FYI.

This story is over 5 years old.

Entretenimento

Hou Hsiao-Hsien, o Diretor de 'The Assassin', Fala Sobre seu Filme Feminista de Artes Marciais

Conversamos com o renomado diretor sobre seu nome filme cuja protagonista é uma assassina que não fala, mata homens e não mostra quase nada de pele.
Todas as imagens foram cedidas pela Well Go USA Entertainment.

Eu tinha acabado de sair da minha entrevista com o aclamado diretor Hou Hsiao-Hsien e me vi no elevador conversando com Genevieve, a publicitária do filme. Ela tinha uma inteligência rápida e despretensiosa, um piercing no lábio superior, uma franja incrível e coturnos Dr. Martens.

"Você já conheceu o diretor?", ela perguntou. "Eu ainda não, mas preciso! Estou obcecada com The Assassin." O zelo dela era palpável. Tenho de dizer que também saí da exibição para a imprensa entusiasmada, assim como uma outra crítica, de quem pude ouvir a conversa, dizendo que aquela era a quinta vez que ela via o filme, que estreou neste ano em Cannes e rendeu o prêmio de melhor diretor a Hou.

Publicidade

Eu queria saber do que Genevieve tinha gostado na película. Ela falou sobre a habilidade de Hou de contar uma história emocionalmente complexa usando apenas imagens. Ela mencionou a beleza da composição. Entretanto, fiquei imaginando se nosso amor pelo filme não tinha a ver com a heroína vestida de preto, uma assassina que não precisava ser salva e que ganha todas as brigas. Que pode matar homens – ou não. Que está sempre no controle de suas decisões. E que não precisa mostrar muito o corpo.

Creditado por inaugurar a Nova Onda do Cinema de Taiwan, junto com Edward Yang e Tsai Ming-Iiang, Hou Hsiao-Hsien não é amplamente conhecido como um diretor feminista – não ainda. Ele é mais conhecido por seu estilo neorrealista muito próprio: longas tomadas estáticas, ritmo lento e uma propensão para mostrar conflitos históricos memoráveis dentro de tranquilas cenas domésticas. Suas obras são como um diário: cheios de armadilhas da vida cotidiana e dos momentos perdidos que preenchem o dia a dia.

The Assassin tem um estilo e uma temática consistentes com os filmes que ele fez na década passada. Durante a Dinastia Tang, a assassina Nie Yinniang (Shu Qi) recebe ordens de matar seu querido noivo. Uma mistura perfeita de fantástico e mundano, The Assassin segue o gênero bem trilhado wuxia (artes marciais) enquanto se mantém fiel a percepções básicas de realismo. As cenas de luta são curtas, sem adornos e confinadas ao reino da gravidade. Na verdade, as lutas parecem quase obrigatórias, retratadas apenas porque a luta é parte da vida de uma assassina.

Publicidade

Começando com Millennium Mambo (2001), os longas de Hou se centram em uma protagonista solitária e sua busca por amor. Café Lumière (3003), a versão contemporânea de Hou para Era Uma Vez em Tóquio, de 1953, é sobre uma jovem pesquisadora que se descobre grávida e decide ter o filho sozinha. Seu filme seguinte, Três Tempos (2005), se passa durante três períodos diferentes: o primeiro conta a história de uma garota de salão de bilhar e se passa durante o período de lei marcial de Taiwan; o segundo é sobre uma cortesã tentando negociar sua liberdade e se passa durante a ocupação de Taiwan pelo Japão. As duas partes são compostas quase que exclusivamente por tomadas estáticas de interior enquadrando portas abertas, pelas quais homens entram e saem trazendo notícias, dinheiro e afeto fugaz.

Se essa não é uma decisão consciente, a tendência de Hou de abordar protagonistas fortes valia ser investigada. Conversei com o diretor e perguntei por que ele está se tornando, intencionalmente ou não, um cineasta feminista.

VICE: Por que você decidiu fazer um filme sobre uma assassina?
Hou Hsiao-Hsien: Bom, li a história pela primeira vez na faculdade. Na época, eles tinham publicado uma coleção de contos da Dinastia Tang. Todos com cerca de mil palavras. Gostei muito dessa história sobre Nie Yinniang, especialmente o começo.

