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As Pessoas da Costa do Marfim Estão Sendo Presas Sem Motivo

As forças armadas reagiram com prisões em massa dos partidários de Gbagbo.

A destituição de Laurent Gbagbo de sua posição como presidente da Costa do Marfim ano retrasado marcou uma nova era nesse país que, anteriormente, foi dilacerado por conflitos internos. Tendo oficialmente perdido a eleição de 2010 pra Alassan Ouattara — e depois se recusando a ceder a posição — Gbagbo foi acusado de assumir efetivamente o papel de tirano. O país estava mergulhado numa guerra civil, com violência e abusos contra os direitos humanos de civis inocentes sendo perpetrados por ambos os lados. Esperava-se que a prisão do déspota, em maio de 2011, marcasse o final de um capítulo muito sangrento da história da Costa do Marfim, mas, pra muitos, a situação ficou pior do que nunca.

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Enquanto militantes leais a Gbagbo continuam a realizar ataques aos militares do presidente Ouattara, as forças armadas reagiram com prisões em massa dos partidários de Gbagbo. A Costa do Marfim se encontra presa num perigoso limbo no qual o governo precisa ter permissão pra se defender sem ameaçar a liberdade de inocentes — um equilíbrio que está longe de ser alcançado. Com os militares cada vez mais confiando em baixar o sarrafo pra esmagar a ameaça das milícias, um relatório recente do Human Rights Watch (HRW) sugere que as ações das forças de Ouattara estão perpetuando esse ciclo de violência aparentemente interminável ao invés de sufocá-lo.

O relatório também fala de campos de detenção improvisados por todo o país pra deter os partidários de Gbagbo e das condições horrendas nas quais os prisioneiros são mantidos. Conversei com Matt Wells do HRW sobre as descobertas da organização e sobre o futuro do país.

Laurent Gbagbo.

VICE: Oi, Matt! Fale sobre as tentativas dos militares de cercar os partidários de Gbagbo.
Matt Wells: Bom, temos regiões que, antes da violência pós-eleições de 2010, eram grandes concentrações de partidários de um lado ou de outro. A violência também tomou os grupos étnicos, assim, dentro da Costa do Marfim você tem certos grupos dentro de certas regiões que tendem a apoiar partidos e líderes políticos específicos.

Então eles estão apenas tentando silenciar qualquer partidário, basicamente?
Sim, o que vimos em agosto, depois da sequência de ataques contra os militares, foi que eles geralmente respondem cercando os jovens desses grupos étnicos. Regiões que foram pontos de violência contra os pró-Ouattara nos conflitos depois das eleições, se tornaram particularmente alvo. Regiões como Yopougon são há muito tempo bastiões dos partidários de Gbagbo, alojando os homens da milícia que os militares querem eliminar.

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E quanto aos centros de detenção pra onde essas pessoas são levadas?
Eles não são prisões ou centros de detenção oficiais, o que significa que as condições lá são bem precárias. Esses centros são ex-quartéis de polícia e, em alguns casos, campos militares improvisados. Você não tem o tipo de instalações adequadas pra deter as pessoas de forma humana. Aqueles que entrevistamos estavam amontoados em pequenos espaços que se tornam logo superlotados, e muitos precisam dormir do lado de fora, na grama. Eles são vigiados por soldados que andam pelo meio deles durante a noite, chutando ou batendo nas pessoas com as coronhas de suas Kalashnikovs pra que elas não consigam dormir.

E comida e água?
Eles não recebem nada. As famílias às vezes conseguem passar pequenas quantidades de comida pros guardas, que depois passam pros prisioneiros, mas o resultado é essencialmente passar fome durante a detenção. As pessoas são espancadas rotineiramente com qualquer coisa: punhos, botas, armas, cintos, qualquer coisa que esteja à mão.

As forças de Ouattara.

E nos piores casos?
No campo de Adjamé conversamos com cinco vítimas torturadas que foram sujeitadas a práticas extremamente humilhantes. Um detento descreveu uma sala que todos usavam como banheiro e que acabava inevitavelmente ficando cheia de excrementos. Se os soldados não gostam da maneira como certos indivíduos respondem às perguntas durante o interrogatório, eles podem acabar sendo trancados nessa sala por um tempo indefinido.

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Jesus.
As condições são claramente desumanas e marcam os locais como impróprios ao uso, desobedecendo a leis internacionais e da Costa do Marfim. Esses campos militares não deviam ser habitados por civis e os militares não podiam estar no comando do interrogatório dessas pessoas. Isso é responsabilidade de polícia judicial, e não dos militares, que estão no comando dessa situação desde o começo.

