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Graças à Liliane Marise, o pimba voltou a atormentar os meus dias

Isto não é um disco, mas se fosse seria um LOL/10.

Bravo Marise, conseguiste captar a nossa atenção. Anda aí uma "cantora" chamada Liliana Marise que me tem tirado o sono. Passo a explicar. Desde muito miúdo que não vejo uma novela. Há 20 anos fazia-o com a minha mãe, depois de jantar. Eram novelas importadas da Globo, numa altura em que o Cabo era luxo em que os quatro canais raras vezes superavam (por pouco) o ir para a rua brincar à rua. Ainda me lembro da última que vi, A Indomada, cujo guião já não me recordo e cujo nome tive de procurar, mas que tinha uma personagem, o "Cadeirudo", que atacava mulheres durante a noite e cuja silhueta se assemelhava à de um gorila. No final veio a descobrir-se que [spoiler] era uma mulher.  Novelas infanto-juvenis como os Morangos com açúcar nunca lhe chegaram aos calcanhares (mesmo com o Rodas metido nas drogas), talvez por isso, nunca mais achei piada a nenhum dos dramas que o quarto canal apresenta como grandes produções nacionais, ainda que nelas façam figurar actores tão mauzinhos como Fernando Luís ou José Carlos Pereira, e que a premissa de todas elas gire em torno de fillers com filmagens panorâmicas de paisagens naturais. Passou-me tudo ao lado, até o Anjo Selvagem, que gozava de alguma popularidade e mostrava uma Paula Neves ao mesmo nível dos putos de 12 e 13 anos que passavam as tardes a jogar à bola, como o éramos eu e os meus amigos. Com o passar dos anos e o avanço da idade, pude observar o quanto as novelas passaram a controlar a programação dos canais em aberto, e gradualmente, de como a ficção se tornou uma parte importante na vida das pessoas. Nas televisões, quando não passam novelas, fazem-se novelas dos programas das manhãs e das tardes, formando-se tertúlias em torno da vida das pessoas de quem ninguém quereria saber (se não tivessemos tertúlias em torno delas, lá está), ou especulando sobre casos privados em praça pública, como se de um lavadouro se tratasse. O entretenimento (e até a música) foram substituídos pelo reality tv, onde mais uma vez se edificam pessoas sem interesse ou sequer educação, mas cujas reacções serão dissecadas até ao tutano em mais “especiais” e programas da manhã ou da tarde. O desporto é agora uma luta de galos psicológica e emotiva de bastidores, cujos embates apenas se fazem prolongar em campo. Até os telejornais se desmontam por partes, a da realidade, e a de discussão, envolvendo comentadores e analistas com posições comprometidas ou esqueletos no armário (isto quando não se discutem os vestidos e as manias das tais vedetas). "Olá mãe, estou a estragar a minha carreira" Objectivamente, a percepção de vida das pessoas também é condicionada pelo que lhes é feito assistir. É sobre isto que se falam com as vizinhas, é disto que se discute nos cafés e nas redes sociais (obrigado botão de bloqueio). Há revistas e pessoas que fazem carreira em torno da novelização da vida, da especulação em torno dos outros. Não me surpreende que Portugal não apareça na lista de países vigiados pela NSA, quando a maior parte das chamadas feitas no país são aquelas automatizadas para votar nos concorrentes a sair da casa, ou para tentar ganhar os prémios das rodas e árvores das patacas e das fortunas. Daí que também não seja surpresa que um primeiro-ministro que sai do país enxotado por forquilhas e tochas volte um par de anos depois com um programa de televisão, um livro, histórias em revistas e jornais, e pior, uma audiência fiel. Só este contexto social pode justificar a glorificação fortuita de ídolos feitos por encomenda. É a epítome da falta de cultura e de interesse, quando a minha mãe, a tua mãe, todas as mães abraçam e perseguem os Carreiras desta vida, por pior pimba que façam, como se não bastassem as nossas filhas encherem as paredes dos quartos de posters e as entradas de recintos de tendas para os concertos dos próximos grandes D'ZRT, apelidando de sucesso as salas cheias e as lideranças de tabelas de vendas, que elas mesmo ajudaram a encher e a fazer, apesar do vazio de conteúdo, de variedade ou sequer de talento.  Serve todo este desabafo para contextualizar a famosa Liliane Marise, personagem que, curiosamente, não existe. O que existe é o produto (mais um) da política Endemol/Mediacapital — Liliane Marise é Maria João Bastos, actriz a quem há que reconhecer bastante mérito, pois bastaram algumas aulas de canto e de dança para que se equiparasse a estrelas de circo como Ágata ou Ana Malhoa, e arrebatasse o topo das tabelas de vendas e esgotasse concertos na vida real (imagine-se).  Não podias ter ficado assim para sempre? Longe de ser novidade, esta tendência para dar vida às personalidades fictícias tem a sua piada, e resulta do ponto de vista do marketing. A novela em questão até chamou aos ecrãs de televisão mais de um milhão de pessoas por episódio (!). Mas o que diz de nós enquanto povo, quando deixamos que o absurdo ganhe uma dimensão real, e quando fazemos dele uma figura de proa do que se faz cá dentro, quando tantos artistas cheios de talento, interesse e dedicação passam debaixo do radar? Confesso que não ouvi mais nada para além da tão badalada música que faz lembrar a Pepa, nem penso fazê-lo. Não obstante a falta de conteúdo ou interesse musical, que é a forma mais simpática de dizer que as músicas delas fazem-me sangrar dos ouvidos, é difícil dar mais de dois segundos a uma artista que, em essência, não o é. A menos, claro, que seja em género de análise sociológica. Expondo as fragilidades desta sociedade. O facto é: esta Liliane Marise passou de sátira a cúmulo da novelização, da comercialização, da manufacturação, e da descredibilização da estrutura da indústria musical. As nossas crianças e mulheres entoam as suas músicas em uníssono e os homens babam-se pelo seu decote e roupa justa. Não é esta a artista que queremos, mas sim a artista que merecemos.