O enlouquecedor trabalho de proteger uma estação do ataque de ursos polares
O autor. Crédito: Dan Kelly

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O enlouquecedor trabalho de proteger uma estação do ataque de ursos polares

A Linha DEW, construída nos anos 50 no Canadá, funcionava como um posto de alerta de possíveis ameaças nucleares. Lá, resguardei seis funcionários de um dos mais inteligentes predadores do mundo.

Em meados de agosto, sobrevoei as montanhas áridas da Ilha de Baffin, localizada no território Inuit de Nuvanut, no Canadá, em um helicóptero da época da Guerra Fria. Eu, o novo segurança da missão, seguia, junto de mais seis técnicos, até a estação North Warning System, parte de uma série de postos de observação que se estendem ao longo do círculo ártico norte-americano. Originalmente conhecida como Linha DEW (sigla para Distant Early Warning, algo como Alerta Preliminar Distante), o conjunto de estações era a primeira linha de defesa em caso de um ataque soviético: um sistema de alerta que anunciaria o Apocalipse.

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A Linha DEW, construída pelo Canadá e pelos Estados Unidos em 1957, continua sendo uma peça-chave do Comando de Defesa Aeroespacial da América do Norte. Embora a função original da Linha DEW fosse proteger a América do Norte da grande ameaça soviética, meu trabalho seria proteger outros funcionários de ursos polares.

Um urso polar próximo à estação. Crédito: Duncan Ferguson

Ursos polares são predadores habilidosos, pacientes e inteligentes. Caso eles decidam te caçar, eles te observarão à distância por dias a fio, memorizando sua rotina para atacar quando você estiver mais vulnerável. Matar um urso polar não é nada fácil. Caçadeiras só são eficazes quando o animal está a poucos metros de distância e, mesmo nesses casos, existem relatos de balas ricocheteando no crânio duro dos ursos (no Canadá, é permitido caçar ursos polares, uma espécie considerada vulnerável).

Em um confronto com um urso polar, o risco de destruição mútua é grande. Mesmo que você ganhe, a execução de um urso polar inicia automaticamente uma investigação policial. Embora eu seja um bom atirador, eu nunca havia matado um animal com uma espingarda antes de aceitar este trabalho. Além disso, quem quer matar um urso polar?

O autor atira para o alto para assustar um urso polar. Vídeo: Kate Lunau/YouTube via Patrick Lampman

Fui contratado por meio de uma lista de prestadores de serviço ligados à Raytheon (uma grande empreiteira americana). Durante esse trabalho, me senti como uma mistura de Dr. Fantástico com o guarda florestal australiano de Jurassic Park.

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Minha experiência se resumia a anos plantando árvores no noroeste do Canadá, onde encontros com ursos são comuns. Mas naquele momento, eu me encontrava em um helicóptero Sikorsky com uma espingarda Winchester de 30 anos de idade que eu havia modificado para armazenar mais munição. Eu havia comprado a arma pouco antes de ser contratado oficialmente — vocês podem imaginar a reação dos vendedores da loja de armas quando eu disse para que usaria a espingarda.

Um cachorro perto do aeroporto em Iqaluit. Crédito: Duncan Ferguson

A estação automatizada consiste em três radares, um heliporto e uma pequena construção, todos apoiados em pilastras de 2,5m de altura. Durante as duas semanas que passei lá, eu e os outros seis técnicos dormíamos dentro do edifício, embalados pelo zumbido ensurdecedor dos três geradores a diesel. Nós defecávamos em um sanitário seco escondido atrás de uma cortina e tomávamos banho com um estoque de lenços umedecidos — nada de banho de verdade. Fazíamos nossas refeições em uma cozinha improvisada construída em uma antiga garagem, e nossas aventuras culinárias espalhavam o cheiro de mortadela frita e sopa enlatada em todas as direções.

