A inteligência artificial quer ser o fast food da masterização musical
Crédito: Luiza Formagin/ VICE

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A inteligência artificial quer ser o fast food da masterização musical

O engenheiro de som do seu próximo disco favorito não terá braços humanos.

Você deve saber que a tecnologia permitiu a muitos artistas darem adeus aos estúdios musicais profissionais. Ali, no esqueminha de notebook, plaquinha de som e plugins, muito mais gente passou a ter acesso aos meios de produção que antes eram impossíveis devido aos custos absurdos dos equipamentos de gravação.

Agora, as máquinas avançaram mais um pouco: elas prometem tomar completamente uma parte importante do processo da produção musical. Para muitos produtores, a inteligência artificial será o engenheiro de masterização do seu próximo disco favorito — e sem nenhuma ajudinha de braços humanos.

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Nos últimos dois anos, houve o surgimento de um considerável números de sites que oferecem masterização realizada pela máquina. A onda começou com o LANDR, que entre os investidores estão o rapper Nas, o DJ Tiga e a Warner Music Group, mas logo serviços similares apareceram. Entre eles estão ARIA, CloudBounce, eMastered, MasteringBox e Masterlizer.

Mas será possível que robôs podem participar com qualidade de algo tão emocional quanto a produção de música?

Bom, primeiro é melhor a gente tentar entender o que é masterização.

Antes de chegar aos ouvidos do ouvinte, uma canção passa por um longo caminho até ficar pronta. Ela é composta, arranjada, gravada, editada, mixada e masterizada. A masterização, portanto, é o último estágio da produção. "É como se num restaurante existisse uma pessoa para experimentar o prato antes que ele fosse enviado para a mesa do cliente. Se aparece alguma deficiência de tempero ou de sal, ainda é possível fazer correções", compara Felipe Tichauer, engenheiro de masterização que já trampou com Elza Soares, Céu e Christina Aguilera.

Na época em que a mídia física tinha importância, a principal função da masterização era criar uma matriz perfeita para que o disco pudesse ser replicado nas fábricas. Dessa maneira, os limites de cada tipo de mídia tinham que ser respeitados. Os CDs, por exemplo, têm tempo máximo de 78 minutos (embora quase ninguém chegue nele). Já os vinis exigem cuidado com as frequências mais graves para evitar que a agulha pule. É um processo bem técnico, que cria fades perfeitos (reduções e aumentos de volume entre as músicas), detecta ruídos e chiados que passaram pela mixagem e encontra equilíbrio de volume entre todas as canções.

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Outros dois aspectos da masterização são intervenções tonais e dinâmicas nas músicas. No primeiro, a preocupação é trabalhar nas frequências para achar sonoridade boa. Para isso, são usados diferentes tipos de equalizadores, que podem ser analógicos ou digitais. No segundo, o trabalho é para deixar a música mais ou menos dinâmica. Um som mais dinâmico tem partes com volumes mais baixos e mais altos bem distantes uns dos outros — o violão vai soar mais baixo do que a bateria, por exemplo. Já um som menos dinâmico apresenta intensidade de volume mais constante. E o trampo aqui é feito com compressores e limitadores (ou limiters), que são ferramentas que também podem ser digitais e analógicas.

Embora também bastante técnica, essa parte do processo tem um elemento artístico, pois ela tem impacto direto no resultado final da canção e em como o ouvinte vai percebê-la.

"Há uns anos, eu trabalhei num DVD do Saulo Fernandes, e ele tinha optado por ter um som mais cru", conta Carlos Freitas, um dos principais engenheiros de masterização do Brasil (trabalhou com Tim Maia, João Gilberto e uma porrada de artistas, puxa a Wikipédia do homem aí).

"Ele me perguntou o que eu tinha achado e eu disse que a música não tinha me emocionado. Ele ficou espantado e eu falei: 'Você tá pedindo pra galera sair do chão, pra cantar, mas sua música não tem energia. Está abafada'. Tava tudo muito suave, parecia um pouco cansado. Para melhorar fiz uma equalização agressiva nos médios. Depois com a compressão, o som começou a ganhar um corpo e a pulsar mais. Ele, que tava sentado, levantou e começou a ficar todo empolgado. O fã que iria ouvir esse DVD precisava de algo mais para que pulasse junto com a música. Consegui trazer a emoção que ela precisava."

