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Eu não vivi acima das minhas possibilidades

E estou a pagar uma crise.

Eu, quando era pequenino. Quando eu era pequenino (repetir duas vezes para o efeito Quinta do Bill) sempre me disseram que podia ser o que quisesse, desde que isso me fizesse feliz. Dizer isto a uma criança é abrir-lhe os olhos ao mundo e encorajá-la a procurar, a brincar, a absorver tudo quanto puder, a experimentar um pouco de tudo para, no fim, poder dizer: “É isto que me faz feliz.” No fundo, é incentivá-la a procurar a felicidade e a não se contentar com outra coisa. Como não era uma criança privilegiada — nem os meus pais eram do Sporting, ou me encorajaram a entrar para a JSD, felizmente —, confio que os pais e os educadores e os amigos das outras crianças lhes tenham repetido o mesmo e que, dentro da dimensão pessoal e social de cada um, eles tenham perseguido esse sonho. Criou-se, portanto, uma geração de gente que não foi ensinada a resignar-se, mas sim que persegue a felicidade. Isto hoje pode ser (e será, por certo) facilmente visto como uma ideologia repleta de demagogia e de pragmatismo. Uma doutrina qualquer cujos seguidores duros apelidariam de “sonhadores”. Mas foi por acreditarem que os meus e os teus e os pais dos outros nos fizeram acreditar, e trabalharam o máximo que puderam para criar uma esfera onde isso fosse possível. E foi para isso que estudámos mais, que nos voluntariámos mais, que estagiámos mais, que nos esforçámos e trabalhámos mais. Este artigo está a ser bonito até agora, mas já todos esperam o grande “MAS” — e aqui está ele. Anos de investimento fundamentado nesta única verdade, a procura da felicidade, fizeram, aos olhos das entidades que significam algo e determinam tudo, da geração Y-Z um amontoado de pessoas mimadas e mal-acostumadas, e da geração X um aglomerado de gente frustrada, facilitista e descartável. Ambas interligadas pelo sonho alimentado pela aparente estabilidade da vida em anos passados, para agora serem acusados de terem vivido acima das suas possibilidades, sendo assim a origem suprema da queda prematura do nosso país numa crise iniciada pelos países vizinhos, de quem pelos vistos dependemos para sobreviver. Andamos todos fartos de que apontem dedos. Mas ninguém compra, e portanto não o vendam: não vendam a ideia de que a culpa é dos pais e filhos que acreditaram na felicidade. Não foram eles quem venderam as quotas de produção nacional quando nos juntámos à União Europeia, tornando-nos dependentes de uma balança comercial internacional. Não foram eles que constituíram uma função pública excessiva, às vezes com lugares para os primos dos primos os conduzirem à alfândega num carro de luxo ao fim-de-semana. Não foram eles que se apropriaram de verbas públicas. Não foram eles que apostaram em jogadas de bastidores nos bancos e em contas offshore. E não foram eles quem se reformou aos 40 e 50 anos para receber o triplo ou o quádruplo do que recebem os pensionistas que trabalharam a vida toda, apenas para continuarem a gerir ou administrar empresas a peso de ouro. Mas não, não estamos aqui para isso. Para tal, bastava ligar o Canal Parlamento ou ir até à Assembleia da República, pois nada mais se faz lá, que não apontar o dedo a alguém. Os sonhadores e os pais dos sonhadores, hoje entregues a um estado social em ruínas, imersos num país sem oportunidades, estabilidade ou justiça, e chamados a pagar uma crise em que não se inscreveram com o pão que já não lhes chega inteiro à boca, entregues a um destino que não o deles, foram enganados este tempo todo, e continuam a sê-lo. Quase ninguém é quem queria ser, sem hipotecar uma parte de si. E quem não se sinta um fantoche nas mãos e fios das sombras, entregues às suas vontades e negócios, que retire o dedo do bolso do vizinho. Não há quem aguente ver um noticiário à hora do jantar ou mais um discurso repleto de desculpas e apontares de dedos, de palavras vazias que usam para justificar mais um assalto àquilo que temos e àquilo com que sonhamos. Chega deste alfaiate que insiste em apertar a cintura e o pescoço para remendar o seu melhor fato de gala, apesar de abrir buracos novos nas lantejoulas todos os dias. Agora venham explicar tudo isto ao rapazinho de quatro anos, de olhos esbugalhados e cabelo despenteado, a quem os meus pais sempre apoiaram e disseram que podia ser tudo, e que cresceu para ser feliz. E a todos os rapazinhos e rapariguinhas com um sonho, os de agora, e os de então. Expliquem-lhes que afinal a vida deles é o peso do país num grilhão, e não o par de asas com que sonham. Ou expliquem-lhes que vão começar de novo.