Eu esperava um terreno plano e uma ampla área de visão, o que me daria uma boa vantagem em relação aos ursos. Em vez disso, me deparei com uma estação próxima do mar e cercada por três montanhas, o que significa que qualquer urso que se aproximasse poderia se esconder até alcançar o desnível mais próximo, localizado a perigosos 70 metros de distância.

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Minha rotina se resumia a acordar às 7 da manhã, analisar as condições climáticas e ficar de guarda enquanto os técnicos desciam para cozinhar o café da manhã. Neblina ou nuvens baixas tornam os ursos praticamente invisíveis, então nós só saíamos nos dias de boa visibilidade.

Retrato da fauna local. Crédito: Duncan Ferguson

O tempo no Ártico é imprevisível. Esperamos por três dias a permissão para voar de Iqaluit até a estação e nos preparamos para passar até dois meses por lá. Alguns dos técnicos haviam ficado presos na estação por mais três semanas depois do fim de um projeto anterior; durante esse tempo, eles ficaram dentro do prédio se entretendo com edições velhas da revista Popular Mechanics.

A maioria dos dias era ensolarado com um vento frio que gelava os ossos. Todos os dias eu me cobria com uma balaclava camuflada, luvas sem dedos e quilos de lã. No meu cinto, eu carregava um par de binóculos e uma faca grande que, embora não muito útil durante um confronto com um urso, me deixava mais seguro. Enquanto eu circulava por entre os radares, testei todas as maneiras concebíveis de se carregar uma arma. Em minha mente martelavam muitas dúvidas: eu me perguntava se conseguiria agir sob pressão durante um ataque ou se eu seria capaz de atirar na hora certa.

Não tenho palavras para descrever a natureza ao mesmo tempo perigosa e extremamente tediosa desse trabalho. Durante as duas semana, ou eu estava a espera de uma luta com o maior predador terrestre do mundo, ou eu estava fazendo nada.

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Eu havia passado tanto tempo observando as montanhas em busca de uma massa de pêlos brancos que os ursos se tornaram parte cativa da minha imaginação. Um dos técnicos gostava de dormir com a porta aberta, o que significa que a única coisa que nos separava do monstro branco era um lance de escadas de metal do qual os ursos supostamente "não gostam". Meus sonhos estavam povoados por ursos.

Antes de aceitar o trabalho, me disseram que durante longos períodos de isolação, o guarda era o primeiro a surtar. Depois de uma semana comecei a entender por quê. Eu faria de tudo para ver um urso.

Mas foi apenas na última manhã, depois de duas semanas sem grandes acontecimentos, que, ao escovar meus dentes, vi o que tanto queria.

O autor pega outra bala de seu bolso para assustar um urso polar. Crédito: Randy Weber

Notei, enquanto observava seu corpo branco sair do buraco onde eu havia treinado minha pontaria dias antes, que da sua boca entreaberta saía um bafo quente. O animal se movia de forma confiante entre os pedregulhos e, seguindo seus próprios interesses, se aproximou de nós sem a menor preocupação.

Enquanto eu via seu corpo forte tremer a cada passo, compreendi o poder da coisa que fui contratado para enfrentar. Tirei uma foto que nunca faria justiça a esse animal, larguei minha câmera e peguei minha arma.

O maior defeito dos ursos polares é sua curiosidade. Resultado de sua inteligência, eles muitas vezes se colocam em perigo por causa dela. Devemos ter isso em mente durante um confronto com um urso, optando sempre, portanto, pela distração. Depois de dar uma boa olhada nos caninos amarelados, nas garras pretas e enormes que saíam de suas patas e, por fim, no branco de seus olhos, me dei conta de que apenas um lance de escadas nos separava.

Espingarda apontada para cima, atirei uma primeira vez, o que fez com que ele recuasse alguns metros antes de sair correndo como se ainda estivesse no controle da situação.

Uma hora depois, o helicóptero chegou e nos levou para casa.

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