O que aprendi a passear por Lisboa com Fernando Pessoa
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O que aprendi a passear por Lisboa com Fernando Pessoa

“Não sei o que o amanhã trará – um passeio sonoro na Lisboa de Fernando Pessoa”, áudio-guia/ série documental de Sofia Saldanha, é um dos trabalhos sonoros mais completos sobre o poeta fingidor.

O videoclip dos The Buggles que inaugurou a Music TV (MTV), em 1981, anunciava o fim da “radiostar” em detrimento do vídeo. Imagens em movimento que iriam mudar o rumo da televisão e dos media. Mas não foi bem o que aconteceu. Depois da anunciada morte do livro impresso e da suposta extinção da rádio, o som continua a ser uma forma de estarmos ligados aos lugares e às pessoas.

Sofia Saldanha, realizadora e produtora de áudio, começou o seu percurso nesse mesmo meio, a rádio. Desde então tem desenvolvido inúmeras ideias para conteúdos sonoros. O seu mais recente trabalho é o áudio-guia/série documental de Fernando Pessoa, lançado em colaboração com a Casa Fernando Pessoa, que nos leva a conhecer a cidade pela mão do poeta que amou e viveu com o Rio Tejo no horizonte.

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“Não sei o que o amanhã trará” transporta o ouvinte pelos lugares do poeta e desperta-o para uma cidade cheia dos mistérios e relações que o próprio fez questão de desenvolver. Ele, Pessoa, e heterónimos, que fizeram da obra pessoana um novelo difícil de deslindar. “Não havia tanta informação concentrada sobre Pessoa num só lugar”, explica à VICE a autora, que, a partir da página na Internet, conta as histórias e lugares do poeta na cidade. É, portanto, hora de pegares num dispositivo móvel e andares por onde o som te levar.

Fiz o mesmo e, de auriculares nos ouvidos, acompanhado da realizadora e produtora do percurso, Sofia Saldanha, meti-me ao caminho para conhecer as histórias que fazem deste áudio-guia um dos trabalhos mais consistentes e pioneiros criados até ao momento tendo por base a vida e obra de Pessoa.

Adverte-se em jeito de antecipação que, mesmo sem saber o que o amanhã possa trazer, na calha estão já mais percursos áudio/documentários sobre outras figuras da literatura portuguesa. Para já, tudo guardado em segredo. Agora, abram os ouvidos e deixem-se levar pela magia do som.

Cemitério dos Prazeres. Foto pelo autor

BAIXA LISBOETA E A ALDEIA QUE PESSOA OCUPOU (ouve o episódio 3: "Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo")

O percurso arranca no Largo de São Carlos, onde Fernando Pessoa nasceu e viveu com a família. A partir desse primeiro lugar de Lisboa, Sofia convoca pessoanos, estudiosos, família e os universos do poeta. Antes de começar, explique-se que ideia esteve a maturar na cabeça da realizadora durante quatro anos. A inspiração surge depois de ter realizado percursos com áudio-guias de poetas americanos, em Washington e Chicago e de um café com um amigo em East Village, em Manhattan, Nova Iorque. A partir daí a autora percebeu que iria avançar para a criação do seu próprio áudio-guia. Em Lisboa, pela mão de Pessoa.

“Pessoa e a sua obra estão muito ligados a Lisboa e, se a ideia original era fazer uma coisa relacionada com a cidade, parecia-me que o mais lógico era que fosse com o Fernando Pessoa”, confessa Sofia, que arrancou com as gravações e entrevistas sem qualquer apoio institucional. E justifica: “Para mim, no início, foi importante não estar ligada a nenhuma organização para não ter constrangimentos criativos".

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Ao editar alguns dos episódios do documentário sonoro, ainda em rascunho, bateu à porta da Casa Fernando Pessoa - “Fui até lá, bati à porta. Abriram. Entrei e perguntei se queriam apoiar. E apoiaram”. Mais quatro anos de trabalho pela frente, em que ao suporte financeiro se junta a consultadoria da Casa para completar o guia. Os sons foram tomando a forma narrativa até perfazerem 15 episódios, com muitas surpresas biográficas e literárias pelo meio.

Pessoa, na Casa Fernando Pessoa. Foto pelo autor

DA INFÂNCIA DO POETA ÀS PESSOAS QUE COM ELE CONVIVERAM (ouve o episódio 9: "Aí em baixo, no café Arcada"

Em 15 episódios, o percurso leva o ouvinte a dezenas de momentos sonoros. Do São Carlos segue-se para a praça de outro poeta, Luiz de Camões, e depois para o café A Brasileira, a caminho da Rua do Ouro. Ouve-se da infância do poeta. Muito ligado à mãe, aspecto que o marcou definitivamente, Pessoa costumava ouvi-la tocar piano para si à noite, “Un soir à Lima”, Op.99, de Félix Godefroid. Esses finais de noite, ainda em Durban, onde o poeta viveu e estudou.

