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Explorando o Idílico Prado da Morte na Caxemira

O Tosa Maidan, além de ser considerado um tapete verde e possuir a fragrância das flores silvestres do verão, também é conhecido por conter diversos explosivos não detonados, espreitando na grama alta junto com tais flores perfumadas.

Mohammad Abdullah Malik, um agricultor e lenhador de 65 anos, perdeu a mão em 2010 enquanto cortava grama no prado.

O Ministério do Turismo da Caxemira fez um ótimo trabalho promovendo a porção deles do vale do Himalaia. “Cedros que tocam o céu cercam os pastos, apresentando a visão de um tapete verde no verão”, diz a sinopse no site deles. “Durante o verão, os campos da comunidade Gujjar e os pastores com seus rebanhos pintam um retrato fascinante. Além disso, a fragrância das flores silvestres refresca todo o ambiente.”

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Parece maravilhoso, não? Pena que o site não menciona que esse prado de três mil acres, o Tosa Maidan, também é conhecido por conter diversos explosivos não detonados, à espreita, na grama alta, junto a essas flores selvagens perfumadas. Essa reputação é um efeito colateral infeliz do modo como o exército e a força aérea indiana usam o Tosa Maidan como estande de tiro de artilharia pesada há 50 anos – um lugar para testar, entre outras coisas, explosivos de 18 e 36 quilos.

Os moradores das aldeias ao redor – e seu gado – acabam entrando em contato com esses explosivos, que explodem com o impacto, matando ou mutilando seriamente suas vítimas.

Mohammad Abdullah Sheikh mostra as fotos dos cadáveres de seus dois filhos e um sobrinho, mortos por uma explosão enquanto brincavam num campo próximo em 1991.

Por 22 anos, Mohammad Abdullah Sheikh tem carregado seus dois filhos no bolso da camisa. Ele os leva para todo lugar.

Tirando-as de uma folha plástica transparente, ele coloca as duas fotos no chão da sala escura onde estamos e aponta para os corpos desfigurados. “Esses são meus meninos”, ele diz. Depois coloca outra foto de um garoto morto ao lado deles. “E esse é meu sobrinho.”

Os dois filhos de Sheikh, um de sete e outro de nove, e o sobrinho de 14 anos tinham levado o gado para pastar na periferia de um campo próximo. Atraídos por um objeto estranho entre a grama, eles foram mortos na mesma explosão.

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“Eu os encontrei despedaçados e eu mesmo os lavei, pedaço por pedaço”, diz Mohammad.

Mulheres recolhem lenha e grama em Tosa Maidan.

Umas dez pessoas estão na sala enquanto Sheikh fala. Entre elas estão dois jovens – um sem o braço direito e outro sem a perna direita – e, no canto, está um homem cuja lembrança mais clara do irmão é vê-lo coberto de sangue. Lá fora, eles me dizem, há várias pessoas esperando por mim na chuva, com seus dedos, mãos e membros amputados, segurando fotos de pais, maridos e filhos mortos. Tenho que me apressar, o ancião da aldeia me diz, para que eu possa ouvir todo mundo.

Estou em Drang, um vilarejo de cerca de 800 famílias no centro da porção da Caxemira que está sob poder da Índia, uma aldeia desconhecida e comum que teve o azar de ficar perto do belo, porém, incrivelmente perigoso, prado. “Tosa Maidan”, eles dizem, apontando para a montanha não muito distante. “Nosso melhor presente, nossa pior maldição.”

De acordo com os números do governo, os explosivos do Tosa Maidan já mataram pelo menos 63 pessoas, mas os aldeões acreditam que o número seja muito mais alto. Também não há estatísticas das pessoas que foram feridas ou incapacitadas, mas parece haver muita gente nessas condições nas aldeias que cercam o prado.

Mohammad Abdullah Khan perdeu o dedo no prado em algum momento da década passada. Ele só lembra que foi na primavera.

Todo mês de maio, centenas de soldados indianos chegam a essas aldeias tranquilas, carregando grandes armas e caixas de explosivos. Eles carregam as armas, apontam-nas para o Tosa Maidan e transformam a área toda numa zona de guerra.