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Carlos Freitas no seu estúdio. Crédito: Divulgação/ ProAudio Clube

Essa roupagem final da música exige muito papo entre artista, produtor, engenheiro de mixagem e engenheiro de masterização. Música é um trabalho coletivo, meu parceiro. E nesse momento, opções estéticas quanto ao tipo de som são cruciais. Vale lembrar aqui aquele papo que a gente teve sobre guerra de volumes.

Além da conversa e dos equipamentos, os engenheiros de masterização contam com uma ferramenta fundamental: as salas onde eles trabalham são neutras acusticamente falando. Só assim os ouvidos desses feras podem detectar de forma verdadeira todas as nuances de frequência e de dinâmica. Um ambiente desequilibrado pode ter resultado final ruim para o ouvinte. A ideia é trampar para que a música soe da melhor forma possível nos diferentes sistemas de som dos diferentes tipos de ouvintes, do celular xing ling ao radião playba de alta fidelidade. Essa, talvez, seja uma das maiores barreiras entre quem planeja masterizar em casa usando algum plugin malandro e quem ganha a vida fazendo isso profissionalmente.

Como as máquinas aprendem a masterizar

Embora cada empresa tenha seus segredos e particularidades, a principal técnica utilizada para botar de pé a IA é chamada de aprendizado de máquina (ou "machine learning"). Falando de forma simples, isso significa que você vai fornecer para a máquina milhares de exemplos daquilo que você quer que ela faça. A partir disso, os algoritmos vão tentar identificar padrões entre todos esses exemplos e vão encontrar sozinhas soluções para determinado problema.

Exemplo simples: para reconhecer pessoas em uma imagem, primeiro a máquina precisa reconhecer a existência de pixels, depois identificar que pixels juntos formam figuras até que a máquina perceba que determinados agrupamentos de pixels e de cores são normalmente associados a humanos. Se no meio do caminho a máquina toma uma decisão absurda (e acontece muitas vezes), o humano pode interagir com ela para que os resultados sejam ajustados.

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A masterização via IA acontece de maneira simples e parecida em todos os serviços. Com um único clique você carrega no site o arquivo da versão mixada de sua música. A seguir, a máquina analisa a canção e tenta identificar padrões para determinar o estilo musical, as técnicas usadas na produção e na mixagem e os pontos a serem melhorados nas frequências sonoras. Esse é o momento em que o papo entre o artista e o engenheiro de masterização é substituído. É tudo maquinal.

Baseado nessa análise, o computador dá um trato no som usando aquelas ferramentas tonais e dinâmicas, como equalizadores, compressores, limitador e stereo enhancer. É tudo digital, o que significa que não há equipamentos analógicos na brincadeira.

As decisões são tomadas de acordo com o banco de dados da ferramenta. Todos os sites entrevistados para esta reportagem afirmam que, quando começaram, criaram um banco de dados com algumas milhares de canções com boas técnicas de masterização para que a máquina tivesse dados confiáveis para se espelhar. Com o tempo, as próprias músicas dos usuários de sites passaram a integrar a memória da máquina. O LANDR afirma que até hoje mais de 5 milhões de canções já foram carregadas no site. Teoricamente, quanto mais gente usar a inteligência artificial, melhores devem ser os resultados.

"Aprendizado de máquina é a maneira mais efetiva de construir uma ferramenta que se adapta e aprende com experiências do passado. Ele permite fazer uma masterização única para cada canção, o que é algo incrivelmente flexível e efetivo para trabalhar com uma variedade grande de áudio", explica Smith Carlsson, fundador do serviço eMastered. Carlsson, que ganhou um Grammy junto de grande equipe do álbum "1989" da Taylor Swift, começou a companhia em 2016.

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"A inteligência artificial está revolucionando todas as indústrias da Terra, e a música não é uma exceção", afirmou Pascal Pilon, executivo-chefe do LANDR, ao Motherboard.

Tela do LANDR em ação. Crédito: Divulgação

De fato, nos últimos meses, a IA anda fazendo incursões audaciosas no mundo da música. No final de agosto, uma artista chamada Amper lançou seu disco de estreia, batizado de "I AM AI". Com um pequeno detalhe: Amper não é uma artista humana. Ela é uma ferramenta de IA movida a aprendizado de máquina, que compôs e produziu seu próprio trampo (a voz, porém, é humana: foi gravada pela cantora Taryn Southern). A inspiração para a obra foi bem mais fria do que um rompimento amoroso: um banco de dados com diferentes canções de artistas (humanos, claro). No começo de 2017, a empresa responsável pela plataforma de composições, também batizada de Amper, recebeu US$ 4 milhões de fundos de investimento.

