Porque é que nos matam e nos violam e não acontece nada
Eloy Alonso/Reuters

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análise

Porque é que nos matam e nos violam e não acontece nada

Cada sociedade tem as violências que tolera. E Espanha tolera que a nós, mulheres, nos matem.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE Espanha.

Matam-nos, porque cada sociedade tem as violências que tolera. E a nossa sociedade tolera aos homens que a nós, mulheres, nos matem e nos violem. Sei-o porque, há pouco mais de uma semana, cinco mulheres foram assassinadas no espaço de dois dias em Espanha e não aconteceu nada. O país não parou, não saímos à rua em massa, não houve uma reunião urgente do Conselho de Ministras, nem sequer este governo - que se considera feminista - convocou uma conferência de imprensa para debater as medidas de emergência que se vão tomar. O sucedido também não ocupou muito tempo nos meios de comunicação, não mais do que um par de colunas na primeira página.

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Parece que conseguimos que a maioria das pessoas se zangue um pouco - com uma raiva demasiado efémera - de cada vez que nos apercebemos que "mataram mais uma". Também conseguimos que os líderes institucionais usem pins e laços e se ponham muito sérios nas manifestações de repulsa. Como se não fosse nada com eles. Mas, continua a ouvir-se esse discurso tão anestésico do "flagelo" da violência machista. Como se fosse uma praga que veio não se sabe de onde, que ninguém consegue explicar e que ninguém sabe combater. Só que não é assim.

A violência machista é a expressão mais brutal de uma violência contra as mulheres que vivemos todas, todos os dias, que começa porque algumas de nós nem sequer nos apercebemos dela. Pagam-nos menos, somos mais pobres, trabalhamos o triplo em casa - porque é um trabalho grátis -, temos medo de andar sozinhas à noite, matamos e roubamos muito menos, mas matam-nos e violam-nos infinitamente mais… E, assim, podia estar dias a descrever a violência que existe contra nós e que garante a nossa desigualdade no sistema patriarcal. Mas, algumas não a vêem e a muitos dá-lhes medo que, cada vez mais, a vejamos. Porque é a violência que mantém o sistema.

A violência contra as mulheres, hoje, na nossa sociedade, é exemplar. Mais de metade das mulheres assassinadas, são-no pelo seu parceiro ou ex-parceiro, homem. Quase a totalidade delas são assassinadas durante o processo de separação. Quando decidem ir embora, quando decidem deixar de obedecer, quando decidem deixar de ser animais domésticos.

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É para isso que serve a violência contra nós. Para nos recordar que, à que não se vai embora de casa, à que não renuncia a trabalhar como escrava, à que não sai à noite, à que não vai com qualquer um, à que não anda de mini-saia, ou decote, ou se veste à porca; à que não se embebeda, à que não volta sozinha para casa às tantas da noite, à que não protesta, à que não enfrenta, à que não se queixa… À que obedece e se cala - que eles gostam, porque é como se estivesse ausente - a essas, não lhes acontece nada. Porque as coisas más acontecem às mulheres más. Que estão onde não devem, ou que beberam, ou que entraram no carro errado, ou tinham mais carne à mostra do que o adequado, ou tinham denunciado, ou não o tinham feito, ou que ficaram quietas enquanto as violavam entre cinco, ou enfrentaram o violador fazendo-o converter-se num assassino.

Por detrás de cada assassinato, de cada violação, de cada agressão, há uma advertência: tem cuidado, não faças coisas más, sê boa. Deixa claro que não o mereces, que não és uma porca, nem uma louca, que não és dessas. E, assim, não te vai acontecer nada. A forma como se apresenta a violência contra as mulheres nos meios de comunicação é uma representação de como a vivemos - e de como a legitimamos - na nossa sociedade.

Mulheres que "aparecem mortas" - como a "La Chica de La Curva" - ainda que tenha sido degolada em frente às filhas, tenha sido despedaçada a murros, a pontapés e patadas, o homem que se entrega, confesso e ensanguentado, ou se suicida porque já destruiu o seu objecto de tortura e não lhe resta ninguém a quem foder a vida. Homens que são "bons pais", apesar de terem afogado os seus filhos na banheira, mesmo antes de pegarem fogo à casa, ou porque chamavam "princesa" ou levavam o almoço à escola da criança que estrangularam.

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Defensores de violadores sentenciados, que se passeiam pelas televisões a dizer que temos uma ideia errada de consentimento, que pomos denúncias falsas por arrependimento. Jornalistas que falam do passado das assassinadas, dos seus parceiros sexuais, dos seus hábitos, das suas fotografias, das suas redes sociais, das razões que elas mesmas construíram para o destino que lhes tocou. Juízes que vêem festa em violações em grupo, sequestro em mães que põem as suas criaturas a salvo, consentimento onde há dissociação causada pelo medo, mentiras onde há pedidos de ajuda, livre expressão onde há ameaças, denuncias falsas onde há protocolos de actuação inúteis… normalidade onde há violência.