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O prado e os vilarejos ao redor dele são uma das tragédias de um conflito muito maior. A Caxemira, um estado independente até a divisão da Índia em 1947, foi cortada em três por poderes maiores vizinhos – Índia e Paquistão, que controlam partes disso, mas exigem o país na íntegra, e a China, que controla o restante do território disputado. A Caxemira, um dos mais antigos conflitos do mundo, viu uma resistência armada popular ao comando da Índia em 1989; a Índia, então, mobilizou mais de 600 mil soldados para acabar com a insurgência.

O Exército Indiano conta, atualmente, com 300 militantes em todo vale da Caxemira, e a resistência ao domínio da Índia consiste principalmente de protestos nas ruas, pedras atiradas e ativismo de cliques, em vez de insurgência armada. No entanto, mais de 600 mil soldados indianos continuam presentes na Caxemira, protegidos por uma impunidade e imunidade que os impedem de estar sob a alçada até mesmo da lei indiana.

Desde que perdeu seus dedos, 11 anos atrás, Abdul Sattar Malik não pode mais segurar um arado ou enxada. 

“Toda manhã no verão, nossas vidas começam com uma bomba”, diz Ghulam Mohideen, um aldeão que perdeu os dedos cortando grama no prado. “Quando uma granada de mão explode por perto, a pessoa fica surda por alguns segundos – então, imagine quando um explosivo de 36 quilos explode a 800 metros, e depois outro e mais um. O dia inteiro. Todo verão, essa é nossa vida.”

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Mas depois de meio século assistindo ao prado, que é o centro de suas vidas, ser reduzido a um alvo, 51 aldeias que cercam o Tosa Maidan se uniram numa tentativa de mudar seu destino e o do prado. A locação do Tosa Maidan para o exército indiano termina no dia 18 de abril deste ano. Os aldeões veem isso como um potencial novo começo para a comunidade local e lutam para impedir que o exército indiano renove o aluguel do prado.

A artilharia do Exército Indiano numa das aldeias, mirando o Tosa Maidan. (Foto por Javed Ahmad.)

“Durante nossa vida inteira nos disseram que o exército tinha comprado toda a montanha, que isso pertencia a eles e que eles podiam fazer o que quisessem. Mesmo quando meus filhos explodiram, eu achei que a vida era assim”, diz Sheikh. “Mas agora que as crianças aqui estudaram, sabemos que esta terra é nossa, não do exército, e não vamos permitir que eles façam das nossas vidas um inferno.”

Sheikh, 51 anos, conta que nos últimos 20 anos trabalhou em muitos ofícios – padeiro, pedreiro, agricultor, pastor – tentando, sem sucesso, lidar com a morte de seus dois filhos, cujas partes dos corpos ele teve que montar numa forma humana antes de serem enterrados.

“Vivi à beira da loucura e sinto que desperdicei minha vida, mas agora vou lutar com todo mundo para impedir que nossas futuras gerações sejam explodidas”, ele diz.

Farooq Ahmad Lone, 29 anos, perdeu seu braço 14 anos atrás quando brincava no prado.

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Sheikh é parte do grupo Save Tosa Maidan Front, formado pelos aldeões numa tentativa de transmitir seu sofrimento ao governo e pressionando as autoridades para dar um fim ao uso do prado como estande de tiro.

Enquanto isso, o governo da Caxemira dominada pela Índia formou um comitê de alto escalão para analisar as queixas do povo e ver se há outro local que possa ser usado pelo exército indiano. No entanto, o comitê ainda não contatou a administração local do distrito.

“Ninguém falou conosco”, disse Mushtaq Ahmad Baba, comissário de Budgam, a jurisdição onde fica o prado. Mushtaq, a mais alta autoridade civil no distrito, acredita que as exigência do povo são justificadas, mas lembra que o exército precisa de um campo de treinamento de tiro. Ele também confirmou que não existe um sistema de compensação, nem da parte do exército e nem do governo, para as vítimas locais.

“Mas se a locação para o exército for estendida em abril”, diz Baba, “decidimos que haverá compensação monetária para qualquer nova vítima”.

Quando tinha 12 anos, Bilal Hamad pensou ter encontrado uma bola de críquete na grama. Ele lembra de apontar para ela com o pé, antes que uma explosão arrancasse sua perna. Ele lembra de passar o resto da infância vendo seus amigos fazendo coisas que ele não podia mais. 

