FYI.

This story is over 5 years old.

Relato

Como a carreira de jornalista musical fez com que acabasse num hospital psiquiátrico

Descobri da pior maneira possível que, uma carreira no jornalismo musical, é a solução perfeita para quem não quer deixar o trabalho atrapalhar a sua vida de borga permanente.

Este artigo foi originalmente publicado na nossa plataforma Noisey UK.

Há uma espécie de ditado bastante conhecido que diz o seguinte: "Escrever sobre música é como dançar sobre arquitectura". Talvez o conheças. A sua origem é atribuída tanto a Elvis Costello, como a Frank Zappa, ou até a Martin Mull, quem quer que seja este último. Acho que poderia dizer que essa citação me fez querer ser jornalista musical, mas, na verdade, estaria a mentir.

Publicidade

Vim parar à profissão meramente por acidente. Eu era um cliché ambulante: um músico fracassado, que passava o tempo a criticar outros músicos. O engraçado é que não conheço nenhum outro jornalista musical que tenha seguido o rumo que eu segui. Graças a uma série de eventos fortuitos, por volta de 2001 acabei por tornar-me repórter de uma já falecida revista online. A bolha "dotcom" ainda estava longe de estourar e havia dinheiro suficiente proveniente de investimentos especulativos para ajudar a pagar os nossos salários.

Percebi logo que jamais enriqueceria e, em muitos momentos, dei mesmo por mim espectacularmente pobre, mas também havia muita coisa fixe a acontecer: CDs grátis (que agora não valem nada), viagens, conviver com artistas - ou pelo menos apontar para eles numa área VIP manhosa e rezar para eles não repararem -, conhecer os meus heróis (coisa que, aliás, deves sempre tentar fazer), entrar em tudo que é concertos e, por último, e não menos importante, muitos copos e drogas.


Vê um excerto do nosso novo documentário "Shot! The Psycho Spiritual Mantra of Rock"


O esquema de trabalho no meu novo emprego era extremamente relaxado, o que significava que inevitáveis noites a trabalhar até tarde rapidamente se transformavam em manhãs e, por vezes, tardes, se ficasses acordado a mandar riscos com o Bobby Gillespie. Embebedares-te e meteres drogas não eram necessariamente actividades encorajadas, mas faziam parte do pacote, o combustível para manter o motor a trabalhar e, de vez em quando, conseguires uma inspiração.

Publicidade

Todas as noites de semana saía e acabava por ficar com uma banda ou artista, enquanto o seu RP metia os meus consumos na conta deles, já os fins-de-semana eram só lazer, o que muitas vezes envolvia beber em quantidades estrondosas, com suficiente cocaína para garantir que ficava 60 horas a pé sem dormir.

Para mim, tudo começou como uma grande aventura. Mas, como disse uma vez John Cooper Clarke, "Primeiro é só diversão, depois não é, e por fim é um inferno". Ou, sendo um bocadinho mais explicito, tudo parecia maravilhoso até que a minha carreira fez com que acabasse num hospital psiquiátrico.

Todas as fotos cedidas pelo autor.

O vício surge de diversas formas. É algo furtivo, que não discrimina idade, género, classe, ou raça; pode afectar quem quer que seja e é transversal a todos os estilos de vida. A "Bíblia" dos Alcoólicos Anónimos diz que a bebida é "astuta, desconcertante, poderosa" e, por mais que eu diga que se trata apenas de um composto orgânico, com base de etanol e conferir-lhe personalidade é o tipo de coisa que afasta as pessoas de grupos como os AA, entendo o que eles querem dizer. Sei também que drogas e álcool são riscos ocupacionais na indústria musical. Ao longo do tempo, aprendi que o abuso contínuo pode ser péssimo para a saúde mental.

Não sei como é o esquema para jornalistas mais novos nos dias de hoje; os millennials parecem ser mais conscientes e resistentes aos clichés do rock'n'roll, da mesma forma que o futebol inglês melhorou quando Arsène Wenger chegou. Parece haver maior foco na relação entre saúde mental e vício em sectores criativos, do que quando entrei na indústria e a morte de Amy Winehouse em 2011 fez com que muitos executivos dessem atenção Às consequências de uma cultura de excessos. Quando entrevistei Amy em 2006, passámos o tempo todo a gozar com o vocalista dos Keane, que tinha ido para a reabilitação por beber Pimms em demasia [bebida típica inglesa].

Publicidade

Certamente nunca andei pelos mais altos círculos da Babilónia, onde continuam a circular as histórias mitológicas sobre os Queen e as festas com anões que levavam bandejas de cocaína nas suas cabeças, ou sobre Stevie Nicks ter contratado um rapaz para lhe soprar speed pelo rabo acima com uma palhinha a cada quinze minutos. Mas, nos anos 90, a coisa continuava a ter uma enorme tendência para ficar feia. A cultura em torno da indústria musical da época era curtir, mesmo que houvesse muita gente quase secretamente a trabalhar no duro nos bastidores. Eu era jovem e suficientemente resistente para escrever artigos e fazer resenhas de concertos num ritmo frenético, pelo que não tardou a ser contratado como editor a tempo inteiro.

