Carlos ‘Kaiser’ Henrique'
Todas as fotos: Carlos Kaiser.

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A incrível trajetória do craque de futebol que nunca jogou bola

Por vinte anos, Carlos “Kaiser” Henrique assinou com alguns dos melhores times do mundo sem nunca jogar para nenhum deles.

A ideia de viver uma mentira é sempre apresentada como uma coisa sombria e negativa; é algo que as pessoas fazem nos filmes antes de se jogarem de prédios, de fazer um discurso triste ou de perder tudo.

Mas e se viver uma mentira na verdade for divertido? Não algo bom ou especialmente nobre, mas algo que traga alegria e luz para as vidas de outras pessoas, assim como emoção, barulho, umidade, histeria, luxúria, fama e amizades.

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Essa é uma aproximação da vida de mentira de Carlos “Kaiser” Henrique, “o maior jogador de futebol a nunca jogar futebol”, como é conhecido – um homem nascido na pobreza das favelas do Rio de Janeiro que enganou e encantou o mundo em duas décadas de absoluta enganação.

Armado apenas com um mullet, algumas sungas e um dom prodigioso para engambelar, Kaiser – como ele insiste em ser chamado, provavelmente uma homenagem a Franz “Kaiser” Beckenbauer, ou talvez só uma referência a uma marca de cerveja popular no Brasil nos anos 80 e 90 – foi contratado e afiliado aos quatro maiores times cariocas: Botafogo, Fluminense, Flamengo e Vasco, além de vários times no exterior para os quais ele pode ou não ter realmente jogado.

“Eu queria estar entre os jogadores”, diz Kaiser num novo documentário, Kaiser: The Greatest Footballer Never to Play Football, que passa um pente fino sobre seu mito. O filme é hilário, inacreditável, fascinante e triste em vários graus. “Eu só não queria jogar”, acrescenta Kaiser. “Era problema dos outros se eles queriam que eu fosse um jogador.”

Em vez de ser desprezado como um sanguessuga, Kaiser desfruta de consideração entre a maioria dos colegas – um cara que, quando conseguia um contrato com um clube, fazia absolutamente tudo para continuar nele, desde que não envolvesse jogar futebol. Nele há pouca mágoa para um homem que decidiu operar como um tipo de organizador de orgias com um suprimento infinito de descaramento.

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Falei com Louis Myles, diretor do filme, e com o autor Rob Smyth, que escreveu um livro paralelamente, para tentar entender como esse homem conseguiu dar um grande golpe no mais alto nível do esporte brasileiro durante 20 anos.

VICE: É difícil saber por onde começar a história de Kaiser. O que a torna tão especial?

Louis Myles: No caso de Kaiser, a duração de sua carreira é a parte realmente extraordinária. Você tem um cara que faz amizade com alguns jogadores muito influentes e famosos – Bebeto, Carlos Alberto, Renato Gaúcho. De repente, você tem uma base de contatos com os melhores dos melhores. Disso, a questão é o que você faz com essa base. A maioria das pessoas pensaria: “Legal, sou amigo do Zico” e ficaria contente com as muitas festas e a possibilidade de fazer disso um negócio. Mas Kaiser criou um sistema de troca, onde ele conseguia para as pessoas o que quer que elas precisassem – o que podia ser qualquer coisa mesmo – e, em retorno, ele pedia um teste para algum clube, ou que alguém jurasse que ele era um jogador profissional. E esses jogadores, os melhores do Brasil, compraram a ideia.

Ele era engraçado, charmoso e rápido; ele tinha aquela habilidade clássica de vigarista e conseguia voltar qualquer situação imediatamente a seu favor. Mesmo estando em perigo, essa habilidade de conseguir trazer pessoas para o seu lado é uma arte. Ele entrou para a máfia, levou a culpa por brigas, organizou orgias, fingiu infinitos ferimentos, convenceu jornalistas a escrever sobre ele, pagou fãs para gritar seu nome em partidas. A única coisa que ele não ousou fazer foi jogar, porque aí ele seria exposto.

