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Tecnologia

Senado aprova projeto de lei que agiliza pesquisas clínicas e prejudica voluntários

Entidades reclamam de falta de preocupações éticas na hora de aprovar estudos com metodologias questionáveis.

Em 15 de fevereiro, pouco antes da lacração sem fim do Carnaval, o Senado aprovou um projeto de lei que muda por completo as regras das pesquisas clínicas no Brasil. Vendido como solução para desburocratizar e incentivar a produção de novos medicamentos no país, o PL 200/15 foi para frente sem despertar muita atenção. Quer dizer, quase. Para a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e outras entidades envolvidas na discussão, houve ligeiro estardalhaço. Segundo eles, o projeto traz grande retrocesso ao reduzir os direitos dos participantes. Precisa, dizem, ser revisto com urgência.

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Em poucas palavras, o PL 200 propõe um afrouxamento do atual sistema de controle. Hoje, para fazer pesquisa clínica no Brasil, é necessário aprovar o protocolo do estudo tanto no Conep — órgão independente ligado ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) e de composição mista entre representantes da sociedade civil, pesquisadores, profissionais da área, entre outros — quanto em algum dos mais de 700 Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) espalhados pelo país e vinculados a instituições de pesquisa públicas ou privadas. Com o novo projeto, tais requisitos não seriam mais necessários.

"A ideia básica por trás do projeto é criar um órgão tecnocrático sem nenhuma participação social e desligado da vida dos doentes para aprovar ou não uma pesquisa", afirma o médico Jorge Venâncio, coordenador do Conep. De acordo com o texto aprovado no Senado, as novas regras prevêem a criação de uma entidade subordinada a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde para atuar ao lado dos CEPs. Dessa forma, o Conep deixaria de existir.

O argumento principal dos responsáveis pelo projeto é acelerar o processo de aprovação de pesquisas. "A média mundial de tempo para o registro de uma pesquisa é de dois meses e, no Brasil, é de um ano a um ano e meio. É incompatível com a necessidade que os pacientes têm", disse por e-mail a senadora gaúcha Ana Amélia, do PP, principal autora do PL.

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Segundo Jorge, o argumento da senadora não é verdadeiro. Embora admita que no começo dos anos 2010 o Conep demorava até um ano para aprovar um protocolo, ele garante que hoje esse prazo não supera 30 dias. "Antes nós tínhamos o seguinte cenário: aprovávamos 75 protocolos por mês e tínhamos uma fila de 830. Hoje analisamos 250 pedidos por mês e temos uma fila de 150. Ou seja, estão usando um problema superado para justificar o desmonte do trabalho que fazemos", explica.

Sessão do Senado que aprovou projeto de lei. Crédito: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Presidente da Casa Hunter, uma associação representativa de portadores de doença de Hunter e outros males raros, Antoine Daher reforça o ponto de vista de Jorge Venâncio. Voz ativa na discussão de melhorias no cenário de pesquisas clínicas no Brasil sobre doenças raras, Antoine teme que o projeto de lei diminua as preocupações éticas na hora de aprovar pesquisas com metodologias questionáveis. "Se quem julgar isso tiver uma colocação totalmente técnica, pacientes e usuários não vão ter mais espaço e o trabalho vai deixar de ser independente. O contrário do que temos hoje", afirma.

Além de extinguir o Conep, o PL 200/15 também muda a regra de composição dos CEPs. Hoje esses Comitês devem ter a participação de um representante dos usuários, alguém que defenda os interesses dos voluntários nas pesquisas. O projeto mantém esse posto, mas complica o seu preenchimento ao exigir que essa pessoa seja vinculada a instituição de pesquisa a qual o CEP faz parte. Por ironia, uma burocracia a mais.

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Problemas no pós-estudo

Outro ponto de contenda em relação ao PL 200/15 é a perda dos direitos dos participantes de pesquisas. As reclamações principais são: a piora na qualidade remédio ofertado ao grupo de controle durante o estudo e o menor acesso à medicação no pós-estudo.

Numa pesquisa clínica, um grupo recebe o remédio experimental enquanto o outro utiliza outro de uso já estabelecido (desde que essa alternativa exista, claro) sem que os participantes saibam de qual deles fazem parte. A este segundo se dá o nome de controle. Ele permite que o efeito dos dois produtos sejam comparados. Hoje os pacientes enquadrados nesse recorte têm acesso ao melhor medicamento existente, mesmo que não esteja disponível no Brasil, o que pode sair muito caro.

O PL 200/15, por sua vez, propõe que seja ofertado para o grupo de controle "o melhor tratamento ou procedimento que seria habitualmente utilizado na prática clínica". Para os críticos do projeto, trata-se de algo vago. "Isso abre espaço para, em vez de dar o melhor tratamento, dar qualquer outro", diz Jorge Venâncio. "É um prejuízo."

Quanto ao pós-estudo, o projeto de lei quer dar fim à oferta contínua do remédio para os participantes do estudo após o fim da pesquisa (desde que a eficácia tenha sido comprovada, claro). Hoje, os laboratórios responsáveis pelas pesquisas tem a obrigação de fornecer isso para o restante da vida dos participantes.

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O texto inicial do projeto de lei previa que o pós-estudo seria ofertado apenas para aqueles pacientes que corriam risco de morte, mas a redação foi amenizada para permitir que todos os voluntários recebam o medicamento até o momento que ele seja incorporado no SUS. "Uma piora diminuída", como definiu o coordenador do Conep.

No entanto, a mudança nas regras do pós-estudo tem um segundo efeito danoso para quem sofre de doenças graves. Como são populações muito pequenas que possuem tais problemas, pesquisas que investigam medicamentos para eles não costumam ser financeiramente interessantes para os laboratórios. Se uma doença atinge 50 pessoas no Brasil, 30 participam de um estudo e tem direito ao remédio para o resto da vida; as 20 que sobraram são um mercado pequeno demais para justificar o investimento. É cruel, mas é assim que funciona.

Para atenuar a situação, o Conep tem discutido um adendo às regras de pesquisa no Brasil que alteraria o pós-estudo de pesquisas relacionadas às doenças raras. A proposta ainda não está definida, mas a ideia é ofertar os medicamentos por um período curto de anos a partir do momento em que são aprovados. Como o novo projeto de lei exige a incorporação ao SUS, esse plano vai por água abaixo.

"Pouquíssimos desses remédios são sequer incorporados ao SUS", afirma Antoine. "O PL 200 deveria nos ajudar, mas do jeito conduzido vai nos atrapalhar. Vamos voltar à estaca zero."

O PL 200/15 segue para tramitação na Câmara.