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alimentação

Como nos fizeram acreditar que chocolate amargo é saudável

Muitos dos estudos são financiados pela própria indústria do cacau.
Joannawnuk/Getty Images.

Esta matéria foi originalmente publicada no Tonic .

Um dia na vida você conhece aquela pessoa — a rara pessoa que não gosta de chocolate. O resto do mundo não só gosta, como deseja chocolate mais do que qualquer outra guloseima. Na verdade, muitos estudos psicológicos usam o chocolate como o santo graal da larica, o ingrediente que nos faz salivar a menor menção ao ingrediente.

Então, quando surgem estudos ligando o chocolate a uma saúde melhor, estamos mais que dispostos a acreditar. Veja a descoberta de 2015, por exemplo, de que uma barra de chocolate por dia ajudava na perda de peso. A notícia circulou desde o The Irish Examiner até estações de TV no Texas. Que pena que era só uma armação bem elaborada, para mostrar a cobertura preguiçosa da mídia em pesquisas científicas para um documentário expondo a indústria de dietas.

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E quando um estudo no jornal Heart mês passado ligou o consumo de chocolate a uma redução do risco de fibrilação atrial — uma irregularidade dos batimentos cardíacos potencialmente mortal — as manchetes declararam a sobremesa boa para o coração mais uma vez. Isso apesar de os autores do estudo escreverem, logo no resumo, que "perturbação residual não pode ser descartada".

Um editorial que acompanhava o estudo previa a cobertura positiva da mídia — "É excitante pensar no potencial de anúncios de saúde pública divertidos, como 'Coma mais chocolate para prevenir fibrilação atrial!' ou 'Um chocolate por dia mantém o cardiologista longe!'", escreveram os pesquisadores Sean Pokorney e Jonathan Piccini.

Ainda assim, os pesquisadores advertiram que slogans encorajadores do consumo do chocolate poderiam ser prematuros. Por exemplo, os consumidores de chocolate no estudo eram mais saudáveis, tinham mais estudo e se exercitavam mais que aquelas pessoas que passam meses sem comer um pedacinho de chocolate — significando que você não pode provar que foi o doce que fez diferença em seus batimentos cardíacos.

Questões assim surgiram em estudos sobre nutrição de maneira geral, e sobre chocolate em particular, o que dificulta que um leitor médio desse tipo de assunto (eu e você) tenhamos dificuldades de tirar alguma informação útil da pesquisa. Estudos observacionais como o que citamos envolvem pegar um grupo grande de pessoas, pedir a elas que digam o que estão comendo (usando questionários de frequência de consumo, que os próprios autores apontam que levantam preocupações com "falta de memória") e aí ver as associações entre o que as pessoas dizem que comem e os tipos de problemas que elas desenvolvem — ou não — ao longo do tempo.

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"O chocolate apareceu como um fator, mas outros alimentos também podem ser [na prevenção a doenças cardíacas]. É por isso que você não pode dizer que chocolate é a causa de uma redução na fibrilação atrial; essa observação pode vir de vários outros fatores", diz Marion Nestle (que não tem relação com os fabricantes chocolate), professora de nutrição, estudos alimentares e saúde pública da Universidade de Nova York, nos EUA.

Ela também mencionou os problemas da falta de memória: "Acho essas coisas [questionários de frequência de consumo] impossíveis de preencher, porque não lembro o que comi com tanta especificidade". Outros estudo observacionais grandes já ligaram cacau ou chocolate a uma redução no risco de insuficiência cardíaca, diabetes, derrame e declínio cognitivo. Quando estudos descobrem associações entre certos alimentos e benefícios à saúde, os cientistas geralmente trabalham de trás para frente para entender o porquê.

No caso do chocolate, eles suspeitam que um composto chamado flavano-3-ol — encontrado no cacau mas também em chás, bagas e vinho tinto — merecem muito do crédito. O flavano-3-ol parece aumentar a produção de óxido nítrico no corpo, um composto que dilata as veias e artérias, fazendo o sangue fluir com maior eficiência. Isso inclui o cérebro, o que pode explicar os efeitos do chocolate no humor e cognição.

O flavano-3-ol também impede que as células vermelhas se tornem perigosamente grudentas e parece aumentar a sensibilidade à insulina, melhorando nossa capacidade de usar esse hormônio para converter açúcar em energia e afastar a diabetes, diz Georgie Fear, nutricionista e autora de Lean Habits For Lifelong Weight Loss.