Quando os capturados são eventualmente libertados, eles dão alguma razão pra prisão?
Na maioria dos casos que documentamos, os presos precisam pagar pra sair. Você pode ficar detido por três semanas e eventualmente eles te dão um telefone pra você ligar pra sua família pedindo pra trazerem uma quantia substancial de dinheiro. Em um dos casos, documentamos um resgate de 150 mil francos CFA, o que, pra muitas dessas pessoas, é muito dinheiro. Em várias ocasiões, essa quantia é arrecadada entre tios, primos… Todo mundo, na verdade. Você precisa contar com muitas pessoas pra sair da detenção.

Você acha que algum desses detentos é realmente uma ameaça? Ou isso é mais um gesto simbólico contra a milícia que atacou os postos militares?
Acho que é uma combinação das duas coisas. Pelas entrevistas que fizemos, ficou claro que algumas das prisões foram realizadas porque os militares acreditavam que aquele homem era, de alguma maneira, ligado aos ataques. Na maioria dos casos, a prova não passa do lugar de residência e do grupo étnico ao qual a pessoa pertence, embora algumas prisões tenham sido feitas em perseguições que se deram logo depois dos ataques, com provas legítimas. Mas, como eu disse, na grande maioria dos casos documentados por nós, não há provas individualizadas pras prisões. Não há nada que ligue especificamente aquele indivíduo ao ataque às bases militares — apenas essas características usadas pra substituir uma aparente ameaça à segurança nacional.

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Alassane Ouattara.

Parece horrível.
Sim, em muitos casos parece apenas um pouco mais que um meio de extorsão, no qual você leva um grande número de pessoas a uma prisão, as deixa em condições horríveis por muitos dias e depois exige um pagamento pra que elas sejam libertadas. Tudo sem nenhum esforço pra questionar as pessoas sobre os ataques. Mas, pra deixar claro, às vezes vimos prisões que parecem mesmo ter sido feitas pela inteligência, e algumas dessas prisões realmente resultaram em acusações de crimes. É importante diferenciar entre os casos nos quais as pessoas aparentam ter sido pegas por razões legítimas e a grande massa que está sendo detida em cercos a algumas regiões apenas com fins de intimidação, assédio e extorsão.

O governo de Ouattara obviamente tem o direito de se defender dessas milícias. Será que isso pode dificultar o controle do excesso de zelo dos militares porque eles estão, em essência, agindo oficialmente pro bem da Costa do Marfim?
Isso torna ainda mais importante que as forças de segurança se concentrem naqueles envolvidos com os ataques. O governo tem o direito e o dever de proteger sua população e responder a esse tipo de ameaça à segurança, mas quando isso vai além da prisão daqueles realmente envolvidos e começa a atacar um segmento da população — homens jovens, particularmente — isso só aumenta a tensão no centro da crise política. Muitos desses jovens estão saindo do lado do governo rumo às milícias linha-dura . Eles estão sendo tratados como criminosos, então vão acabar agindo como tais.

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O governo declarou que é preciso demonstrar solidariedade aos militares por causa dos ataques. Pra mim, isso soa como uma hesitação em mudar a maneira como a questão vem sendo abordada.
A questão é que eles podem ser solidários com os militares sem adotar essas reações drásticas e abusivas que prejudicam a reconciliação e a volta à ordem. A resposta do governo tem sido boa de modo geral. O atual ministro da justiça admitiu que alguns excessos foram cometidos e que os militares se comportaram mal em sua resposta, e o governo prometeu uma investigação das nossas descobertas, que foram similares às descobertas da Anistia Internacional e de uma declaração da ONU relatando prisões arbitrárias em massa.

Parece que muitos dos comandantes militares mantiveram seus postos desde a violência pós-eleição de 2010/2011. Existe uma necessidade de reavaliar o sistema de poder, começando pelo topo?
É uma questão de impunidade que ainda existe nessa organização militar, como você disse, em todas as escalas. O governo e o próprio presidente já prometeram acabar com a impunidade e que ninguém, independente da posição política ou militar, estará acima da lei, mas meses depois da prisão de Gbagbo e de Ouattara no poder, ainda não vimos isso. Ainda precisamos ver prisões das forças pró-Ouattara pelos ataques odiosos às forças republicanas em seu caminho pra prender Gbagbo.

Isso seria uma mensagem direta aos militares que continuam acima da lei. Isso permite que eles continuem a voltar a essas táticas pesadas sem medo das consequências. Enquanto isso continuar, é provável que ainda vejamos esses tipos de abuso sempre que houver qualquer ameaça à segurança. O governo precisa começar a cumprir suas promessas e iniciar os processos.

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Precisa mesmo. Obrigado por falar com a gente, Matt.

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