"Tive que me tornar adulta e descobrir o feminismo, sobretudo o feminismo negro, para entender que essa dificuldade em encontrar mulheres negras na literatura era responsabilidade do machismo e do racismo no mercado editorial e no meio literário como um todo", conta. Nordestina, mulher e negra, Arraes bate num tipo de perfil pouquíssimo lido e publicado no Brasil, em contraponto com as vozes caucasianas e urbanas do eixo RJ-SP. "Ser escritora no Brasil é lutar contra monstros que continuam vivos desde a época da colonização e que mudam suas roupinhas para ganharem uma aparência menos severa, mas continuam fortes e extremamente cínicos."Considerando o mundo em que vivemos, marcado de uma profunda desigualdade de gênero e, acima de tudo racial, me parece que essa urgência de inserir mulheres em qualquer espaço sob a desculpa da "representatividade" acabou se tornando um jargão publicitário usado para vender algum produto do momento. O mercado editorial acabou reproduzindo esse mantra "desconstruidão", utilizando esse rótulo de literatura feminina como um tapinha nas costas dos próprios editores. Nisso, o discurso de valorizar a produção literária de mulheres — que é urgente e indispensável — se tornou um tanto vazio, resumindo-se apenas a um tema de eventos de literatura ou uma ou outra palestra sobre "o machismo na literatura"."Ninguém me disse diretamente 'você não pode ser escritora', mas se eu só encontrava livros escritos por homens, como poderia pensar diferente?" — Jarid Arraes
Não só na prosa, como na poesia também há uma resistência feminina em valorizar as obras de autoras contemporâneas. Ana Guadalupe, paranaense, autora de dois livros de poesia, vê um ambiente positivamente igualitário. "Acho que na poesia em especial as coisas são um pouco diferentes e algumas das autoras mais reconhecidas, hoje, são mulheres (Ana Martins Marques, Angélica Freitas, Alice Sant'anna, Bruna Beber, só alguns exemplos) que estão em grandes e pequenas editoras.""Um dos problemas de quando o discurso é usado de forma 'publicitária' é essa ilusão de fazer parecer que o cenário está lindo e agora sim temos igualdade, quando na verdade não é bem assim" — Aline Valek
Ilustração por Luiza Formagin.
De certa forma, as obras literárias de mulheres ainda são analisadas com um certo tom de condescendência, como houvesse um espanto de uma mulher poder escrever bem. Me vi passando por situações parecidas ao submeter textos meus à análise de pessoas que curtem literatura. As observações sempre eram primárias, quase como se eles nunca tivessem lido de fato o que escrevi. Não me espantei quando a maioria das escritoras com quem falei para esta matéria relataram experiências parecidas."Dois dos meus primeiros 'interlocutores' literários, pessoas que entendiam de literatura e procurei pra trocar ideia, trataram meus textos de um jeito que hoje acho esquisito. Eu tinha uns 17 anos, tinha acabado de entrar na faculdade, e eles eram homens mais velhos, editavam algumas coisas e tal. Ambos me falaram que os poemas eram fracos e não desenvolveram para além disso (coloquei alguns dos poemas dessa época no meu primeiro livro). Um deles falou que eu deveria 'desistir da poesia, talvez tentar prosa', mesmo que eu tenha deixado claro que amava poesia, e lembro disso até hoje — e ambos foram para um discurso mais próximo do flerte, de chamar pra sair", conta Guadalupe."A verdadeira igualdade na literatura é a liberdade de se escrever sobre o que se quer, sem imposições prévias. Se uma mulher quiser escrever um faroeste, ótimo." — Carol Bensimon
Já Jarid relata que recentemente passou por um caso de plágio em que um homem apagou seu nome das suas obras de cordel, apropriando-se delas. Situações constrangedoras como essas também rolaram nas editoras, nas quais a escritora ouviu que as lendas de Dandara "falavam muito disso, de cor", segundo ela. Agora, conta, os obstáculos parecem estar no fato de que Arraes está prestes a lançar um livro de poesias eróticas. "Recebi comentários de pessoas que acham que vou 'atrapalhar' meu trabalho, porque de alguma forma 'não pega bem' uma 'escritora séria' publicando esse tipo de conteúdo ao lado de obras como meus cordéis e meu livro mais recente."Parece que por mais que discutamos a liberdade sexual, não sobram até hoje observações castas quando mulheres se atrevem a escrever sobre sexo. Uma pena, embora esse tipo de obstáculo se torne uma chacota criada pela escritora, assim como Hilda Hilst fez ao escrever O Caderno Rosa de Lori Lamby."Dois dos meus primeiros 'interlocutores' literários, me falaram que os poemas eram fracos e não desenvolveram para além disso; coloquei alguns dos poemas dessa época no meu primeiro livro." — Ana Guadalupe
No artigo "O romance brasileiro contemporâneo conforme os prêmios literários (2010-2014)" [CC5] a pesquisadora gaúcha Regina Zilberman traçou uma espécie de perfil dos finalistas e ganhadores dos principais prêmios literários no Brasil como o Jabuti, São Paulo de Literatura e o Portugal Telecom de Literatura. Os principais, tiveram como finalistas 62 escritores, sendo 16 deles mulheres. Nesse período, a pesquisadora também destacou que apenas dois escritores negros foram selecionados para a final e que há uma predominância de obras selecionadas de pessoas no eixo RJ-SP, de classe média e, na sua maioria, de uma geração mais jovem nascida entre as décadas de 60 e 80.Nas semanas em que entrei em contato com as escritoras, talvez em busca de respostas muito mais direcionadas às minhas próprias dúvidas, percebi também que o meio literário onde se concentram os prêmios, os eventos e as críticas é tão ensimesmado que esquecemos que o gênero não é a única barreira existente. Por isso fiquei pensando: quantas mulheres e homens existem dentro dessa vastidão brasileira com boas ideias na cabeça que jamais leremos?Siga Luiza Formagin no Tumblr.Siga a VICE Brasil no Facebook , Twitter e Instagram."As mulheres precisam começar a escrever como sujeito da ação, não como objeto do homem" — Márcia Denser