Num primeiro momento, o álcool só aparecia em almoços e à noite. E em festivais, claro, onde ficares todo fodido é até uma questão de educação e praticamente inevitável. Mas, aos poucos, a rotina de trabalho permitiu que a minha bebedeira crescesse exponencialmente. Copos de cerveja transformaram-se em pontuação na prosa do meu quotidiano. Caso fosse entrevistar alguém fora do escritório, tinha tempo para beber uma no The Owl and the Pussycat antes da conversa em si e outra para me congratular quando voltava. Por fim, bebia mais uma no bar perto do trabalho. Lembro-me de ir conversar com Rufus Wainwright na Baker Street completamente virado do avesso e a feder a copos, sem sequer ter em consideração que um ano antes ele tinha estado na reabilitação.

Publicidade

Não demorou até eu não só estar a beber às escondidas no trabalho, como a ir ao bar antes de chegar ao escritório para "curar" a noite anterior. Algumas manhãs começavam comigo a virar uma garrafa de whisky que tinha encontrado na cama, ou uma lata de cidra esquecida na mesinha de cabeceira. Chegava até a beber umas latinhas debaixo da mesa pela tarde se me desse a sede; sei lá se os meus chefes toparam, mas se toparam, nunca me disseram nada. Era a vocação dos meus sonhos, mas o trabalho em si rapidamente se transformou em algo secundário.

Estava a começar a descobrir que uma carreira no jornalismo musical é a solução perfeita para quem não quer deixar o trabalho atrapalhar a sua curtição. As estrelas do rock podem ter bastante tempo livre para se embebedarem, mas também se distraem com todos os espectáculos e viagens. Já os jornalistas podem acompanhar tudo ali mesmo a partir do bar e passar o resto do dia seguinte a tentarem descobrir o que aconteceu juntando os hieróglifos bêbados que acabaram rabiscados no bloco de notas.

Mas sem as benesses de ser uma estrela do rock, o trabalho pode acabar por se transformar num inferno. Depois de cinco anos na função, a pilha de CDs nunca ouvidos na minha mesa deprimia-me. As inúmeras bandas de chapelinho pós-Libertines a tocarem "skiffle crack" deprimia-me. Glastonbury, que era um festival tão fixe no início, deprimia-me. A bebida era a causa, ou o principal factor, da minha depressão, mas, como tantos outros alcoólicos, foi a última coisa que tentei consertar.

Publicidade

Vê também: "Viagem ao 'Woodstock Cristão'"


Então, por volta de 2009, parei de beber (pelo menos durante algum tempo). Estava cansado de ser assaltado em caixas multibanco e acordar no autocarro da madrugada levemente cagado e sem carteira ou relógio. A vida melhorou uma nesga, mas tentar ficar sóbrio sem qualquer acompanhamento era uma estrada solitária, apinhada de obstáculos.

Na época, aquela conversa dos 12 passos não me dizia nada e, claro, não existia nenhum manual de como lidar com o vício quando se está na indústria musical. Conhecia alguns colegas de trabalho mais velhos como Steven Wells e John Robb que tinham parado de beber há um tempo, mas não sabia o motivo e não me sentia à vontade para me abrir com eles e pedir conselhos. Sentia-me bastante perdido.

E, o pior de tudo, sentia-me completamente farto. Decidi que a melhor forma de lidar com a falta de bebida e os sentimentos bizarros que a situação trazia consigo era entupir-me de drogas. Pó sem bebida deixava-me com medo. No entanto não ligava, porque, pelo menos, estava a sentir alguma coisa diferente. Então, na edição do All Tomorrow's Parties de Dezembro, o que achava ser a resposta para os meus problemas apareceu-me num pequeno pacote.

"Experimenta isto", disse-me um dos meus colegas de profissão.

"O que é", perguntei, enquanto enfiava a cena pelo nariz.

"Adubo", foi a resposta.

E foi assim que conheci a mefedrona.

O estalo, à primeira impressão, ficava entre a cocaína e o ecstasy. A moca passava rapidamente, ou seja, precisava de uma nova dose a cada 15 minutos. Não é que isso fosse um problema, porque por cerca de uns justos 70 euros por cada cinco gramas, o carteiro deixava a cena à tua porta, pois era possível comprar pela Internet. Bastava inserir os dados do cartão de crédito. Isto, claro, tornou-se logo um problema, porque só parava quando esvaziava um pacote, o que demorava até quatro dias, altura em que ficava deitado na cama a alucinar com lápis voadores.

Publicidade

É de se pensar que tal experiência seria o suficiente para me fazer parar, mas na verdade não demorou até estar a comprar cada vez mais. O meu peso desabou e em pouco tempo parecia o Lux Interior dos The Cramps, o que até era fixe, ainda que ninguém à minha volta parecesse pensar o mesmo. Além de que, como não conseguia lidar com a "ressaca" se não tinha droga, voltei a beber. Os meus amigos ficaram preocupados e até bastante fodidos comigo. Estava sem dinheiro e a minha namorada nova, linda, que tinha conhecido quando estava sóbrio deixou-me. Não tinha mais desculpas, estava num expresso em alta velocidade em direcção à ruína.

