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O Último Reparador de Máquinas de Escrever de Vila Velha

Perguntei a diversos vizinhos antigos daquele pedaço de Vila Velha, no Espírito Santo, e nenhum deles vive ali há mais tempo que aquele lugar cheio de antepassados dos computadores.

Entrar na oficina de máquinas de escrever do Antônio Fernando Costa é estranho. A impressão é de que a sujeira é intrínseca: teias de aranhas carregadas de poeira em cantos escuros do teto, uma bacia com água quase negra de tanta tinta de máquina de escrever perto da porta da frente, outro canto reservado pros restos de solda envelhecida, e muitas, muitas máquinas de escrever – mais que todas que já vi, somadas– e é um cubículo escuro, com uma mesa do lado de fora, algumas ferramentas num painel na parede e uma lâmpada bem suja que emite mais luz que um sabre jedi. Parece resquício de um passado retrógrado e semi-esquecido, mas depois de uns minutos percebe-se que existe certa ordem no lugar, obedecendo a padrões completamente estranhos. É o que o próprio Antônio quis deixar claro, apontando os cantos e explicando cada um deles.

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Perguntei a diversos vizinhos antigos daquele pedaço de Vila Velha, no Espírito Santo, e nenhum deles vive ali há mais tempo que aquele lugar cheio de antepassados dos computadores. Uma senhora de uns 60 anos chegou a me dizer que se lembra de ter consertado sua máquina Olivetti Lettera 32 na oficina, num tempo em que a avenida em frente dela, a Jerônimo Monteiro, era tão lamacenta que parecia um pântano: "Isso deve ter uns 20 anos".  A cidade se transforma, e ele continua lá. Com 61 anos, Antônio é um cara simpático, que não liga de ficar em frente à imensa placa onde se lê "CONSERTA-SE MÁQUINAS DE ESCREVER E CALCULAR" pomposamente colocada na fachada do seu estabelecimento, e soltar algumas gargalhadas ao ouvir histórias envolvendo altas doses de cerveja e sexo pago – coincidência ou não, a uns 30 passos dali existe um puteiro barato, por aqui apelidados papa-fracassados. Seus amigos parecem ter na cabeça que um cara que conserta máquinas de escrever não tem lá muito serviço, e levam baralhos e dominós para passar o tempo por ali um dia ou outro.

No dia em que fui lá, Antônio está cuidadosamente trocando e soldando um componente interno de uma calculadora da General - eram as melhores do Brasil, antes da empresa fechar, segundo ele - e tem o dom para fazer isso, responder perguntas e dar atenção para a televisão ligada no caminhão dum vendedor de abacaxis. Ele é o típico cara que vive tranquilo sozinho - fora os amigos, só tem Spike, um vira-lata que desce por lá de vez em quando procurando companhia -, não paga aluguel e mora no mesmo lugar a vida toda. Em 1969, aos 20 anos, após terminar seu serviço militar no quartel do 38º Batalhão de Infantaria, o Batalhão Tibúrcio , ele montou sua oficina. Diz que nunca faltou serviço nesses quase 40 anos, mesmo numa época em que haviam oficinas similares em todos os quarteirões. "Naquele período as coisas quebravam menos, também, mas mesmo assim nunca dei conta dos serviços que chegavam."

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Pega uma Olivetti que tinha uma história de existência invejável: preencheu documentos da sede estadual do Banco do Brasil, sentenças no Fórum de Vila Velha, boletins de ocorrência em várias delegacias e finalmente repousou na mesa de um empresário que a procurou por dois anos, pois queria comprá-la de recordação dos tempos que a usou no banco. "Calculando essa trajetória toda aí, ela deve ter uns 81 anos, companheiro. Pense em quantos aparelhos duram isso hoje." Rapidamente, manda outro caso: "Não pense que é só porque as máquinas de escrever são mecânicas que elas duram mais. Essa General 2120 deve ter uns 30 anos, é toda eletrônica e acho que só deu uns dois defeitos até hoje. Durará bastante ainda, com certeza. Antes era mais fácil consertar alguma coisa, compensava… Hoje é tudo praticamente descartável e feito para quebrar, o que é triste, porque muitos gostavam de criar vínculos com seus aparelhos. Quantos computadores você teve nesse período?” Respondo que uns três. "Vê? Os vínculos se foram, aquele apego que transformava pedaços de ferro em amuletos se perdeu."

Pergunto que tipo de gente deixa máquinas de escrever pra consertar.  "Desde empresários ricos a escrivães de delegacias de polícia… São variados, têm jovens também, não só velhos, como você deve tá pensando.” Imagino um submundo de seres com ideologias anti-computadores por aí, no mesmo estilo dos adoradores de vinil haters de mp3. Uns jovens com suéteres sebosos, óculos de armação extra-gigante e um fetiche quase orgástico pelo retrô, levando máquinas para ele, num ritual quase de adoração. Mas o motivo para essa vastidão de público não é somente ideológico, ou integrado a um pensamento nostálgico, mas também funcional e logístico, segundo ele. "Grandes redes de computadores são mais para empresas, pois exigem trocas de uns dois em dois anos e manutenção cara, enquanto as máquinas de escrever são até hoje relativamente baratas e mais duráveis. Tipo, elas não te deixam na mão se você tiver cuidado." Parece ser o tipo de pensamento de um utopista que crê que o ENIAC é a maior inovação do ramo da informática, e ainda vê os PCs como algo proibitivo, coisa de gente da alta ou de grandes empresas, mas não é bem isso. "Máquinas de escrever e computadores são diferentes… pra coisas diferentes. Computadores são ferramentas pra uma cacetada de usos, enquanto as máquinas são apenas aparelhos para tornar a letra de uma pessoa entendível para todos. É uma forma de criar padrões de letras, mais ou menos. Acho que tá aí parte da razão do fato das máquinas de escrever serem quase imortais, parecidas com livros", diz ele, meio viajante, mas entendível.

