FYI.

This story is over 5 years old.

Sexo

O que sente e como se comporta um demisexual

Então, a demisexualidade existe mesmo, ou não é mais que a milésima invenção da Internet?

Este artigo foi originalmente publicado na VICE Espanha.

"Sabes o que é que me acontece? Não consigo excitar-me a sério com uma rapariga de quem não goste mesmo. Tenho que gostar muito dela. Senão, não há maneira. Não sabes o difícil que é! A minha vida sexual é horrível". Era assim que Holden Caulfield (o protagonista de The Catcher in the Rye ) expressava a sua frustração. "Deixa de choramingar: tu és um demisexual ", poderia ter sido a resposta do seu interlocutor… se o clássico de Salinger tivesse sido escrito nos dias de hoje.

Publicidade

Um demisexual é uma pessoa que só é capaz de sentir atracção sexual por pessoas com quem mantém um vínculo emocional forte, sejam amigos, namorados, ou alguém que, por uma razão ou outra, chegou a conhecer intimamente. Isto não significa que, se és amigo de um demisexual, ele queira necessariamente ter sexo contigo. No entanto, se queres ter sexo com ele, terás de alcançar um grau de compreensão e proximidade muito diferente daquele que consegues com duas cervejas, ou uma mensagem no Tinder.


Vê: "Sexo com elfos na Islândia"


"Isso não é nenhuma novidade ", pensarão vocês, "sempre foi assim, chama-se ter critério". Não é assim tão simples. Porque não nos referimos a apenas ter sexo, mas a sentir atracção sexual. E a atracção sexual não é controlável: podes ter vontade de "enrolar-te" com uma pessoa e não o fazeres por mil e um motivos, mas a atracção em si não podes evitá-la.

Um demisexual, por outro lado, tem a coisa mais facilitada. Imaginemos: uma rapariga demisexual recebe no seu quarto a visita inesperada de Ryan Gosling nu, besuntado em óleo e com uma evidente erecção.

-Olá, sou o Ryan Gosling e venho tratar-te da saúde.

-Ah. Mas, eu não te conheço.

Imagens via Wikimedia Commons

Ficção científica? Não: demisexualidade. A rapariga em questão está consciente de que o gajo que tem à frente tem um rosto agradável e um corpo bonito. Também sabe, por questões de âmbito social e cultural, que é "apetitoso" do ponto de vista sexual. Mas, não sente uma vontade incontrolável de lhe saltar à espinha. Para ela, é como observar um Picasso. Pode apenas admirar a sua beleza e já está.

Publicidade

Deixemos que um demissexual nos explique tudo isto na primeira pessoa. Não foi fácil encontrar alguém disposto a falar connosco, mas acabámos por falar com Joan, um barcelonense de 24 anos, através de um grupo privado do Facebook no qual "demis" de todo o Mundo partilham as suas experiências.

VICE: Desde quando te consideras demisexual?

Joan: Sempre me considerei demisexual, embora só tenha conhecido o termo há pouco tempo, na Internet. Devo dizer que não sei se sou o melhor exemplo, porque dentro deste "Mundo" sou bastante mais sexual que assexual.

Que queres dizer com isso?

Digamos que cumpro o básico: não me sinto atraído por alguém com quem não tenha confiança prévia. Mas, por outro lado, vejo pornografia.

Que tipo de pornografia consomes?

Depende do momento, mas normalmente prefiro amadora, ou hentai.

É essencial que exista algum tipo de relação emocional entre os protagonistas?

Sim, acho que prefiro esses estilos, precisamente por isso.

E na vida real, nunca te sentiste sexualmente atraído por pessoas que não conheces ? Não sei, na rua, num bar.. .

Sinceramente? Não. Posso achar que uma rapariga é gira, tipo "que cabelo, ou que olhos tão bonitos", e já está. Sou bastante indiferente ao seu corpo.

Nunca tiveste relações (não necessariamente completas) com alguém com quem não tivesses um vínculo?

Não, nunca.

Poderias dizer-nos o que é que te excita? O amor, a amizade

É difícil explicar. Normalmente sinto-me atraído pela personalidade, ou pela tranquilidade que me proporciona estar com essa pessoa.

Publicidade

Talvez desconfies das desconhecidas?

São-me indiferentes.

Nos momentos em que tens namorada , com que frequência tens relações sexuais?

Tanto quanto possa serve como resposta? Ah, ah, ah.

Ok, como o comum dos mortais, portanto. Mas então, para ti não existe o conceito de engate, certo?

Não, sou bastante alheio a esse mundo.

Falaste com alguém do teu círculo próximo sobre a tua demisexualidade?

Não acho que seja preciso. Comento-o com alguns amigos, quando surge o tema. A minha namorada também está a par.

E como reagiram?

Há de tudo um pouco. As reacções são, normalmente, bastante tranquilas. E, regra geral, não é uma condição muito estranha. Algumas pessoas confundem-na com ser puritano, ou algo parecido.

Consideras-te um puritano?

Não acho que seja puritano, a julgar pela pornografia que consumo…

É verdade. É algo que fazes diariamente?

Podemos dizer que sim, mas depende do dia…

Falei com dois sexólogos e ambos põem em causa a existência da demisexualidade como orientação sexual. Dizem que talvez seja fruto da insegurança. O que é que achas?