Quando a mefedrona foi banida pelo Ministro do Interior Alan Johnson, decidi encomendar online um pack variado de novas drogas sintéticas para fazer testes em busca de um possível substituto. O "Benzo Fury" foi a minha desgraça e, anos depois, seria a minha salvação. Perdi memórias de três dias da minha vida, mas alguém de confiança disse-me que, no meio desse apagão, uma ambulância no Leste de Londres me apanhou no meio da rua enquanto tentava cortar-me com uma lâmina. Tinha perdido o controlo. Voltei a mim numa cama de hospital no dia seguinte e lembro-me de pensar: "Isto deu mesmo merda".

Aparentemente tinha-me internado voluntariamente e, como o hospital parecia estar cheio de gente maluca, pensei logo numa forma de me pirar dali. Mas depois da avaliação do psicólogo, fui abrangido pela Lei de Saúde Mental. Toda a situação mudou de figura e vi-me ali preso por tempo indeterminado, com uma lustrosa barba branca, um conto trágico de uma alma problemática que tinha caído pelas frestas e passaria o resto dos seus dias institucionalizado. Voltei à área comum e vi jogos do Mundial na África do Sul. A televisão de ecrã plano era protegida por vidro reforçado, já que o aparelho anterior tinha sido destruído por um dos pacientes com o auxílio de uma cadeira. Só pensava se a barulheira das vuvuzelas não levaria alguém a tentar destruir a nova.

Publicidade

A dada altura uma enfermeira chamou-me e leu uma lista enorme de drogas encontradas no meu sangue. Eram cenas que nunca mais acabavam. "Há alguém com quem você não gostaria que partilhássemos estas informações?", perguntou. "A polícia?", respondi, meio confuso com a pergunta. Ao inicío disse aos meus amigos que beberia uma "cervejinha da liberdade" quando saísse dali. Todos acharam que seria uma péssima ideia. Tendo passado meses sem me alimentar convenientemente, uma nutrição adequada era o socorro pelo qual o meu cérebro adicto clamava e eu, finalmente, começava a pensar de forma racional. Aos quatro dias de estadia, disseram-me que poderia ir-me embora. Como era domingo e os psiquiatras estavam todos a desfrutar do fim-de-semana, disseram que não teriam como me manter ali, apesar de me pedirem que ficasse mais um dia para fazer uma nova avaliação.

"Estão a dizer que eu posso simplesmente bazar, ou esperar até amanhã, altura em que vocês, possivelmente, podem decidir que continuo doente e terei de cá ficar mais tempo?".

"Sim".

Decidi ficar mais uma noite. Não queria ter nenhuma dúvida na minha mente quanto à minha sanidade (já para não falar que a comida era uma delícia) e no dia seguinte fiquei aliviado ao receber alta.

Ser internado contra a minha vontade por quatro ou cinco dias no Homerton Hospital, maluco de todo, a sofrer de abstinência, suicida e assustado, foi o "fundo do poço" a que eu precisava de chegar. Há quem insista no erro mesmo quando os alarmes soam em milhares de decibéis. Há quem nunca entenda e as consequências são invariavelmente trágicas. Pedi ajuda posteriormente num monte de locais, incluindo programas de reabilitação em Hackney, que já não existem por conta de cortes do governo. Encontrei um terapeuta brilhante, fiz os 12 passos, aprendi a meditar e tratei de alguns dos problemas que havia ignorado ao longo de toda a minha vida. O ano seguinte seria duro, comigo a ter de reaprender a fazer as coisas mais simples do mundo e a interagir com os outros sem a ajuda de qualquer bebida ou substância, mas cheguei lá, mesmo se hoje em dia sou menos sociável.

Publicidade

"Não há pior do que ficar trancado numa ala psiquiátrica", lembro-me de comentar pesarosamente ao meu padrinho do programa de tratamento, tremendo tipo vara verde após entrar na reabilitação.

"Ah, acredita em mim", disse el, "pode piorar muito".

Estou limpo e sóbrio há seis anos. Ainda sou jornalista musical e gosto de pensar que trabalho melhor hoje com a cabeça no lugar. Se vou a um concerto ou festival, consigo lembrar-me do que aconteceu. Tenho uma rede de apoio de outros jornalistas que também não bebem ou metem drogam, que tiveram experiências parecidas com a minha. Toda essa cultura em torno da indústria musical parece ser mais sensível agora, com artistas mais novos cada vez mais sensatos e, por mais que os meus instintos digam que isso não tem nada a ver com rock'n'roll, o facto de que o mito do rock em si esteja a ser desmistificado e posto de molho não é nada mau. Tudo bem em sofreres pela tua arte, mas vale a pena morreres por ela?

Às vezes penso em fazer outra coisa, mas depois lembro-me que não sei fazer mais nada. Se aparecer por aí alguma vaga de dançarino de arquitectura, avisem-me.


Segue Jeremy no Twitter.

Segue a VICE Portugal no Facebook, no Twitter e no Instagram.

Vê mais vídeos, documentários e reportagens em VICE VÍDEO.