Mas, por detrás de cada assassinato, de cada violação, de cada agressão, pelo menos nós, mulheres, devíamos encontrar outras razões para estarmos inquietas: porque é que temos medo de nos cruzarmos com desconhecidos, quando mais de metade dos que nos assassinam são aqueles que diziam gostar de nós? Porque é que nos assusta viajar sozinhas, se sete em cada dez casos de violação são feitas por homens no nosso espaço íntimo? Porque é que acreditamos que estamos mais seguras com um homem por perto se, no melhor dos casos, acabará a pedir a nossa liberdade em troca?

Nós, as próprias vítimas diárias de múltiplas formas de violência, não nos damos conta. Achamos que fazemos todo o trabalho em casa porque queremos. Achamos que cuidamos de toda a gente, porque eles gostam de nós. Achamos que não há mal que nos insultem na rua, achamos que também não é para tanto que nos toquem, que nos apalpem, que nos fodam sem querermos. Achamos que somos as únicas que já não aguentamos.

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Ter menos tempo, ter menos voz, ter menos espaço, ter menos representação, ter menos dinheiro, ter menos direitos, ter piores empregos. Achamos que não tem nada a ver que nos matem e violem com o facto de as meninas ocuparem só um quarto do espaço dos pátios nas escolas. Achamos que não há relação entre a violência sexual e os papéis que interpretamos no cinema, na televisão, na publicidade, no humor, nas conversas quotidianas, nos grupos de WhatsApp ou no Vaticano. Mas, todas essas desigualdades formam parte de uma só violência, da violência de fingir que a desigualdade é natural e que está justificada pelas diferenças. Que são neutras, inofensivas, inquestionáveis, inamovíveis, sagradas, naturais, ancestrais, ou qualquer merda que se nos ocorra para justificar que um dia, sem saber como, uma de nós, que tinha uma vida normal, um marido normal, uma infelicidade normal, apareça morta.

Somos cada vez mais as que não aceitamos isto. Cada vez estão mais assustados e mais chateados os que têm vivido o privilégio que tudo isto lhes garantia. E vêem o que aí vem. E, como os "bons pais" e "bons homens" que nos acabaram a assassinar, não querem que nada mude. Preferem matar-nos, para que tudo continue igual. Ou permitir que nos matem e nos violem, sem assumirem a sua responsabilidade institucional, sem se formarem para exercer a sua profissão, sem perpetuarem este sistema que discrimina e domina metade de nós, sem reconhecer que se aproveitam dos privilégios patriarcais na sua vida pessoal, sem combaterem as diferenças no mundo laboral, sem perceberem que estão a violar cada vez que fodem sem negociar, sem se preocuparem sobre o porquê de termos medo deles, sem assumirem que os que nos violam e matam não seriam tantos se não se sentissem legitimados. Pelos outros homens e pelas estruturas que o sistema criou.

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É por isso que a violência machista é a causa de morte principal das mulheres entre os 15 e os 44 anos. Em todo o Mundo. Mais que o cancro. Mais que as guerras. As três mulheres e a mãe de duas filhas que foram assassinadas há pouco mais de uma semana tinham feito queixas contra os seus assassinos e não serviram de nada. Tinham pedido medidas de protecção do assassino, que lhes foram negadas.

Isto não é uma falha do sistema. Não são sequer cinco falhas do sistema. É, simplesmente, a demonstração de que o sistema está preparado para proteger os homens da violência de outros homens, mas não está sequer pensado para proteger as mulheres da violência que os homens exercem contra nós. Porque chamamos paz à altura em que os homens não se matam massivamente entre eles. Mas, que nos violem e matem sistematicamente a nós, mulheres, faz parte da normalidade pacífica e democrática. E esta realidade só é possível num sistema que decide as suas prioridades e que, assim, decidiu que a violência contra as mulheres não é uma delas.

Não há pragas, há violência legitimada pelo sistema. Não há loucos isolados, há filhos sãos do patriarcado. Não há que mostrar repulsa absoluta, como se não soubéssemos qual é a causa e quais são as medidas. Levámos décadas a pedi-las no movimento feminista: aposta institucional firme em políticas de igualdade, recursos para trabalhar, formação com perspectiva de género em todos os programas curriculares, desde a educação infantil até aos cursos, revisão da Lei Integral da Violência de Género, interlocução com os grupos feministas locais, regionais e estatais, criação de códigos deontológicos com perspectiva de género para todos os âmbitos profissionais, criação de observatórios dos meios de comunicação e da publicidade, gerar medidas para combater os discursos machistas e os possíveis delitos de ódio… e assim podíamos estar dias a descrever as medidas concretas a todos os níveis que temos vindo a construir a partir da análise da realidade, da nossa luta diária e das nossas experiências vitais, individuais e colectivas. Deviam sentar-se e ouvir-nos.

A violência machista não é invencível, não é normal, não vai existir sempre. Acreditem. Uma vez, a minha admirada Angela Davis desmontou para sempre o meu pessimismo, com um sorriso eterno e acolhedor, quando me disse: "Se acabámos com a escravatura, como é que não havemos de conseguir acabar com o patriarcado?". Não há paz sem justiça. Não há justiça sem igualdade. Não há igualdade sem feminismo.


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