Mas as pessoas aqui não querem saber de compensações – elas querem que a locação acabe. Há uma agitação nas aldeias, já aconteceram protestos e reuniões, há planos de manifestações na estrada e na cidade indiana de Srinagar. Em abril, eles dizem, a exigência será aceita, ou eles tomarão decisões com que o governo terá que lidar depois.

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“Vamos até lá com nossas famílias, nos sentaremos no meio do prado, e o exército poderá explodir a nós todos de uma vez – igual [à situação atual], nossas vidas não têm valor”, disse Mohammad Akram, chefe do vilarejo de Shunglipora, uma das muitas vilas afetadas ao redor do prado.

Akram explica que é impossível para os aldeões evitar o prado, já que suas vidas dependem dele.

“Vamos até lá buscar lenha, buscar ervas para nós e para o gado – e muitos aqui ganham a vida como pastores, usando o Tosa Maidan como pasto”, ele continua. “Como podemos não ir até lá?”

Cunhadas, as duas chamadas Raje, perderam seus maridos com os explosivos no prado em 2010 e 2012.

Akram, 39 anos, me guia por seu vilarejo e me apresenta a pessoas que foram debilitadas pelas explosões, e também a familiares dos mortos. Enquanto caminhamos até a casa de duas cunhadas que perderam seus maridos em explosões no prado, ele casualmente menciona que seu próprio irmão morreu aqui. Depois, ele para de repente, baixa o zíper de sua meia de couro e me me mostra uma cicatriz.

“Eu mesmo já pisei num explosivo. Não sei como não perdi a perna”, ele diz.

Na verdade, uma em cada seis ou sete pessoas que conheci em Shunglipora arregaçou a manga da camisa ou levantou a barra da calça para me mostrar cicatrizes, pele queimada, ossos deformados ou dedos faltando – ou, simplesmente, contaram histórias de parentes e vizinhos mortos.

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O exército indiano diz que alguns acidentes podem acontecer de fato. Mas nega ter deixado para trás explosivos não detonados e culpa a ganância dos aldeões pelas mortes.

“O exército usa detectores de metais para recolher qualquer explosivo não detonado depois dos exercícios de tiro”, disse um porta-voz sênior do exército em Srinagar. “Mas as pessoas querem vender os cartuchos como ferro velho, então elas recolhem essas coisas antes que os soldados possam encontrar. Assim elas se ferem ou morrem no processo.”

Bashir Ahmad Malik aponta para um projétil não detonado. Ele o esconde das crianças da aldeia, mas não quer se livrar do explosivo para ter provas do que acontece em Tosa Maidan.

Quando menciono isso aos aldeões, todos negam veementemente e um deles – um homem jovem – se oferece para me mostrar um projétil num campo nos arredores da aldeia.

“Você pode ver por si mesmo como acabamos encontrado esses explosivos dentro de nossas casas”, ele diz. “Tenho que esconder esse debaixo de uma pedra, para que as crianças não encontrem.”

Cercado por amputados, fico nervoso em visitar o explosivo, mas concordo por curiosidade.

Malik me explica durante a viagem que, quando a neve derrete no prado, os projéteis rolam pelo córrego Dam-Dam, que passa através dos vilarejos locais. Andamos lentamente por uma encosta nevada enquanto Malik menciona seu tio, que morreu ano passado de uma deficiência prolongada causada por um explosivo do prado. Então, de repente, ele tira um pequeno míssil enferrujado debaixo de uma pedra e o segura bem na minha cara.

“Vi milhares desses em meus 33 anos de vida”, ele diz, “e você nem precisa ir até o prado para encontrá-los”. Malik mantém o explosivo aqui como prova do que está acontecendo em Tosa Maidan, mas as várias pessoas que vi com partes do corpo faltando já deveriam ser prova suficiente.

Este mês, Malik espera que eles finalmente possam acordar de meio século de horror – sem saber se uma viagem para juntar lenha pode resultar em morte ou num membro perdido. Mas ele conhece a política da Caxemira o suficiente para saber que há boas chances que a locação seja estendida, forçando os aldeões a mais 50 anos cuja primavera não quer dizer vida nova, mas bombas novas, prontas para explodir.

@zahidrafiq