Sofia pediu às estudantes de música da Escola Calouste Gulbenkian de Braga, Carolina Machado e Lia Magalhães, para criarem uma banda sonora, a partir da composição de Godefroid, que é incluído no segundo episódio. As compositoras têm apenas 10 anos de idade e são cúmplices deste projecto. “Para mim era importante partilhar o meu trabalho com pessoas de quem gosto, que são minhas amigas. E que também são cúmplices do meu percurso”, refere a autora, que convoca ainda outros amigos de diversas áreas artísticas - do teatro, do cinema, da música, do fado -, para darem voz às diferentes personagens que integram o documentário sonoro.

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Vista da Rua Augusta a partir da Camisaria Pitta, onde Pessoa comprava as suas camisas. Foto pelo autor

O percurso segue para o Rossio, depois é a Baixa, de onde Pessoa parece não ter nunca saído. Ali inventou empresas, escreveu poemas, cartas e namorou com Ofélia. Pegava nela e iam a namorar no eléctrico até Belém, sem se poderem tocar ou beijar, a não ser às escondidas. Na Rua Augusta, a documentarista dá fé das aventuras de Pessoa em Cascais, onde noticia o suicídio do ocultista e exuberante Aleister Crowley, ocorrido na Boca do Inferno. Um episódio, pouco conhecido da vida de um poeta que também se interessou pelo ocultismo, tendo realizado regularmente cartas astrais.

Sofia Saldanha considera que fazer este documentário sonoro pressupõe “seguir esse jogo pessoano” e, por isso, decidiu “entrar no jogo”, onde muitas vezes não se sabe o que é verosímil ou não. E acrescenta: “Não sabia a história dele. Só quando comecei a investigar comecei a perceber que aquilo era muito mais. É um universo muito mais denso do que estava a prever, muito intrincado”. Sem nunca perder o humor, Sofia recorda que teve de deixar muito material fora do áudio-guia, fruto das muitas incursões que fez a lugares onde Pessoa passou, como a camisaria Pitta, na Rua Augusta, onde o escritor comprava as suas camisas.

Da Baixa, do Martinho da Arcada, café que frequentava e onde almoçava “por vezes sozinho”, subimos para Campo de Ourique, outro dos bairros lisboetas do percurso “Não sei o que o amanhã trará”, lugar das interações mais familiares e das brincadeiras do tio Fernando Pessoa com os sobrinhos e sobrinhas. Fazia palhaçadas com um sentido de humor que poucas pessoas conhecem. Escrevia versos para as crianças e fazia-as rir.

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Sofia Saldanha, a gravar som na Rua Augusta. Foto pelo autor

“I KNOW NOT WHAT TOMORROW WILL BRING" (ouve o episódio 14: "Não sei o que o amanhã trará")

"Com a morte de Fernando Pessoa, acontece a descoberta de uma obra sem fim, com diversos tipo de camadas, como se fosse uma cebola, refere a autora. Dos livros, dos papéis e papelinhos que guardava, tudo foi sendo descoberto por intelectuais, familiares e estudiosos. Sofia Saldanha tentou ouvir todos, mas não obteve uma resposta definitiva sobre o que queria o poeta fingidor com a sua obra.

Quando ainda estava a cozinhar episódios, sons e entrevistas, "tropeçou" na astróloga Patrícia Nazaré Barbosa. Era dia 13 de Junho de 2017, dia em que Fernando Pessoa completaria 129 anos. “Comecei a falar com ela e, quando me disse que era astróloga, perguntei-lhe se poderia fazer o mapa astral de Pessoa, enquanto executava a gravação para o explicar”, conta. Patrícia aceitou e parte dessa leitura integra o episódio 14 e 15 do documentário sonoro.

Segundo o mapa, a obra de Pessoa só vai ser compreendida em 2198. Quanto ao título do documentário, Sofia Saldanha revela que teve dificuldade para o encontrar, mas, após conversas com dramaturgo e encenador Jorge Louraço e a directora da Casa Fernando Pessoa, Clara Riso, pensou que faria sentido traduzir literalmente a última nota escrita pelo poeta antes de morrer. “'Não sei o que o amanhã trará' é a tradução literal do 'I know not what tomorrow will bring', que é a última frase que Fernando Pessoa escreveu quando já estava no hospital”.

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Sofia Saldanha, no Cemitério dos Prazeres. Foto pelo autor

O enigma e o mistério continuaram assim até ao seu ultimo suspiro de vida. “Sabemos o que vai acontecer à obra dele, mas, ao mesmo tempo, não sabemos o que vai acontecer à obra dele. É como se estivéssemos no mesmo sítio que ele. Nós também não sabemos o que vai acontecer a seguir”, salienta a realizadora sonora.

Agora, o que sabemos, é que o documentário e áudio-guia, “Não sei o que o amanhã trará”, é dos ouvintes que podem ir conhecendo Lisboa através dos sons da cidade, da obra do poeta e das pessoas que com ele conviveram, ao gosto do caminhante, sem a poeira dos livros enclausurados em estantes. Nada está fechado porque, diz Sofia Saldanha, "Pessoa faz-nos reflectir. Estava constantemente a pôr-se em dúvida". E conclui: "Eu aprendo muito com ele”.


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