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quadrinhos

HQ do Mundaréu

Histórias de espíritos sem luz ou lanterna fraca da megalópole do crack, rapa e celular pré-pago.

Encruzilhada é o segundo álbum de histórias em quadrinho solo do paulistano crescido na zona leste e formado em Artes Plásticas Marcelo D’Salete, 32. O livro demorou três anos pra ficar pronto e ser lançado agora em julho pela editora Barba Negra, tempo usado por ele pra rabiscar anotações e sair pela capital fotografando tudo e todos por ângulos vários — se você já por acaso passou os olhos pelas páginas da brochura ou leu alguma outra entrevista com o autor, sabe que os enquadramentos e referências cinematográficas (e não o roteiro em si) são a menina linda-linda da obra, composta por cinco histórias de espíritos sem luz ou lanterna fraca que têm em comum o fato de viverem na galopante megalópole do crack, rapa e celular pré-pago. O que se vê muito pela janela, só que desenhado pra quem ainda não entendeu. Não bonitinho, que o mundo é mesmo feio. Acontece nos melhores bairros do Limoeiro.

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VICE: Não vou entrar muito na questão das suas influências cinematográficas, que você já deve estar cansado de responder isso. Mas e escritores, tem algum que você leva em conta na hora de criar suas histórias? Ou músico?
Marcelo D’Salete: Curto muito literatura, embora esteja lendo pouco. Não faz muito tempo eu estava curtindo muito ler a Toni Morrison. Ela é fantástica demais — tem uma escrita forte e trabalha muito com personagens. Acompanhei vários livros dela, principalmente quando fiquei um tempo morando em Brasília. A Toni me ajudou bastante lá [Risos]. Além dela, gosto do Plínio Marcos — as peças dele são ótimas –, mas curto demais um livro de pequenos contos chamado Histórias Das Quebradas do Mundaréu. Esse livro é uma pequena pérola. Cada história tem uma pegada rápida, forte e muito envolvente. Ainda quero fazer HQs baseadas nele.

Você conhece o Ogi?
Ogi… Acho que não.

Ele faz rap e lançou um CD esse ano [ouça aqui]. Lembrei porque, além de você ter mencionado o Plínio Marcos [o disco abre com um trecho de fala do Plinião], suas HQs são tipo a música dele, só que ao contrário. Enquanto seus quadrinhos são construídos sem praticamente nenhuma palavra, as músicas dele criam histórias em quadrinhos na sua cabeça só que sem imagens. Enfim…
Bacana! Vou procurar. A imagem é mesmo o principal das minhas HQs, e é claro que estão contando uma história, mas aposto bastante na forma como ela pode trazer novas informações e ambiente para os personagens. Em geral minhas histórias mudam razoavelmente do roteiro para a criação de imagens. Gosto de aproveitar as ideias que surgem daí, por isso evito roteiros muito fechados. São ideias que surgem na execução, no contato direto com a forma e o desenho.

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De onde vêm essas histórias, aliás? Vi que uma delas foi baseada numa notícia real de um homem espancado no estacionamento de um supermercado de Osasco.
Elas surgem de caminhos diferentes. A do título, Encruzilhada, veio dessa notícia. Vi a fala do cara que sofreu essa atrocidade. Ele ficou muito mal. Você pode colocar de novo uns dentes perdidos, mas recuperar a dignidade como pessoa não é tão fácil assim. Isso fica entalado na garganta. Mas, enfim, a HQ tem uma relação indireta com esse fato. Não é apenas baseada em fatos reais, é uma recriação a partir de alguns elementos da realidade. As histórias partem da junção de fatores às vezes distantes. É uma mistura de informações: coisas que vejo, leio, escuto… Esses dias vi uma moradora de rua que carregava um boneco como se fosse um filho. Vi a cena, anotei no caderno e posso usá-la em outro momento. Por que ela teria esse contato tão forte com aquele boneco? Talvez pensasse num filho que teve, o que nunca teve. São fatos que marcam e se tornam motivo para uma história.

Aquelas viagens de quando se está no ônibus, vê-se alguém pela janela ou sentado na nossa frente e começa-se a imaginar de onde veio, pra onde vai, o que fez ou o que faz.
É mais ou menos por aí. A questão é que geralmente é preciso mais tempo pra fechar uma ideia — semanas, às vezes. Quando tenho uma história com começo, meio e fim, começo a finalizar, mas algumas vezes as ideias demoram para ‘encaixar’. Uma história que partiu de um relato sobre amigos foi aquela do roubo do celular. É uma que curto muito, e surgiu num instante, muito rápida. Só precisei detalhar os fatos e construir melhor os personagens depois.