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Antônio resolve aprofundar um pouco mais uma espécie de Filosofia da Escrita que ele aprimorou nos últimos tempos. "Escrever numa Olivetti ou numa máquina de outra marca qualquer é como escrever a mão, mas com um barulho agradável e numa velocidade maior. O cara que tá escrevendo numa máquina dessas [apontando para uma encostada num canto e precisando de uma pintura] tem que ter a ideia do que escrever organizada diretamente no cérebro, porque errar significa ter que retornar ao início da folha – e tentar ao menos encestar o papel amassado numa lixeira que está atrás [risos]. O mesmo não ocorre num computador, que é como um eterno rascunho." Eu retruco, afinal, só usei máquinas de escrever poucas vezes na vida: "Bom, mas você não acha que essa forma de escrever mais rígida não limita um pouco a criatividade, e tende a fazer o escritor deixar passar pequenos erros?" "Sim, essa é a parte ruim, companheiro, mesmo que aqueles corretivos para máquinas de escrever tenham resolvido o segundo problema. Mas pense em quantos textos incríveis foram escritos nesse esquema das máquinas de escrever. E acho que parte disso se deve a obrigação do escritor ter o texto completamente mentalizado. Me responda uma coisa: você acha que os jornalistas das antigas são melhores que os atuais?". Merda! É… o sacana me ganhou nessa. Claro que pra mim, o fato do jornalismo praticado atualmente estar em declínio se deve a fatores bem mais complexos que uma mudança nas ferramentas de escrita, mas talvez ele tenha alguma razão – menor do que ele pensa, mas alguma razão.

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Se divertindo com meu silêncio de modo triunfante, ele continua sua linha de pensamento. "Então, companheiro… não sou do tipo que odeia computadores. Na verdade até gosto, só não o vejo como a maior invenção da humanidade. Acho que um monte de excessos existe por causa dele, como o excesso de erros e excesso de informações." Decido dar o braço a torcer – sim, isso já tava parecendo uma competição amigável - e defender os computadores ao mesmo tempo: "Computadores se tornaram parte do nosso cérebro, transferimos para eles funções que normalmente só ocorriam na nossa cabeça. Organizar e rascunhar um texto, por exemplo. Dá para escrever de forma completamente não-linear e bagunçada através de um computador, e pra mim isso é bom. Depois é só acertar tudo e editar. Quando abrimos o Word, não apenas escrevemos uma ideia que temos, mas a desenvolvemos durante esse momento". Ele aceita bem o meu adendo, principalmente porque confirma quase tudo que ele havia dito, e parece disposto a terminar o assunto, mas complementa: "Bem… [longa pausa, coçando o queixo e forçando os olhos] Vejo essa situação como um processo parecido com o que ocorreu com a popularização das agendas de celulares. Depois delas, as pessoas simplesmente não conseguem mais gravar números e combinações de telefones. Não sei exatamente o efeito disso, se é bom ou ruim, mas vejo como uma mudança importante. Só acho que é poder demais para um aparelho. Você fica dependente de cargas elétricas, também. Se a bateria de um celular acabar, ou a luz simplesmente cair e interromper um computador, rola um atraso, você fica na mão".

Garante que continua com mais serviço do que pode dar conta, mas vê como vantagem o fato das pessoas terem menos pressa. "Muitos encaram máquinas de escrever quase como obras de arte, acham que preciso de tempo para repara-las. Não é como uma TV velha toda mal sintonizada, precisam de caprichos." O mercado de Antônio diminuiu nos últimos seis anos - "Acho queeee… de uns 100% que atendia antes, hoje atendo 40%". Como vantagem, seus concorrentes desistiram de continuar, entraram em pânico, e o serviço dele está mais valorizado. Segundo ele, sua oficina é a única da Região Metropolitana da capital do Espírito Santo, Vitória. Hoje ele trabalha somente para pagar comida, não tem gastos secundários, algumas viagens de vez em quando pra esfriar a cabeça, talvez. Daí chega uma comitiva: o vendedor de abacaxi, um funcionário de um escritório de contabilidade que levou uma máquina para consertar, Spike, e mais três que não consegui identificar. Mesmo sendo envolvido por um mar de conversas, Antônio ainda arruma tempo pra fazer previsões futuristas. "Sabe, não vou viver para ver isso, mas acho que os computadores acabarão e as máquinas de escrever continuarão. Parece besteira de gente que parou no tempo, mas quem diria que CDs sumiriam e vinis voltariam e se tornariam artigos de luxo? O mesmo está acontecendo com as máquinas já, muito pela raridade, claro. Mas o mercado de compras de peças de reposição está crescendo, e a minha sorte é que tenho toneladas de máquinas aí dentro, com peças de reposição que não são encontradas em nenhum lugar."

Aperto a mão dele, e pela força que ele aplicou, parece que gostou da conversa. Quando já caminho pra ir embora, ele me chama. "Qual é seu nome, mesmo?" Ele pega um pedaço de papel e coloca numa máquina semi-consertada. Por meio segundo ele datilografa freneticamente e me entrega o papel, onde está escrito "Filipe". Conclui, rindo: "Se você guardar o papel, seu nome permanece por séculos. Em bytes não".

TEXTO E FOTO POR FILIPE SIQUEIRA VICE BR