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A carteirinha de jogador oficial de Kaiser no Gazelec FC.

Como você conheceu a história de Kaiser?

Louis Myles: Eu estava fazendo um documentário dos 20 anos da série de videogames Football Manager. Alguém da equipe me levou para um pub e contou essa história incrível que alguém tinha postado no reddit, traduzida toscamente de uma matéria em português. Depois de alguns pints a coisa foi de “alguém devia fazer um filme dessa história” para “a gente deveria fazer um filme dessa história”. Mais tarde, falei sobre isso com Tim Vickery, um jornalista de futebol que trabalha no Brasil para a BBC, e os olhos deles brilharam. Ele disse que em seus 21 anos morando no Rio, essa não só era a melhor história de futebol que ele já tinha ouvido, era a melhor história que ele já tinha ouvido e ponto. Foi isso que me deu confiança. Os três anos seguintes, francamente, foram os mais malucos da minha vida.

Sendo verdade ou não, quais são suas histórias favoritas do Kaiser?

Louis Myles: Tem muitas. Por isso falamos com o Rob para escrever um livro, tem coisa demais para caber num filme. Fizemos sete viagens e, todas as vezes, você voava pra lá sem saber o que ia conseguir.

Rob Smyth: Minha história favorita provavelmente é sobre uma vez em que ele jogou no clube carioca Bangu, quando ele deliberadamente foi expulso antes de entrar em campo, brigando com os torcedores do outro time enquanto fazia aquecimento como reserva. Ficamos bastante céticos com essa história, mas algumas pessoas juram que estavam lá. É uma história engraçada, mas também um pouco séria; ele poderia ter pago com os joelhos se tivesse realmente entrado em campo. O chefe não oficial do Bangu na época era Castor de Andrade, o mais perigoso mafioso do Rio de Janeiro. Ele adorava o Kaiser, mas tinha caído na história dele sobre estar machucado. Se ele descobrisse que Kaiser estava mentindo descaradamente pra ele, teria se encrencado.

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Tem várias histórias no filme sobre o Kaiser andando com mafiosos e outros bandidos. Por que vocês acham que ele conseguia fazer amizade com criminosos tão facilmente?

Rob Smyth: Na época, basicamente todos os grandes clubes do Rio eram comandados por bicheiros. Os clubes precisavam do dinheiro e poder deles. Tendo crescido num ambiente perigoso, coisas que parecem aterrorizantes ou arriscadas para nós eram algo que Kaiser não registrava. Acho que ele estava tão acostumado a viver no limite e testar sua sorte que tinha um conhecimento instintivo do que ele conseguiria se safar. Acho fascinante como ele lembra de todas as mentiras e como fez malabarismos com diferentes histórias. Ele organizava orgias para o time inteiro e Pinheiro, um bicheiro de 75 com uma prótese peniana, também participava. Kaiser simplesmente sabia o que as pessoas queriam – quando ele estava no Fluminense, um colega de time nocauteou alguém numa boate, e Kaiser assumiu a culpa. Ele fazia o que precisava para agradar as pessoas.

Louis Myles: Falamos com o Dr. Kevin Dutton da Universidade de Oxford, na Inglaterra, que fez várias coisas para a TV analisando golpistas e é amigo de Frank Abagnale Jr., cuja história é a base de Prenda-me se For Capaz. O Dr. Dutton disse que nunca tinha visto um trapaceiro que conseguisse gerar tanta simpatia como Kaiser. Ele fechou contratos reais com alguns dos maiores times de futebol da América do Sul.

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Um still do filme onde Kaiser é entrevistado pelos diretores.

O que acontecia no Rio na época que permitiu que Kaiser vivesse aquela vida?

Rob Smyth: Essa é uma das coisas mais interessantes do filme, acho. Parece uma história que não poderia ter acontecido em nenhuma outra parte do Brasil, quanto mais do mundo. A cultura do Rio é muito informal e oral, o que permitiu a ele abordar as pessoas sem ter que passar por toda burocracia. As coisas eram feitas verbalmente, por confiança, e as pessoas não faziam muitas perguntas. Isso mostra a importância de ter uma sabedoria de rua. Ele era e ainda é extremamente inteligente, mas principalmente é só um cara que viveu de sua lábia e viu até onde conseguia chegar.

