O fado de Króniko é o rap e a rua a sua inspiração

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Música

O fado de Króniko é o rap e a rua a sua inspiração

Não é propriamente um novato, mas é um inovador. Króniko está na linha da frente do trap em Portugal, mas na bagagem carrega quase duas décadas de dedicação total ao hip hop.

Króniko é Don Zoyde que, por sua vez, é o Pedro. Mas só "em part-time", garante. Aos 33 anos, o artista lisboeta conta já com "18 anos de História, 18 anos de Cultura Hip-Hop, 18 anos de Dedicação". Assim, com maiúsculas, para que não restem dúvidas sobre o grau de entrega.

Um ano depois do lançamento do seu primeiro álbum, Retrxpectiva, Krónico abre as portas do seu mundo, revela as suas origens, influências e interesses, a sua inquietude perante a música, a arte e a vida em geral. Entre o Lumiar e Alvalade, bairros onde cresceu, começou pelo breakdance e pelo graffiti. A imersão total na cultura hip hop levou-o depois às rimas, à produção audiovisual, a um percurso feito de trabalho e, lá está "Dedicação".

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Em conversa sincera e esclarecedora, Króniko revela o que o motiva a continuar, explica as novas direcções que quer trilhar e adianta pormenores do seu próximo projecto, Estigma, ainda sem data de lançamento marcada.

VICE: Quem é o Króniko e como é que tem sido o teu percurso na cultura hip hop?

Króniko: O Króniko é o Don Zoyde que, ao mesmo tempo, é em part-time o Pedro. Nascido e criado nos bairros de Lisboa, mais propriamente Lumiar/Alvalade. Em relação à cultura hip hop, tenho o privilégio de ter vivido de perto algumas das suas vertentes. Entrei pela porta do breakdance, tendo sido mais tarde introduzido ao graffiti. Depois, naturalmente, há 18 anos atrás, apareceu o Don Zoyde, com uma paixão e uma vontade gigante de rimar.

A adopção deste alter-ego, Króniko, surge numa fase de transição da minha vida. De 2007 a 2013 trabalhei como Zoyde e essa era foi também marcada pelo meu projecto da LX Cartel Street Videos, que, por sua vez, estava ligado a grandes nomes da cena dessa altura. Lancei perto de 300 videoclips, de Xakal Da Gun, a Prophecy, de Kosmo Da Gun a Né Jah, entre outros.

O Króniko foi o virar da página. Nasce de uma imersão no rap tuga, da necessidade de ter algo que fale por mim, que seja a minha cara e que me represente. É o meu capítulo. Imagina um artista aparecer hoje, com 10 anos de experiência, conhecimento e know-how e rebentar a porta da frente… dá para imaginar o resultado.

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Em Março de 2016 editaste o álbum Retrxpectiva. Achavas, na altura, que o público estava finalmente preparado para esse trabalho?

Vou contar-te um segredo que poucas pessoas sabem. Até uma semana e meia antes do lançamento previsto do álbum, o Retrxpectiva ia ser um projecto de boom bap. Mas, um dia, em conversa com o SP Deville, disse-lhe: "Mano, não vamos fazer boom bap, isto vai ser mesmo trap". E durante mais ou menos uma semana e meia mudei a estrutura toda do album; instrumentais, letras, flows, tudo. Lancei-o em Abril de 2016 e é óbvio que me questionei várias vezes sobre como seria a aceitação, como acho que é normal que aconteça. Se ia bater, ou não…

Mas isso é como tudo na vida e não podemos viver só a pensar no dia de amanhã. Mas é lógico que superou as minhas expectativas e, parecendo que não, estava parado desde 2013 e não lançava nada novo desde essa altura, por isso acaba por ser um cartão de visita. Houve quem não gostasse, mas lá está, os tempos mudam e o rap evolui do dia para a noite. Estamos cá é por quem vibra com esta arte. E sem ser convencido e sem querer engraxar o meu sapato, ainda não ouvi nenhuma música com a mesma sonoridade que a "Pânico", produzida pelo Beatoven… e já passou um ano. [Risos]

Quais são as tuas inspirações e influências?

A minha inspiração vem das ruas. Vem das coisas que eu vivo, daquilo que tu vives e daquilo que aqueles que me rodeiam vivem. Depois existe um pilar que considero fundamental, que se chama casa. Juntando a isso as minhas duas filhas, a minha mulher e os meus irmãos, sinto-me em sintonia para trabalhar. Lembro-me de alguém me dizer que, hoje em dia, não vale a pena escrever sobre a rua. Eu garanto-te que nunca vou deixar de escrever sobre isso. A minha inspiração nasce aí. É o meu fado. Rap é fado.

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Em relação às minhas influências, existiu uma altura em que consumi muito rap americano, mas o rap francês e o italiano têm para mim um sabor especial. Vivi durante quatro meses em Paris, por isso também sou suspeito para falar, uma vez que 80 por cento do que ouço vem de França. Vivi também alguns anos em Inglaterra quando era mais novo e isso deu-me a possibilidade de assistir de perto aos primórdios do grime e do jungle.

