FYI.

This story is over 5 years old.

Noticias

As Muitas Narrativas da Primavera Árabe

Após três anos do dia em que milhares de egípcios se juntaram aos protestos que acabaram virando uma revolução, vários competidores têm lutado não só por poder, mas também para definir o significado da revolução, e fazendo isso, definir o futuro do...

Novembro passado, oficiais do governo egípcio realizaram uma cerimônia na Praça Tahrir, Cairo, revelando um monumento em homenagem aos mártires. O monumento era simples, mas sua significância não era nem um pouco. Ele consistia de um pedestal de pedra numa base circular no centro da praça. Uma banda militar se apresentou. Durante a breve cerimônia, o primeiro-ministro interino, Hazem el-Bebçawi, disse que o monumento era dedicado “aos mártires das revoluções de 25 de janeiro e 30 de junho”.

Publicidade

A semana passada marcou o aniversário de três anos do dia em que milhares de egípcios se juntaram aos protestos que acabaram virando uma revolução. Depois de 18 dias, a revolta derrubou o então presidente Hosni Mubarak e seus comparsas do poder. Mais de 800 pessoas foram mortas, a maioria nos quatro dias de luta nas ruas, que paralisaram temporariamente o estado policial. Desde então, os vários competidores pelo poder no Egito – a Irmandade Muçulmana, a elite liberal, os militares e os revolucionários – têm lutado não só por poder, mas também para definir o significado da revolução, e com isso, definir a direção do futuro do país. Em 2014, a pergunta permanece: a revolução no Egito acabou ou continua?

Na praça Tahrir, naquele último dia de novembro, o levantamento do memorial deixou no ar a mesma pergunta, incorporando duas maneiras de ver o legado dos levantes árabes hoje. Para o governo egípcio e seus simpatizantes, o memorial sinalizava o triunfo da revolução e a incorporação oficial de seus objetivos na ideologia do estado. No entanto, para os críticos, isso foi uma tentativa cínica de reescrever a história: um monumento para os manifestantes massacrados por um governo apoiado pelos mesmos militares e policiais responsáveis por essas mortes.

Na noite após a inauguração do monumento, manifestantes tomaram a praça, arrancaram pedaços de pedra e picharam o monumento. Na visão dos revolucionários, a morte dos mártires ainda é uma ferida aberta e a causa pela qual eles morreram, o fim do estado autoritário, ainda precisa ser alcançada.

Publicidade

Por volta da meia-noite, alguns manifestantes ainda permaneciam no monumento agora esfacelado, gritando com empolgação. Foi a primeira vez que o acampamento revolucionário, aqueles que carregam a tocha do levante de 2011 contra a ditadura de Hosni Mubarak, fizeram sentir sua presença desde 3 de julho de 2013, quando o golpe militar depôs Mohamed Morsi, o presidente filiado à Irmandade Muçulmana. Numa das entradas da praça, uma nova faixa declarava: “Apenas revolucionários. Entrada proibida para Irmandade, militares e remanescentes [do antigo regime]”.

Um manifestante chamado Mohamed Sayed, 32 anos, estava parado na base circular do monumento com algumas dezenas de outras pessoas. Perguntei o que eles estavam dizendo ao desfigurar o santuário. “As pessoas querem que o exército e a polícia parem de matar pessoas”, ele disse, “e eles continuam matando pessoas”.

O ataque à estátua foi mais uma batalha numa longa luta pelo legado do levante de 2011. Desde que Mubarak foi deposto em fevereiro de 2011, e na esteira de toda grande onda de agitação, várias instituições da autoridade egípcia tentaram cimentar a aparência de que o levante tinha terminado, que o fim do jogo político estava em andamento. Hoje, a administração, atualmente em poder dos militares, está tentando a mesma estratégia, reescrevendo a constituição e planejando novas eleições para a primavera, enquanto, simultaneamente, consolida o podem dos militares e dos estabelecimentos de segurança, além de reprimir intensamente os islâmicos e os ativistas associados à revolução de janeiro.

Publicidade

“Tem havido uma batalha constante sobre a história e sobre a narrativa”, disse o cineasta Omar Robert Hamilton sobre o monumento. “E isso está mais descarado que nunca, e vindo no estilo sem tato, sem charme e arrogante que é tão familiar ao poder egípcio.”

Claro, a batalha para controlar a narrativa tem sido, às vezes, simplesmente uma batalha física. No dia 19 de novembro de 2011, segundo Omar, ele estava em seu escritório no centro do Cairo, quando ficou sabendo que a polícia estava tentando dispersar um protesto das famílias das pessoas mortas e feridas no levante de janeiro na Praça Tahrir. Ele pegou sua câmera e correu até a praça. Chegando lá, os manifestantes estavam balançando um carro abandonado da polícia, tentando virá-lo. Em algumas horas, o veículo estava em chamas. A polícia chegou com força total, desencadeando uma batalha nas ruas entre manifestantes atirando pedras e a polícia disparando gás lacrimogêneo e balas. “Foi muito violento, mas também muito empolgante. Essa foi a maior demonstração de forma e união desde os 18 dias [da revolução de janeiro]”, lembra Omar. “O governo usava uniformes e as pessoas tinham pedras. Isso era útil, porque deixava muito claro o que estava acontecendo.”

A organização de mídia de Omar, Mosireen, produziu versões costuradas da batalha, incluindo o vídeo icônico de um policial da tropa de choque arrastando um corpo inerte pelo pavimento e o jogando numa pilha de lixo.

As águas da política egípcia têm se tornado cada vez mais turvas desde os dias do conflito na Mohamed Mahmoud, com islâmicos, os autoproclamados revolucionários e simpatizantes dos militares reivindicando o manto da revolução para si. A repressão do governo militar aos islâmicos deixou mais de mil mortos em julho e agosto, mas os islâmicos e a oposição não islâmica estão irremediavelmente alienados um do outro. Para muitos revolucionários não islâmicos, não está claro como os “mártires” da violência do último verão se encaixam na narrativa da revolução.

Na terça-feira, o dia do aniversário, uma multidão de jovens manifestantes realizou um comício estridente na Rua Mohamed Mahmoud, tocando tambores, pulando e gritando “Abaixo a ditadura militar!” Do outro lado da barricada, na própria Tahrir, simpatizantes dos militares realizavam uma celebração para o General Abdel-Fattah Sisi, que liderou o golpe contra Morsi e é, aparentemente, a figura mais importante no novo governo. Essa segunda multidão, menor – formada principalmente de homens e mulheres de meia-idade – gritava “Revolução!”, mas também “O povo, a polícia e o exército são uma só mão”. Depois de duas horas, a multidão que protestava contra os militares invadiu a praça, perseguindo os manifestantes pró-Sisi até os limites da Tahrir. A polícia também disparou algumas rodadas de gás lacrimogêneo, numa tentativa meia-boca de dispersar a multidão. Os dois grupos jogaram pedras um no outro por horas, até que o lado pró-militar finalmente recuou em direção ao Nilo.

Por algumas horas, a praça começou a se parecer com o que era durante os primeiros dias de protestos, com camelôs circulando e manifestantes espalhados, incertos de como passar o tempo. Ao anoitecer, telas foram estendidas para exibir a partida de qualificação para a Copa do Mundo entre Egito e Gana, e a multidão parou para assistir. O Egito venceu por um a zero, mas não conseguiu avançar no torneio.