Louis Myles: Além disso, os brasileiros estão acostumados a ter figuras desse tipo em sua cultura; o malandro ou 171, que é o código nacional para o crime de fraude. Eles existem por necessidade; atualmente, você tem 65% das crianças vivendo em extrema pobreza, e mesmo se tem dinheiro, a burocracia lá é uma loucura. Eles têm essa coisa chamada jeitinho brasileiro, que é a filosofia de tirar o que puder de qualquer situação. Kaiser é um clássico malandro vezes mil. Os brasileiros apreciam que haja pessoas, especialmente no Rio, que conseguem contar uma boa história, divertir e manipular certas situações.

No filme, vocês dizem que Kaiser jogou 30 partidas em sua “longa carreira”. Vocês já viram alguma filmagem dessas participações?

Não. Quer dizer, é isso que os documentos dizem, mas pessoalmente acho que ele nunca jogou.

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E a mulher no filme que diz que ainda tem um vídeo que Kaiser deu a ela dos destaques dele nos anos 80 e 90? Acho que era para o time argentino Independiente…

Louis Myles: Acontece que tinha um jogador chamado Carlos Henrique jogando nesse time na época, e “Carlos Henrique” é o nome verdadeiro de Kaiser. Esse cara tinha o mesmo nome que ele, tinha o mesmo corte mullet… Entende o que ele fez aqui? Mas a mulher ainda acredita que o Kaiser com quem ela transou era o que aparece fazendo os gols na fita.

Rob Smyth: Acho que muitos jogadores sabiam que Kaiser não era um jogador de verdade. Mas ele foi muito esperto fazendo amizades com pessoas poderosas – Bebeto, por exemplo, vencedor da Copa do Mundo com quem ele jogou no Vasco da Gama algumas vezes. Ao mesmo tempo, tenho certeza que muita gente não fazia ideia do que ele estava fazendo, ou talvez soubessem, mas era um tipo de chantagem tácita porque ele sabia os podres de muita gente… Algumas coisas não pudemos colocar no livro ou no filme por razões legais. Todo mundo fala sobre ele com muito carinho, e acho que a maior parte disso é genuíno, mas você fica imaginando, agora que esses homens são mais velhos, casados ou até deputados, quanto eles se preocupam com os danos que ele poderia causar.

Se alguém passa os principais anos da sua vida fingindo ser alguém ou algo que não é, você imagina que isso vai voltar para assombrá-lo. Em que ponto do filme vocês perceberam que Kaiser não era diferente e que essa história acabaria mostrando a diferença de quem ele era na época, quem ele é agora e a dor de viver no meio disso?

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Rob Smyth: Acho que você tem uma lenta revelação. Acho que foi na quarta viagem que a história dele começou a desmoronar um pouco e ele foi sendo levado a fazer certas coisas, o que mudou muito o tom do filme, acrescentando nuances e deixando de ser só a fantasia de um cara. Em certo ponto ele fala sobre um israelense dono de um restaurante de frutos do mar. Nisso ele sugeriu que o pessoal do filme falasse com um homem chamado Fabinho, que jogava no AC Ajaccio na França. Quando falamos com o cara, acho que Kaiser percebeu que não poderia ditar tudo do filme, que não seria só O Mundo Segundo Kaiser. Acho que aí o filme começou a explorar um território com que ele não estava totalmente confortável. Ele teve muitas perdas também. E acho que ele não queria falar sobre isso necessariamente.

