​O Paraíso não É Perfeito: Uma Pensata sobre a Noite do Glastonbury

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Música

​O Paraíso não É Perfeito: Uma Pensata sobre a Noite do Glastonbury

Por que a programação noturna, especialmente a dedicada à dance music, é um verdadeiro universo paralelo no maior festival de música do mundo.

O sol já nasceu faz uma hora, talvez mais. É quase 7 da manhã, e um homem esquelético em um casaco de pele, usando um chapéu está se aproximando de mim. Enquanto ele se aproxima, percebo que tem um furão morto em volta de seu pescoço. Estando acordado há cerca de 26 horas, digamos que não estou no estado ideal para essa interação, então giro minha cabeça em todas as direções possíveis tentando fugir de seu olhar. Ele está se aproximando, desviando de corpos esparramados e fogueiras, chutando latas. Então, segundos antes dele me alcançar, o desconhecido do casaco de pele é atraído por um amigo com grossos dread locks, um colete de couro de carneiro e uma vara de pescar na mão. Eu deito de volta aliviado, a luz do sol matinal lavando meu rosto enquanto fecho os olhos. Isso é uma noite do festival Glastonbury — por um segundo parece bizarro e lindo, no próximo parece feio e interminável. É um paraíso em seus próprios termos.

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Existem dois jeitos possíveis de viver o festival.

A) Você pode, é claro, ir para a experiência BBC. Acordar com o sol todo dia, andar por aí com galochas pegando os ecos de bandas mais superestimadas no palco Other, esperando em filas por burritos e massagens no couro cabeludo.

B) Ou você pode ir no Glastonbury à noite. Andar caoticamente através dos dias, dormindo onde puder achar uma sombra, até a noite o trazer de novo uma onda de energia, e você faz a jornada até os vilarejos de dance music.

Nós, escolhemos a razão B. Obviamente as chamadas dos jornais vão ser sobre o palco Pyramid, mas o Glastonbury tem um dos lineups eletrônicos mais fortes do mundo. E nós tentamos ver o máximo possível.

Foto pot Jake Lewis.

Chegamos ao lugar e armamos nossas barracas, experimentando a empolgação única de nos preparar para a primeira noite. As malas que estavam pesando em nossos ombros foram jogadas no chão, a tenda foi rapidamente montada e tínhamos o primeiro suprimento de latas quentes de cerveja em nossas mãos. Enquanto fumávamos o primeiro cigarrinho, sentávamos na nossa cadeira de praia, o ar estava repleto de um sentimento entre alegria e expectativas impossíveis. É disso que o Glastonbury é capaz agora. Mais de quarenta anos depois da inauguração do festival, ele cresceu tanto — numa proporção física e imaginária — que se transformou em algo bem maior do que qualquer uma das bandas ou palcos que o preenchem. É uma terra de fantasia onde se perder. É quente pra caralho ou alagado também. Certamente a semana mais longa da sua vida.

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Muito disso acontece graças ao crescimento natural do festival. Longe da alegria de festivais como o Burning Man, o público do Glastonbury parece fazer parte da paisagem. A maior parte do tempo, enquanto andávamos entre árvores iluminadas por lanternas e palcos elaborados que cuspiam fogo, o rosto de homens e mulheres perdidos em vestimentas bizarras nos mostravam personagens que pareciam tão sinceros que era difícil imaginar como eles podem voltar a ser estudantes, corretores de seguro ou enfermeiras ao final do festival.

Em termos de música, nós fomos mimados. De Hot Chip, a Seth Troxler, a Mumdance, a Caribou, a Idris Elba (isso mesmo), os DJs e artistas eletrônicos no festival trouxeram sua melhor face. Tinha grandes nomes em grandes lugares. Começando nosso fim de semana com J.E.S.u.S. (Jackmaster, Eats Everything, Skream e Seth Troxler), ou o próprio Jamie xx que puxou a noite de sexta-feira com um set maravilhosamente ritmado no Park Stage. Ainda assim, como costuma ser no Gasltonbury, alguns dos maiores presentes estavam nos menores lugares, e isso não era mais verdadeiro quanto no Stonebridge Bar, uma tenda lotada contendo um set focado no Italo de Bicep, que deu lugar a uma colaboração entre Ben UFO e Joy Orbison. Momentos como esse são o que mantém o Glastonbury vivo. Não é que tem "alguma coisa para todo mundo". Todo mundo está lá para alguma coisa. Enquanto estávamos no Felix Dickinson no Block 9 ou no jungle do Mandidextrous no Unfairground, a plateia que se instalou lá era devota. Com um público de 177 mil pessoas, você pode apostar que cada apresentação vai atrair um pequeno exército de cabeças, algo como cinquenta clubes surgindo ao mesmo tempo. Isso tudo em uma fazenda.