Você achou a história excepcional porque essa assassina era mulher?
Na verdade, havia muitas assassinas naquela época, mas essa me pareceu especial. A história é sobre a filha de um general levada por uma freira daoista, que fica muitos anos fora treinando para se tornar uma assassina. No final, seu treinamento está tão avançado que ela tem o poder de se transformar em um inseto e escavar para dentro do estômago da vítima. Achei isso um pouco exagerado. Então só usei a primeira parte da história.

Publicidade

Shu Qi mal fala durante o filme, embora você consiga ver o conflito interno em suas expressões. O que causa o sofrimento dela?
Há uma cena no filme em que Nie Yinniang tem de ouvir a mãe recontar a história de seu passado. Antes de ser levada, ela deveria se casar com Tian Ji'an [Chang Chen], o homem que ela deve matar. Tian Ji'an foi seu primeiro amor. Quando eram jovens, eles estavam sempre juntos. Mas, infelizmente, não aconteceu. Outra garota se casou com ele, porque uma província próxima tinha reunido 10 mil homens e estava pronta para atacar. As mulheres da época tinham casamentos arranjados, elas se casavam por motivos políticos. A própria princesa Jiaxin se casou por uma trégua. Ela foi sozinha a uma terra estrangeira e era a única de seu tipo. Ela tinha um dever a cumprir. Foi muito solitário para ela.

"Quando Shu Qi veio me ver pela primeira vez no meu escritório, ela tinha essa atitude. Ela sabia que eu era um diretor conhecido, mas agiu tipo: 'E daí? Pode mandar!'."

A história sobre a fênix azul fala das mulheres desse período?
A história sobre a fênix não é inerentemente sobre mulheres, acontece de ser uma dessas coisas que as mulheres acabam sofrendo. A história da fênix azul é de um período mais antigo que o Tang. Muito antigo. A qin luan [fênix azul] já era sinônimo de espelhos nessa época. A história é sobre um pássaro azul que é trazido para o palácio, porém, por três dias, não emite nenhum som. A imperatriz diz ao imperador que esse pássaro deve ser o único do tipo. Por que não colocar um espelho na frente dele? Assim, eles colocam um espelho na frente do pássaro, ele vê sua própria imagem e começa a dançar. Ele fica tão empolgado que dança a noite toda. Ele dança até morrer. Quando ouvi essa história, pensei: tem muito significado aí.

Publicidade

Há uma razão para que a personagem de Shu Qi fale tão pouco? Pensei que, depois que ela vai receber seu treinamento e ganha tanto poder e habilidade, ela não pode mais realmente se comunicar com aqueles à sua volta.
Não acho que haja tanto simbolismo nisso, honestamente. Eu sabia que não queria que ela falasse muito. O sotaque dela não teria se encaixado para um filme da Era Tang. Shu Qi gostou de não ter muitas falas. Ela não teve de decorar nenhum roteiro. Ela só diz umas 16 falas no filme inteiro. Ela conta a história de fênix azul.

O que te levou, depois de Millennium Mambo, a fazer filmes apenas com protagonistas mulheres? Essa é uma decisão consciente?
É tudo por causa de Shu Qi! Antes de filmar Millennium Mambo, eu fazia trabalhos para a TV. Eu a vi num desses comerciais. Ela era muito linda. Ela tinha essa aura incrível. Descobri que ela era de Taiwan, embora tivesse ido trabalhar em Hong Kong. Contatei o diretor e produtor Wen Jun. Perguntei se ele podia me colocar em contato com ela para um filme. Quando estava em Hong Kong, ela fez filmes estranhos… soft porn e coisas assim. Eles não viam o verdadeiro potencial dela. No entanto, ela tem uma personalidade forte. Quando se encontrou comigo pela primeira vez no meu escritório, ela tinha essa atitude. Ela sabia que eu era um diretor conhecido, mas agiu tipo: 'E daí? Pode mandar!'.". Ela não tinha medo de mim.

Durante Millennium Mambo, não falamos muito – só deixamos a câmera rodando. O filme aconteceu muito rápido. Meu método é… bom, meus takes são muito longos. Fazemos a cena, mas não ensaiamos. Só filmo. Por exemplo,a cena em que ela está com seu namorado Hao Hao e ele está fazendo aquilo que sempre faz quando ela chega em casa à noite: inspecionando-a, cheirando, tocando, coisas assim. Continuamos filmando. Você vê como ela vai perdendo a calma lentamente. Ela esqueceu que as câmeras estavam lá e pegou uma cadeira para bater nele. Tivemos de gritar "Corta", ou ela teria machucado ele mesmo.