Antes desse disco, em setembro de 2016, pesquisadores da Sony anunciaram ter um sistema de inteligência artificial metidão a compositor. Batizado de "FlowMachines", o cérebro apresentou duas canções. Uma delas, "Daddy's Car, tem jeito de ter sido kibada da obra dos Beatles.

Mas, enquanto esses trabalhos têm aura de projetos experimentais, os serviços de masterização automatizados estão no mercado e são acessíveis a qualquer um com conexão à internet. Assim, a dúvida sobre qual será a prevalência de robôs neste estágio da produção musical é mais pulsante. Será que é possível um som bem masterizado por um engenheiro de som que nem ouvidos têm?

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E quando o som precisa de ruídos e sentimento?

"Eu masterizei todo o áudio do encerramento das Olimpíadas no Rio. Foram mais de duas horas de música com 33 peças. Tinha samba, tinha música eletrônica, tinha hino nacional… Você consegue imaginar uma máquina fazendo isso perfeitamente?", questiona Freitas.

A provocação do engenheiro é honesta. Deve demorar algum tempo até que um sistema de algoritmos possa encarar uma tarefa de tamanha complexidade. Tanto que os sites de masterização automatizada não permitem subir um disco inteiro de uma vez. Atualmente, o serviço é oferecido apenas para canções avulsas. Mesmo assim, os engenheiros de masterização profissas questionam a qualidade do trabalho pela ausência do componente humano.

"A masterização é um processo muito fino. É menos ouvir e mais sentir", diz Luiz Café, que trabalha com muitos nomes do rap nacional, incluindo Emicida. Obviamente, o computador não sente nada. Apenas analisa friamente as frequências que podem ser trabalhadas. Isso, porém, faz a diferença, segundo os profissionais humanos. Em algumas situações, a correção tonal pode até estar tecnicamente certa, mas ainda não é suficiente para aquilo que o som do artista pede. Isso significa que as imperfeições, ou as medidas que fogem dos manuais de masterização, podem acrescentar personalidade ao trabalho. "Eu já ouvi trampos masterizados pela máquina e senti uma certa frieza", diz Café. "Tem som de 'nada'."

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Já Tichauer conta que já teve cliente que masterizou primeiro com a máquina, mas que recorreu a ele para melhorar o trabalho. Na gringa, as resenhas por quem entende de áudio não são muito favoráveis também.

Neste teste com comparações de áudio, o californiano Brian Hazard crava: "A IA nunca poderá substituir um engenheiro de masterização profissional porque ela não tem compreensão musical". Além disso, ele aponta outro para outro problema: "A máquina não pode dizer a você para arrumar os problemas da mixagem". Sim, tem coisas que a masterização não pode fazer, e, às vezes, é preciso dar alguns passos atrás no processo. Como já falamos, o papo entre todos os envolvidos é fundamental. Porém, sem alimentar falsas polêmicas, talvez essa disputa entre humanos e máquinas nem exista.

Robôs economizam grana

"Nosso objetivo não é competir com estúdios profissionais de masterização. Na minha opinião, o nosso sistema sempre analisará as características da faixa e sempre oferecerá um bom resultado. Para alguns pode não ser o melhor, mas sempre será correto", diz Didac Corbí, que fundou há três anos em Valência, na Espanha, a MasteringBox.

Claro, Corbí está falando sobre sua empresa, mas de certa forma o posicionamento dele representa a postura de forma geral dessa nova indústria. Nem mesmo o LANDR, que em seu site propagandeia masterização de nível "profissional", topa entrar nessa disputa. O chefão da companhia também disse ao Motherboard que o objetivo deles não é substituir os engenheiros de som profissionais.

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Talvez esse seja apenas um discurso da boca para fora? Talvez. Lá no fundinho, pode existir a intenção de automatizar toda a masterização do mundo. Mas, no momento, o LANDR e todas as outras empresas do ramo talvez também reconheçam que a máquina ainda não é capaz de gerar resultados similares aos de grandes engenheiros humanos. Isso, porém, não significa que esses serviços não possam ocupar espaços importantes em diferentes cenários de produção musical.

Imagine que você é uma produtora de publicidade e você tem 1.500 spots de áudio. como fazer para que o seu acervo fique mais ou menos no mesmo volume? Esses sites podem ser uma solução bem interessante.