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O festival atrai as pessoas, e é aí que as coisas ficam estranhas. Glastonbury tem tudo, e um pouco mais. Com tanto a oferecer, e com a liberdade hedonista que cinco dias anônimos no meio do interior proporcionam, é fácil ficar um pouco perdido. Enquanto costurávamos através dos campos lotados na noite de sábado, um casal nos abordou, achamos que, para nos perguntar alguma coisa. Quando eles chegaram perto, o garoto falou: "Ela é apenas uma ervilha, uma ervilha na vagem". A menina deu uma risada, e se enrolou como uma bola no chão sujo. Interações como essa são obviamente muito engraçadas, mas também incrivelmente frequentes. Às 11 da noite as pessoas estão como uns malucos ensandecidos às 5 da manhã. Vire seus olhos para Shangri La enquanto o sol está nascendo e vai ser difícil dizer se você está testemunhando o completo brilho, o caos pleno — ou ambos.

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Essa abrangente nuvem de hedonismo vestido de cânhamo nos pegou eventualmente. No começo da manhã de sábado, nós acabamos enfurnados em um pequeno quarto um pouco maior que um armário. Cansaço, luz do sol e tudo mais, nos deixou dançando apenas por reflexo enquanto olhávamos para uma escuridão pontuada pelo globo espelhado. Esses momentos são o outro lado das alegrias de Glastonbury. A escorregada para um tipo de vazio que tal festa expansiva conduz. Saindo das profundezas, percebemos que um grupo de homens com perucas cor de rosa e barbas tingidas estavam rindo de nós — e eles estavam fazendo isso há algum tempo.

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Foto por Jake Lewis.

É claro que podíamos ter ido dormir, mas o Glastonbury não quer que você faça isso. Sempre tem algo a mais, outro plano. Um amigo de um amigo que está discotecando de uma van de fish and chips, o Dalai Lama, etc. Em certo ponto, tivemos que encarar os fatos: era uma possibilidade perder o Sound Machine de Ibibio para ter nossas mentes de volta. Nós estávamos vagando há três noites seguidas e precisávamos de mais de três horas para nos recuperar dessa vez. Acordar no começo de uma tarde de domingo, sob o calor furioso de uma barraca no sol, nos sentimos ao menos um pouco mais preparados para mais música. Aproximando-se do final do fim de semana, o festival todo toma a mesma atitude de aproveitar o que ainda resta. Tanto a terra revirada e lotada de lixo quanto as massas mal lavadas dão um grande suspiro, pronto para adentrar mais uma vez nas árvores.

Domingo, apesar de ser o dia associado com aquele sentimento bosta "aqui vem o mundo real" enquanto o fim de semana fica mais devagar, foi um dia de magia absoluta. Com os olhos turvos e lutando contra a fome com o que restava das nossas barras de cereal amassadas, aproveitamos a perfeitamente colocada apresentação da FKA Twigs, antes de ir até o palco Wow! para os beats assustadores de dub de The Bug. Daí pra frente, pegamos nossas últimas latas de cerveja e marchamos até o palco Genosys para ver Robert Hood.

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Foi então que, enquanto o sol transformava o céu da noite negra em um azul leitoso, Hood soltou "Get Over U" de Frankie Knuckles & Director's Cut, uma mulher fedorenta com um chapéu de policial e tutu de bailarina me ofereceu um pacote vazio de balas mastigáveis, que no nosso maravilhoso e exaustivo fim de semana fez muito sentido. Para aproveitar o melhor da noite do Glastonbury, você precisa se preparar para o pior. Juntas doloridas, queimadura de sol, doença, olhares estranhos e cheiros mais esquisitos ainda. Se você conseguir passar por isso, o melhor vai te deixar nos ares.

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Tradução: Pedro Moreira