Publicidade

Até esse longa, quando ele finalmente foi exibido em Cannes, ela nunca tinha se visto atuando de verdade. Não assim. Ela sabia como atuava em filmes com cenas curtas. Tudo era costurado junto. Se você precisava chorar, o diretor te filmava, cortava, entrava com lágrimas falsas e começava a rodar de novo. Só que, quando se viu em Millennium Mambo, ela ficou chocada. Depois de assistir ao filme, ela voltou ao hotel e chorou na frente do espelho. Foi demais para ela. Daí em diante, isso mudou completamente a ideia dela de atuar e fazer filmes. Toda a filosofia dela. Então, para esses filmes, eu simplesmente uso a aura, a energia dela. Ela não tem medo.

Ou seja, é assim que você se tornou um cineasta feminista?
[risos] Francamente, também é porque não há atores homens muito bons. Os homens são um pouco mais idiotas. Claro, em Cidade do Desencanto, eu tinha Tony Leung [Chiu-wai], que foi incrível. Entretanto, esse filme também tem a atriz Xin Shufen, que nunca tinha atuado antes. E ela estava ainda melhor que ele, sabe? Acho que é uma questão de instinto. Intuição. É a maior diferença entre os sexos. As mulheres são mais intuitivas. E, quando atuam, elas realmente conseguem se concentrar.


Assista: As guarda-costas de elite da China


Você começou com atores.
Sim. Porque é difícil encontrar bons atores em Taiwan. Eles têm um limite. Muitas vezes, tenho de começar com atores amadores. Xin Shufen, a atriz de Cidade do Desencanto – a encontrei na frente de um teatro. Ela era só uma estudante. Quando a vi, pensei "Uau". Ela tem uma presença incrível. Fiquei com vergonha de abordá-la; logo, acabei seguindo-a por Taipei. Uma hora, conseguir pegar minha identidade e dar a ela. "Sou Hou Hsiao-Hsien. Por favor, você pode me dar seu telefone?" Ela conhecia meu nome. Depois disso, filmamos muito juntos: Poeira no Vento e uma pequena parte em A Time to Live and a Time to Die. Aí ela foi aos EUA para casar com seu namorado do ensino fundamental! Tive de implorar para que ela voltasse e fizesse Cidade do Desencanto.

Publicidade

Shu Qi colaborou com o roteiro? Já que você estava essencialmente criando o filme em torno dela?
Não. Dou alguns livros para ela ler quando estamos filmando alguma coisa. Para The Assassin, foram as histórias da Era Tang e os romances de samurai. Não falei muito com ela sobre isso. Simplesmente dei a ela livros de Tsunetomo Yamamoto, que acho muito bons. Também dei esses livros a Chang Chen. Para que eles tivessem uma ideia, uma sensação do que era ser um guerreiro. Mas não disse que eles tinham de atuar de um jeito específico. Eles tinham de entrar naquele mundo.

Sei que você colabora frequentemente com a romancista Chu T'ien-wen nos roteiros. Como você começou a trabalhar com ela? Como é o processo de colaboração?
Tenho trabalhado com ela há muito tempo. A primeira vez foi quando li um ensaio dela para um jornal. Entrei em contato com ela. Fizemos The Story of Bi com aquele ensaio. Geralmente, conversamos. Começamos com um romance, discutimos, organizamos. Coleto o que posso usar e trabalho a partir disso. Porque é impossível pedir para pessoas literárias escreverem um roteiro. Tenho de escrever isso eu mesmo.

Você escreve todas as narrativas e os diálogos?
Sim. Sou um excelente roteirista, na verdade! [risos] Quer dizer, em se tratando disso, tenho de controlar o filme. Só eu sei como tudo se encaixa, cena por cena. Roteiristas usam palavras para construir as cenas. Eu uso imagens. A mente cria a imagem. Aí tenho de transformar a imagem em palavras para o roteiro.

Siga a Anelise no Twitter.

The Assassin estreou em Nova York e Los Angeles no dia 16 de outubro, e deve ser lançado em outros países a seguir.

Tradução: Marina Schnoor.

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.