo menos os filofaxes que ele recebia não tinham calinadas atrozes, assassinatos sumários da língua. Foi a partir daí que comecei a perder a fé pelo ser humano. Aquelas dez folhas pareciam todas iguais. Até posso descrever um adulto modelo da minha zona: nasce numa freguesia do concelho, anda na escola primária dessa freguesia onde tira a 4.ª classe; mais tarde vai estudar para a cidade onde completa, no máximo, o 6.º ano, ou não chega a acabar o 9.º; depois inicia o seu percurso profissional como operário numa fábrica ou num pequeno negócio — aqui começa já a entrar a componente familiar, até porque muitas das vezes, é na oficina de um tio ou na fábrica de um padrinho que esse percurso é iniciado; por norma, casam-se com a primeira namorada que arranjam, passam a lua-de-mel em Tenerife ou Palma de Maiorca, têm filhos, compram um carro e constroem uma casa num terreno doado pelo pai da mulher (ou do marido). Após toda esta excitação de vida, sucede-se uma série de banalidades como “separo o lixo, preocupo-me com o ambiente”, “tenho hábitos de leitura” (95 por cento das pessoas nunca tinha, arrisco-me a dizer, lido um livro inteiro), “sei meia dúzia de coisas sobre a história de Portugal”, “lugares bonitos do concelho” ou “25 de Abril”. Claro que toda esta informação de assaz importância era impecavelmente plagiada da internet. Acham isto escandaloso? Deviam ver as apresentações em inglês. Sim, havia dez aulas de inglês para todos. Tentem aprender turco em dez lições e depois vejam que tal se saem. A pessoa iniciava a apresentação do seu dossier junto de um pretenso júri (à partida já viciado para deixar passar toda a gente), com uma apresentação patética, na qual se notava escandalosamente que de inglês não pescava nada. Por vezes, tudo aquilo era tão constrangedor que esse suposto júri mandava passar essa parte à frente. As apresentações eram efectivamente um espectáculo digno de ser visto. Claro que uma pessoa desligava passados cinco minutos, ocupando a cabeça com a lista de compras para o jantar, ou com a táctica que se ia usar no próximo jogo de Football Manager. E sim, tive de assistir a todas as apresentações. Presenciei sessões de júri em que os adultos não sabiam os tempos verbais mais elementares (o “eu fez” era bastante comum), outros que nem sequer sabiam falar, outros que afirmavam a pés juntos que o Portugal dos Pequenitos foi durante séculos uma colónia para anões, outros que até diziam que tirar aquele grau de escolaridade era apenas uma vingança pessoal, já que não lhes servia de nada. Outros chegavam ao cúmulo de admitir que tinham sido os filhos a escrever o dossier por eles. Todos, SEM excepção, ficaram com o certificado de 9.º ou 12.º ano. Todos estes dossiers (com uma média de 40, 60 páginas) foram também, na sua totalidade, reescritos por nós, de forma a anular todos os erros, colocar todas as vírgulas e etc. Éramos denominados por “técnicos de formação”. Carne fresca saída da universidade pronta a fazer qualquer coisa por alguns euros. Todos nós sabíamos que aquilo era tremendamente errado mas ninguém falava sobre o assunto entre si. Mais 1984. Trabalhei lá durante três anos, meramente por dinheiro, claro, mas chegou o dia em que a porta teve de ser batida com estrondo. Um gajo pode engolir muita merda, mas até para as tartes do IKEA há limites. O facto do Passos Coelhos ter terminado com este programa foi, sem dúvida, a medida mais acertada — talvez a única — do seu governo onde parece que também pulula um ou outro ministro que tirou o seu curso superior ao estilo das Novas Oportunidades.