refugiados chegam à Croácia
Todas as fotos por João Porfírio.

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Relato

Perda, coragem e esperança. A "Aylan Kurdi Caravan" na ajuda portuguesa aos refugiados

A semana passada viajei até à Croácia com amigos para entregar toneladas de ajuda humanitária doada pela gente boa de Portugal.

Gosto de andar na rua de phones nas orelhas, mas ontem saí da loja com pressa, carregada de sacos, e não tive mãos para agilizar o soundsystem. Ainda bem, porque de outra forma, provavelmente, não teria ouvido o estranho que caminhava atrás de mim começar a cantarolar uma melodia inventada ao ritmo dos meus saltos altos na calçada. Era impossível não lhe sorrir. Nos 100 metros que percorremos juntos até os nossos caminhos se separarem, ele apresentou-se, por gestos, explicando que toca flauta transversal.

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Quis devolver a cortesia: apontei para mim e agitei os dedos no ar a imitar um piano. A música, essa linguagem universal… Entusiasmado, ele começou a deixar cair nomes de músicos portugueses e eu ia rindo e acenando que sim, com maior ou menor energia, consoante as afinidades de gosto. Até que ele disse "Bernardo Sassetti" e as rugas da sua cara rearrumaram-se numa expressão muito triste. Num português torcido explicou que eram amigos, que pensa muitas vezes em ligar-lhe e depois se lembra que já não pode. O Stanislaw é um estrangeiro a viver entre nós e tem, claramente, poucos amigos para dispensar.

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Vem isto a propósito da perda. A semana passada viajei até à Croácia com amigos para entregar toneladas de ajuda humanitária doada pela gente boa de Portugal. Soube bem fazer alguma coisa e estou muito grata a todas as pessoas que tornaram isso possível. Mas, não chega. Não é preciso lá ter ido para saber que o problema está longe de estar resolvido. Lá ter ido apenas o torna impossível de esquecer.

Visitei um campo de refugiados num sítio chamado Opatovic, que estava a rebentar pelas costuras de pessoas que perderam tudo o que tinham construído: a casa, o emprego, o país. Vi crianças sozinhas, aflitas, chorosas, sem um pai ou uma mãe por perto para lhes limpar o ranho. Maridos que percorriam a multidão, incessantemente, com os olhos a tentar reconhecer o perfil da mulher. Irmãos a acenar um ao outro, enquanto o autocarro em que um deles seguia se afastava, sem ninguém saber para que fronteira. Emprestei o telemóvel a um homem perdido do grupo de amigos com que viajava, que ironicamente se tinha auto-denominado Titanic.

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No ano que passou perdi mais do que em qualquer dos anteriores. Perdi amigos dos bons, perdi amor, perdi o tino. Os dias sucedem-se e nós vamos aprendendo a encher os buracos no coração com nova vida, com o trabalho e os sarilhos em que nos metemos, se tivermos sorte. Mas, nada volta a ser como antes. Por estes dias, tentei suspender a minha auto-comiseração e pôr-me no lugar desta gente que está a chegar às fronteiras da Europa às dezenas de milhar, fugida de países em guerra, sem hospitais nem escolas para os filhos, sem segurança nem liberdade para viver uma vida decente.

Sentei-me do lado de fora das redes de um campo onde os "arrumaram" até chegarem os próximos autocarros para os levar dali para fora, e tentei imaginar o cansaço de caminhar há dias sem fim, até gastar as solas aos sapatos, de passar noites ao relento com chuva e frio e dias à torreira do sol, parados, em filas controladas por polícias que procuram manter a calma onde há muito tudo deixou de fazer sentido.


Vê: "Os jovens refugiados sírios que estão a crescer num limbo"


Tento imaginar o desespero de ninguém os querer, a desorientação e o pânico de não saberem que perigos vão encontrar na próxima curva da estrada, mesmo quando se cruzam com voluntários que lhes oferecem uma muda de roupa, um brinquedo para distrair os miúdos ou uma palavra de conforto. Não consigo. Não tenho referencial possível para me pôr no lugar deles. Não sei que cicatrizes isto lhes vai deixar na alma, nem como se volta de um horror assim.

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Desaprendi de rezar há muito, mas ultimamente dou por mim a repetir mil vezes, como um mantra, que enquanto os políticos desta Europa adiam decisões (como quem adia um branqueamento dentário) e vão ali a Bruxelas comer mais uns mexilhões, esta gente não perca, sobretudo, a coragem.

Vê mais fotos abaixo.

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