Suas duas esposas e um filho morreram…

Sim, e novamente, todo mundo vai te dizer coisas diferentes sobre o que aconteceu. Acredito que a primeira mulher dele, Marcela Mendes, morreu; todo mundo confirmou isso. Os outros, bem, é difícil saber com certeza. Há poucas fotos. Ele era vago sobre os detalhes. Imagino se às vezes ele não usava o termo significando que eles estavam mortos para ele. Mas a Marcela morreu com certeza. E essa provavelmente é a parte mais triste da história, porque parece que eles ficaram juntos por muito tempo, que ele realmente mudou e se tornou uma pessoa diferente – mas quando ela morreu, ele não tinha pra onde ir, então voltou a ser o Kaiser. O problema é que ele não tinha mais 25 anos, não era mais bonito nem estava cercado de amigos famosos.

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Kaiser (direita) com a lenda do futebol brasileiro Carlos Alberto Torres.

Como foi filmar essas cenas, Louis?

Louis Myles: Cara, foram os dias mais difíceis de filmagem da minha vida. A entrevista inteira tem três horas e meia, passadas no apartamento dele no Flamengo. Não sabíamos que teria essa mudança de ritmo. Todo mundo estava rindo, mas, num piscar de olhos, tudo mudou. Isso aconteceu durante dois dias – sabíamos que tinha algo errado na nossa terceira viagem, mas sabíamos que para conseguir o que a gente queria, tínhamos que encontrar o Fabinho. Assim que a entrevista aconteceu, Kaiser ficou louco; ele descobriu de algum jeito. Fomos para o apartamento dele – nunca tínhamos entrado lá em todos aqueles anos filmando. Quando chegamos ele estavam num estado horrível. Era o fim de um grande jogo de gato e rato entre nós e Kaiser. Mas mesmo então, foi difícil. Era um homem desnudando sua alma – mas na metade da filmagem, você ficava pensando: “Bom, quanto disso é verdade?”

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Kaiser (direita) com Renato Gaúcho, ex-jogador profissional e agora treinador do Grêmio.

Quanto do que ele diz no filme é verdade, na sua opinião?

No final das contas, como algumas pessoas dizem, a verdade não importa – o que importa é a história desse cara que criou um verdadeiro conto de fadas dentro do futebol, ou pelo menos uma narrativa para si mesmo. Essas histórias agora são folclore. Recebemos uma ligação de um cara do Museu Nacional do Futebol no Brasil dizendo que eles querem fazer uma seção inteira sobre ele. Ele literalmente vai entrar para a história do futebol. O cara disse: “como devemos chamá-lo?” E eu disse que não sabia pois minha opinião sobre ele muda toda vez que assisto o filme. Ele é o grande farsante do futebol? O maior mentiroso? O maior mito ou contador de histórias? Ele é a grande armação do futebol?

Ele poderia ter sido só um cafetão – e isso é algo que acreditamos por um tempo. Mas aí teve esse cara com que falamos no Vasco que disse que não, que eles o trouxeram para cuidar de um jogador da seleção brasileira que era alcoólatra e estava com muitos problemas, e ele fez um trabalho brilhante. Ele não é só uma dessas coisas – ele é tipo um Lobo de Wall Street misturado com Walter Mitty misturado com Forrest Gump… Você podia costurar todos esses personagens e ainda não chegaria perto de Kaiser, porque ele é único. Alguém no filme diz: conte uma mentira quatro vezes e ela se torna verdade.

O que Kaiser achou do filme?

Ele não assistiu tudo, em parte por problemas de visão dele e parcialmente porque não voltamos lá desde que terminamos de filmar. Estamos esperando o clima político se acalmar. Mas Kaiser viu a maior parte, e contamos a ele como termina. Ele sabe. Não julgo ele; falo com ele quase todo dia e ele está ótimo. Acho que quem assistir o filme vai tirar sua própria versão da história. E isso era muito importante para nós. Respondemos muitos questionários sobre o filme agora, e as reações são sempre diferentes; você tem um cinema com 300 espectadores onde todo mundo sai odiando ele. Alguns dias depois você tem outra exibição e acontece o oposto. Ele é, no final das contas, quem você acredita que ele é.

Kaiser: The Greatest Footballer Never to Play Football está disponível em streaming e DVD. Compre o livro Kaiser! de Rob Smyth aqui.

@hydallcodeen

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