Existem dezenas de resenhas comparativas no YouTube que apontam diferenças bem sutis entre o trabalho humano e o trabalho automatizado. São detalhes que para quem, por exemplo, está ouvindo um MP3 porcaria no celular, talvez passem despercebidas. Os próprios engenheiros entrevistados dizem que é melhor recorrer a um site desses do que tentar fazer o trampo em casa sem ter noção de como realizar a tarefa. Para eles, é melhor confiar na máquina do que entregar uma demo sem masterização para algum contato importante.

Além disso, como essas plataformas trabalham com bancos de dados, é possível que estilos mais populares, que produzem músicas em maiores quantidades, possam ser beneficiados, já que a máquina tem mais exemplos para mirar. Entre eles podem estar a música eletrônica e, falando de Brasil, o sertanejo universitário.

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O preço para masterizar com IA vai de encontro a esse perfil do artista independente sem cascalho. No plano mais caro do LANDR, a assinatura mensal do serviço, que permite masterização ilimitada de canções, custa US$ 17 (R$ 54). Em um ano, são gastos US$ 204 (R$ 645). Dos engenheiros brasileiros entrevistados aqui, Café é o mais barato deles (e admite isso dizendo que é uma filosofia para "espalhar som bom"). Custa R$100 por música. Com Freitas o valor é de US$ 100 (R$ 320), preço parecido com o praticado por Tichauer (que pode custar até US$ 250 por música).

"Voltando à analogia com comida, o hambúrguer do McDonald's vai matar a sua fome. Talvez, ele não seja nutritivo, mas tudo depende daquilo que você esteja buscando", diz Tichauer. "No final, o McDonald's vai ter mercado e o bistrô de comida cara também. Nos dois casos, eles ganharão dinheiro, embora o bistrô não sirva um milhão de pessoas."

Mas não é apenas a galera independente que pode encontrar valor no trampo da IA. Grandes gravadoras e estúdios também olham com carinho para a tecnologia. A rodada de investimentos que rendeu US$ 6,2 milhões ao LANDR foi liderada pelo Warner Music Group. Enquanto isso, a finlandesa CloudBounce foi incubada pelo mítico estúdio Abbey Road.

A intenção parece ser economizar tempo e também dinheiro. Nesta entrevista do ano passado à revista Canadian Business, Justin Evans, um dos cofundadores do LANDR, disse que as grandes gravadoras têm catálogos extensos e gravações ao vivo que não são economicamente viáveis para serem trabalhadas em um estúdio profissional de masterização, mas que podem se tornar comercialmente atrativas se trabalhadas pela máquina.

No mundo da TV e do universo publicitário, a lógica também se aplica."Imagine que você é uma produtora de publicidade e você tem 1.500 spots de áudio. Como você pode normalizar isso aí? Ou como fazer para que o seu acervo fique mais ou menos no mesmo volume? Esses sites podem ser uma solução bem interessante. Eu não me vejo masterizando todos esses spots", fala Freitas.

Voltando à música comercial, além de auxiliar em segmentos com muito volume de trabalho e baixa atratividade econômica, a IA podem ajudar a direcionar grana para outros setores. Em gêneros muito competitivos que têm sonoridade parecida, como a música pop, o dinheirinho economizado em masterização pode ser direcionado para o marketing. Isso pode fazer a diferença entre uma diva pop e outra se tornar mais ouvida ou não. Segundo um estudo da Federação Internacional da Indústria Fonográfica, as gravadoras gastaram em 2015 US$ 4,5 bilhões em marketing e desenvolvimento artístico.

A mesma instituição estima que uma gravadora pode gastar com um artista novato até US$ 700 mil em marketing, enquanto o valor gasto em gravação varia entre US$ 150 mil e US$ 500 mil. Com auxílio da máquina, algumas dezenas de milhares de dólares poderiam sair de um bolo para o outro. Sim, aqui já estamos entrando naquele papo se a preocupação das gravadoras deveria ser com a música e não com o jabá, mas vamos deixar isso para outro dia.

O fato é que a masterização sempre terá a sua importância no processo de produção musical. E grandes engenheiros ainda estarão lá para deixar o trampo ainda melhor. Mas a inteligência artificial poderá aumentar o número de artistas com algum tipo de acesso a esse processo, e isso também é muito bom. Afinal, não é todo dia que você topa encarar restaurante que exige hora marcada e roupa de missa. Tem dias que meia dúzia de esfihas do Habib's resolvem bem a parada.

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