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Uma metanálise de 2016 de testes controlados aleatórios — o padrão de ouro para medir a eficácia de dada intervenção, seja uma nova droga ou uma barra de chocolate — encontrou evidências de que 200 a 600 miligramas de flavano-3-ol por dia melhoram a sensibilidade à insulina e os níveis de colesterol. E um estudo publicado no começo deste ano pela Cochrane Database of Systematic Reviews, muito respeitada por seus resumos cuidadosos de pesquisas médicas, descobriu que uma dose média de 670 miligramas reduz a pressão arterial em cerca de quatro pontos em pessoas com hipertensão.

Testes de longo prazo são necessários para determinar se o consumo de chocolate pode prevenir coisas como ataques cardíacos e diabetes.

Nos dois casos, os revisores de pesquisa apontaram que testes de longo prazo são necessários para determinar se o consumo de chocolate ou flavano-3-ol, com o tempo, tem realmente um impacto em prevenir coisas como ataques cardíacos e diabetes – em outras palavras, se isso realmente pode melhorar a saúde e estender a vida. Isso é importante de se medir porque, mesmo se o flavano-3-ol tem benefícios, eles podem vir num pacote com calorias, açúcar e gorduras extras, diz a nutricionista da Filadélfia Libby Mills, porta-voz da Academia de Nutrição e Dietética. Então é importante considerar a imagem maior quando estiver tomando decisões nutricionais.

Outra questão: muitos desses estudos sobre os benefícios para a saúde do chocolate (mas não o estudo sobre fibrilação atrial) são financiados pela indústria do cacau. Na verdade, o fabricante dos M&Ms, Snickers e outros doces estabeleceu em 2012 o Mars Center for Cocoa Health Science especificamente para esse tipo de pesquisa. A empresa também vende um suplemento chamada CocoaVia, que diz "promover um fluxo sanguíneo saudável da cabeça aos pés" — apesar de, como muito suprimentos, essas afirmações não serem avaliadas pelo FDA (The Food and Drug Administration).

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O financiamento da indústria não significa que um estudo é, automaticamente, inválido, mas indica que os resultados tendem a vir com conclusões mais favoráveis e exigem "interpretações cuidadosas", disse Nestle. E aí tem a questão da dosagem. Testes controlados aleatórios podem usar barras de chocolate, bebidas feitas à base de cacau, ou cápsulas como o CocoaVia. Mas em cada caso, eles são calibrados precisamente para entregar um número específico de miligramas de flavano-3-ol, um número que não está incluindo nas informações nutricionais de uma barra de chocolate que você compra no mercado, por exemplo.

Falando de modo geral, quanto mais amargo o chocolate melhor, diz Fear. Chocolate branco, por definição, não contém nenhum flavano-3-ol. Um estudo do Journal of Functional Foods apoia a noção de quanto maior a porcentagem de cacau num chocolate amargo, mais flavano-3-ol ele entrega.

Mas ainda não é possível ter certeza exatamente de quanto de flavano-3-ol você está absorvendo. Suplementos prometem altas doses com menos calorias, mas grupos de teste de consumo desses produtos dizem ter encontrado uma variação grande de níveis de flavano-3-ol e até alguns contaminantes (e diferente de medicamentos prescritos ao até de venda liberada em farmácias, o FDA não regula exatamente o que entra nesses suplementos).

Apesar de acreditarem que cacau e chocolate contém substâncias que promovem a saúde cardíaca, nem Mills nem Fear aconselham pessoas que não comem chocolate a começar a comer o doce agora. Afinal de contas, você consegue as mesmas vantagens de alimentos com muito mais nutrientes — em outras palavras, que contém mais vitaminas, minerais e outros compostos com cada caloria. "Se podemos conseguir flavano-3-ol de chás, frutas ou vegetais, essa é a primeira coisa que eu recomendaria fazer", disse Mills.

Mas há outro benefício importante para considerar: comer alimentos que você realmente gosta. "Nunca conheci alguém que não gostasse de consumir algum tipo de doce", disse Fear. Para muitas pessoas, o consumo de chocolate é mais fácil de controlar que outras sobremesas; se assa uma fornada de brownies ou compra um pote de sorvete, você pode acabar comendo demais, mas alguns quadrados de uma barra de chocolate de qualidade parecem muito mais satisfatórios. Acrescente a isso o fato de que o chocolate pode ter alguns benefícios para a saúde, e essa pode ser uma escolha mais inteligente para sua larica de doce.

Tradução: Marina Schnoor

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