O teu próximo disco chama-se Estigma e está em contagem-decrescente para o lançamento. O que é que aí vem?

O próprio nome já diz um pouco sobre o que aí vem. Tentei recriar um filme que passasse pela comédia, o suspense e o thriller, de um modo que quem o ouvisse conseguisse identificar cada momento. É trap, mas acaba por ser uma fusão e uma mistura de vários flavours e vibes. Admito que foi complicado escrever dois álbuns num espaço de um ano. Por isso senti que tinha que voltar para Amesterdão, onde vivi alguns anos, e escrevi grande parte do album lá. Fui para uma cidade que me transmite uma certa nostalgia. Em Lisboa sinto que cresci, mas em Amesterdão sinto que vivi. No cômputo geral, uma vez que o Retrxpectiva foi um cartão de visita, o Estigma é a afirmação do artista.

Revelando um pouco do conteúdo, em termos de produtores, não existe nenhum com mais de 30 anos, logo estamos a falar da nova escola: Beatoven, Prodlem, Holly e Juicy. Como rappers, vou contar com a companhia do Mike El Nite, Landim, Phoenix RDC, Kosmo Da Gun e Duplex, existindo ainda mais algumas surpresas que não vou revelar. Aviso já que cansei-me de dar só "concertos", a partir de hoje vou começar a fazer espectáculos e este álbum reuniu a melhor familia para o fazer. Se forem a algum live act meu, vão levar uma injecção do melhor que se faz em Portugal.

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Uma vez que não és propriamente um "newcomer", qual é a tua opinião sobre a cultura e o movimento hip hop em Portugal?

Infelizmente continua a ser um monopólio e, hoje em dia, parece que só quem tem um agente é que pode vingar na música. Quando se organizam festas ou festivais, os nomes no cartaz são sempre os mesmos. Por isso é que digo que, se não houver dinheiro [por parte do artista] para investir, são poucos os que vingam. Se quisermos chegar às massas, tem que haver dinheiro envolvido e perdem-se grandes valores pelo caminho quando isso acontece.

Houve quem dissesse que não existe espaço para todos, mas, na minha opinião, devia haver. Sinto que as plataformas de informação têm um poder gigante. E aquilo que é partilhado e publicado, pode ditar o próximo prodígio da música, ou não. As pessoas são facilmente influenciadas e aqueles que não vêem o seu trabalho a ser partilhado, por muita qualidade que tenham, são esquecidos. Se não existirem "connects", as coisas não se concretizam.

Achas que o público está pronto para o que estás prestes a editar?

Sinceramente, acho que as pessoas não estão à espera. Mas sinto que os ouvintes estão cada vez mais habituados ao trap e, desse modo, o feedback torna-se muito positivo. Como disse o hip hop tem evoluído do dia para a noite, as pessoas já não estão tão presas ao boom bap. Vou abrir a porta do Jardim Zoológico. [Risos] Não quero falar muito de expectativas, porque quando esperamos muito de algo, muitas das vezes não temos o retorno esperado. Prefiro pensar que, se o feedback for semelhante ao do Retrxpectiva já vai ser super positivo.

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Fora as colaborações, és uma espécie de "One Man Band", ou trabalhas com alguém?

Sou o rapper, o manager, o director, o realizador e o cineasta. Graças a Deus, no ano passado consegui muitos espetáculos devido ao meu esforço e dedicação. Quando sentimos o que fazemos, não existe nada que não se consiga alcançar. Por isso sinto-me orgulhoso por me manter fiel aos meus princípios.

Houve algum concerto que te tenha marcado de um modo especial?

A minha passagem pelo Rolézinho no Copenhagen foi um deles. Foi a primeira vez que actuei com banda e foi uma noite de casa cheia. É um sítio que transmite um certo espírito. O outro foi o Festival do Rimas&Batidas, no Musicbox. É uma sala que nunca virou as costas ao hip hop. Existem mais, mas estes são dois que me ficaram marcados de um modo especial.

És professor no curso de hip hop lançado recentemente pela Restart. Como é que surgiu esta oportunidade?

O Rui Miguel Abreu apresentou à direcção da Restart a possibilidade de existir um curso, ou um workshop, não para ensinar, mas com a intenção de partilhar conhecimento sobre a cultura hip hop. Sempre foi um sonho para mim poder contribuir para a cultura de uma forma mais pedagógica e o convite surgiu inesperadamente. Abracei o projecto sem hesitar, porque, hoje em dia, não podemos fechar nenhuma porta e poder transmitir conhecimento ao lado de pessoas como o Rui Miguel Abreu, Beware Jack, Holly, Sensei D é uma mais valia.

É engraçado que um dia pensei que acabaria a escola e me dedicaria ao rap e, passados tantos anos, estou de volta a uma sala de aulas, mas desta vez do outro lado, como professor. É um orgulho poder, deste modo, fazer parte da nova geração.