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Um dia vou levar o Desportivo de Beja à Liga dos Campeões

O Championship Manager 2003/04.

Era véspera de dia de trabalho e já toda a família dormia quando o telefone tocou por volta das 11 da noite. Os pais acordaram em sobressalto para atender e do outro lado estava um treinador virtual em pulgas por partilhar uma novidade bombástica com um dos filhos da casa. Eis que o filho, ainda ensonado, pega no telefone e fica a saber da “bomba” que tinha estoirado nas Antas: “Acabei de contratar o Weah para o Porto." George Weah, o grande craque. É óbvio que não é normal interromper o sono de quem seja por causa de um jogo de computador, mas, durante muitos anos, o Championship Manager (o CM) provocou estranhas mudanças em muitos comportamentos e este episódio nem será um dos mais graves. O Luís Filipe Vieira chamou-me garotão no preciso dia em que fui para a rua. Isto foi o que encontrei ao chegar ao Beja. A satisfação da direcção do Beja é como o apetite sexual da Rihanna. Mesmo assim, o vício provocado pelo CM, lendário simulador de treinador de futebol, terá sido, para quem nasceu entre 76 e 86, o mais próximo que essa geração esteve do seu próprio Ultramar: só quem o viveu tem propriedade para falar do que se passou em horário nobre da RTP2. Repare-se, por exemplo, na expressão de terror que se apodera tantas vezes de quem tem um passado CM e decide agora revisitá-lo em conversa com quem lá esteve. Não ignoremos também o facto de haver quem ainda não tenha ultrapassado totalmente o trauma de ter treinado qualquer Benfica da era Vale e Azevedo. Michael Thomas, Martin Pringle, Dean Saunders. O horror, o horror. Contudo, e independentemente da equipa escolhida, o CM baixou rendimentos escolares, arruinou namoros, fundou uma dieta limitada a filipinos e sandes de queijo derretido, anulou todos os hábitos de leitura (excepto os envolvidos no jogo), estagnou vidas sociais e sexuais. No fundo, o CM preparou uma geração inteira para os rigores da Troika. Pessoalmente, devo admitir que não guardo memórias muito específicas dos últimos anos da década de 90, mas lembro-me bem de deixar o Inter em posições embaraçosas (a máfia queria matar-me), idealizar um super-São Paulo com 12 ou 13 atacantes argentinos (fetiche meu) e chegar a épocas futuras (2024/25), em que o Cristiano Ronaldo já seria um treinador respeitável e o Jorge Cadete um velho de 65 anos a trabalhar como fisioterapeuta do Sacavenense. Tudo isto ao som de doses industriais de NOFX (o Punk in Drublic e o Heavy Petting Zoo rodaram mil vezes nesse tempo) e sempre com migalhas de qualquer coisa espalhadas pelo pijama. O meu plantel para a época 2006-07. O Sena todos os dias lê a VICE. O Miguel Veloso passa o tempo a ver-se ao espelho. A verdade é que o CM joga-se bem em total solidão (é doentio, sim), mas triplica o seu factor de diversão ao ser partilhado com amigos. Só em modo colectivo é possível entrar em galhofa e recuperar as mais famosas frases do futebol nacional para explicar as decisões feitas no CM. “Discutiremos isso quando nos reunirmos para brincar” (©Pinto da Costa) para encerrar, com ironia, quaisquer investidas negociais por uma estrela da equipa. “Trago milhões” (©Vale e Azevedo), quando pretendemos anunciar que o clube está cheio de papel (recorrendo a uma das melhores manchetes de sempre d’A Bola). Se quisermos ser muito sofisticados, podemos sempre insultar o adversário, no final de um jogo rasgadinho, com uma farpa celebrizada há bem menos tempo: “Um vintém é um vintém, um cretino é um cretino" (©Manuel Machado). O meu ponto alto ao comando do Beja foi ganhar uma Taça Nel Monteiro. Só penso em duas coisas: comer açorda de bacalhau e jogar ao ataque. Ya, entusiasmei-me em digressões nostálgicas sobre o CM e ainda não disse absolutamente nada sobre o que me trouxe até aqui. O que queria partilhar nem era tanto uma memória pessoal do jogo, mas o perigo que o mesmo representa, quando alguém dá por si rendido entediado numa tarde de domingo. Activar música sinistra e voz distorcida: foi numa dessas tardes que meti a mão a um CD-R com o CM 2003-2004 escrito a caneta de acetato. Estava a dar o Con Air na SIC e fiquei um pouco descontrolado. Comecei por jogar durante algumas horas com o Benfica e, depois do quinto lugar em duas épocas consecutivas, dei por mim a treinar o Desportivo de Beja. O pior é que gostei da sensação tranquila de estar num clube do terceiro escalão. Desactivar música sinistra e voz distorcida. E assim foi. Quando cheguei ao Beja encontrei um plantel insuficiente, uma estrutura virada de pantanas e um ponta-de-lança chamado Tequila, algo que só poderia ser prejudicial para a saúde do balneário. Hoje sou um treinador respeitadíssimo nas ruas de Beja e sinto ter condições para chegar à Liga de Honra em dois ou três anos. Ao partir para cada temporada, o Desportivo de Beja determina um objectivo realista e totalmente ao seu alcance: eliminar o Sporting da Taça de Portugal. O Miguel Arsénio deseja permanecer no Beja por muitos mais anos ignorando por completo a cobiça dos maiores clubes italianos e ingleses. É verdade que o orçamento de mil euros, disponível para transferências, é limitado para as aspirações do Beja, mas é mais do que suficiente para amedrontar equipas como o Porto ou o Boavista, que, ano após ano, recusam o convite para jogar um amigável no infernal Complexo Desportivo Fernando Mamede. Verbas, LOL. Bem, o meu discurso de treinador não é tão digno como as figuras que tenho feito ao festejar golos do Carlos Alexandre e do Vasco Firmino contra equipas tão poderosas como o Louletano ou o Amora. Sim, um rapaz de 32 anos, com uma barba enorme, em frente de um monitor Compaq com os braços abertos perante um jogo que ainda corre em DOS. Ridículo. Se um dia o vosso telemóvel tocar por volta das onze, por favor não atendam. Posso até ser eu com vontade de contar a alguém que o meu Desportivo de Beja está a espetar duas batatas ao Barcelona, na final da Champions.