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É a sua favorita?
Difícil dizer. Todas têm suas qualidades. Mas talvez sim. É que aos poucos fui percebendo que há algo ali sobre coisas importantes na vida contemporânea, como o celular, as marcas, o carro, os filmes. Enfim, vi que o livro, além de falar da cidade, é algo sobre os nossos ‘objetos de desejo’. Podemos dizer que são coisas indissociáveis do nosso modo de vida, e também da forma como construímos nossa realidade, medida sempre por objetos de valor. Sim, tem bastante desse lance de marcas pelas páginas, tanto nas roupas quanto em fachadas.

Aliás, a história rola numa São Paulo pré-Cidade Limpa pelo jeito…
[Risos] Sim, os anúncios diminuíram. Mas ainda estão lá, nos vigiando. E os pixos? Você criou ou são de observações reais? Os pixos foram coletados de fotos e revistas de grafitti. A pixação é uma característica muito forte de SP. É uma forma de manifestação que dialoga, ou melhor, briga por espaço com a propaganda. Também é uma maneira de tomar conta da cidade, do jeito mais brutal que isso possa ser. Mas é uma briga desigual. A propaganda é o domínio do marketing, da grana; o pixo é uma manifestação mais individual e violenta, uma maneira de usurpar a cidade para fins outros, de grupos que percebem a cidade de outro ponto de vista. E como tentei me apropriar de signos que marcam a cidade, a pixação acabou dando uma visão desse lado mais soturno do centro velho de São Paulo.

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Só voltando às marcas. Você usa vários logotipos reais (Coca-Cola, Carrefour, Ford, adidas, Sony, Motorola), mas na loja de revenda do celular, por exemplo — um dos ganchos principais — a loja chama JMN. Ou seja, não existe. Por quê?
Uso as marcas não apenas para citá-las. Elas acabam virando signos que ajudam a identificar personagens e locais, por isso evito escrever os nomes de marcas. Mas me aproprio principalmente do design delas. No caso das lojas, não queria identificá-las como reais. A ideia de usar aquelas marcas é porque elas não dependem de um local específico e, claro, veiculam um comportamento, um modo de ser, um desejo. Constrói um personagem.

Bom, você também é pesquisador de arte afro-brasileira. Como também amigo do Kiko Dinucci [o D'Salete fez uma animação pra uma das músicas do álbum Metá Metá], que além de músico já dirigiu um documentário sobre exus [veja aqui], tem alguma coisa em Encruzilhada da encruzilhada de encontro dos espíritos de luzes de intensidades diferentes? 
[Risos] Exu é uma das entidades mais interessantes do Candomblé. É o caminho, o encontro, desencontro, enfim, uma energia em transformação — e a encruzilhada é a sua principal metáfora. O uso do nome Encruzilhada tem uma referência a ele no sentido de ser esse local de indefinição, instabilidade, imprevisibilidade. Mutabilidade… Enfim, os personagens se encontram, e esse momento é de transformação para todos… É por aí. Ao mesmo tempo é quase como uma energia que cria milhares de possibilidades, positivas ou não. Mas não sou de nenhuma religião, só tenho interesse em religiões afro. É muito rico o universo que existe lá.

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OK. Existe o tal gênero favela movies. Você se enquadraria no gênero HQs do mundaréu?
No cinema existe um movimento que parece mais homogêneo, mas nos quadrinhos creio que ainda não. Talvez esteja surgindo algo… Mas, em todo o caso, as histórias surgiram não exatamente pelo tema, mas por me parecerem as mais interessantes pra contar. E isso é uma escolha que surge a partir da sua vivência e experiência.

Beleza. Pra terminar, de quem é o celular que dá nome a uma das histórias?
[Risos] Não é o meu!

Você nunca tentou ligar? Inventou do nada?
Foi baseado em parte do meu telefone. Mas espero que não tentem ligar [Risos]. Eu vou tentar. Liguei antes, mas deu caixa. [Risos] Beleza. Depois você me fala, então.

Mais informações sobre Encruzilhada e o D'Salete aqui.