Quem sabe? Não sou nenhum especialista. É possível que esteja relacionado, mas há uma coisa que tenho clara: há pessoas assexuais devido a traumas, como violações ou abusos e outras a quem, simplesmente, não lhes apetece ter sexo. Isto poderia ser parecido. Antes de perder a virgindade queria que a minha primeira vez fosse com alguém "importante" e depois logo me abriria sem problemas. Mas não foi bem assim. Não tenho que "guardar-me" em absoluto. Simplesmente não tenho vontade.

Publicidade

Achas que vivemos numa sociedade hiper sexualizada?

De certa forma, sim. Embora seja difícil distinguir libertinagem e abertura de espírito. O sexo para mim não é nenhum problema, embora não entenda as pessoas que lhe dão um papel essencial nas suas vidas. Parece-me importante numa relação, mas não primordial.

Desculpa insistir, mas por favor sê sincero: de certeza que a Scarlett Johansson não te excita?

(risos) A verdade é que não. Mas, se me apresentares um personagem em concreto que tenha interpretado, de quem eu goste e que se comporte de uma determinada maneira… talvez possa despertar o meu interesse, embora saiba que é ficção.

O que queres dizer é que a Scarlett Johansson pode excitar-te em "Match Point", mas não em "Scoop", por exemplo?

Exacto. Depende tudo de como empatize com ela. E isso não invalida que ver um par de mamas me desperte a vontade.

Espera lá . Então ver mamas desperta a tua atracção sexual?

Activa a minha imaginação e o resto é uma reacção em cadeia, mas não desperta o meu interesse na pessoa em si.

Poderias ter uma erecção com um par de mamas?

Sim.

Se quisesses, poderias ter sexo com uma rapariga que não conheces?

Poder, podia, acho eu. E até poderia gostar, como gosto do sexo em solitário. Mas, não há nenhum input que me leve a fazê-lo.

Ok, zero atracção. Estás contente com a tua condição de demisexual? Mudarias a tua condição para "normal"?

Pessoalmente, não acho que seja um problema. Sou assim e sinto-me bem. Se fosse "normal" também não teria problemas. Ah, e acho que "normal", neste caso, é "allosexual".

Publicidade

Tantos termos para aprender… É verdade, os colectivos LGBT mostraram-se solidários com o movimento assexual. Achas que é necessário criar um movimento demisexual?

Não acho que seja preciso criar um movimento. Não sofremos discriminação. No entanto, um pouco mais de informação sobre o tema poderia ser um ponto positivo. Mesmo que seja só para que te conheças melhor e não te sintas uma ave rara porque não te apetece "afiambrar" aquela boazona com quem te cruzas na rua.


Falando com Joan apercebo-me que os demisexuais são pessoas bastante comuns. Qual é a novidade da demisexualidade? Parece que nenhuma, excepto o conceito e o nome. Se Holden Caulfield tivesse vivido nos dias de hoje, teria googlado o que sentia e zás! Teria encontrado uma data de páginas na Internet. Como costuma acontecer, a confluência cibernética à volta de uma mesma inquietude pessoal pode baptizar o que antes não tinha nome e, eventualmente, formar uma comunidade. É o que acontece com a demisexualidade, assim como aconteceu com a assexualidade.

Aliás, a demisexualidade cresce, de certa forma, à sombra da assexualidade e esta, por sua vez, à sombra dos movimentos LGBT. Nalgumas páginas web fala-se da demisexualidade como "orientação sexual", algo que para a comunidade de psicólogos e sexólogos é uma aberração. Falámos com Gabriel J. Martín, membro do Colégio Oficial de Psicologia da Catalunha e especialista em questões LGBT. Ele frisa que a orientação sexual faz referência ao objecto do teu impulso sexual, a quem o diriges, enquanto que, no caso da assexualidade, ou da demisexualidade, o que importa é a existência (ou falta dela) deste impulso. "A comunicação cria etiquetas", recorda Martín, que considera a demisexualidade como um fenómeno pré-existente, mas que antes não tinha nome e que, por isso, passava despercebido.

Publicidade

Então, existe realmente a demisexualidade, ou não é mais que a milésima invenção da Internet? "Veremos", diz Martín. Por um lado, não descarta a existência de gente sinceramente incapaz de sentir atracção sexual sem vínculo emocional (algo que ainda não está demonstrado, por falta de estudos sobre este tema) e, por outro, acredita que uma boa parte das pessoas que assumem esta etiqueta, fazem-no como subterfúgio para esconder "traumas, medos e inseguranças relacionadas com o seu aspecto físico, ou perícia sexual".

Sem confirmar nem desmentir a existência de uma genuína demisexualidade, muitos dos auto-denominados "demis" poderiam não sê-lo e ter encontrado nesta comunidade uma resposta satisfatória aos seus complexos relacionados com sexo, algo que só perpetuaria os seus problemas. De qualquer maneira, não parece que os auto-denominados demisexuais vivam mal a sua vida, em absoluto. E se eles estão bem, quem somos nós para metermo-nos no assunto?


Segue a VICE Portugal no Facebook, no Twitter e no Instagram.

Vê mais vídeos, documentários e reportagens em VICE VÍDEO.