Elisa del Genio e Ludovica Nasti representam a infância das protagonistas de My Brilliant Friend, no episódio As Bonecas.
Foto: Divulgação/HBO

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Acredite nas crianças de Nápoles: como foi a estreia de 'My Brilliant Friend'

Fabiane Secches, especialista na obra da escritoria italiana Elena Ferrante, analisa o primeiro episódio da série que estreou na HBO.

AVISO: Esta resenha contém spoilers.

Na tela escura e silenciosa, irrompe a luz azulada de um celular vibrando. Na penumbra, a silhueta de um rosto se aproxima para atendê-lo. É uma mulher de quase setenta anos (Elisabetta De Palo), com olhos e cabelos claros. Ao acender o abajur ao lado da cama, vemos também o contorno de seu corpo, deitado de costas para a câmera. Essas são as primeiras imagens de Elena Greco a que temos acesso.

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Mas, para milhões de pessoas, Elena Greco é também uma velha conhecida: a narradora da tetralogia napolitana — conjunto de romances de Elena Ferrante que comoveu leitoras e leitores em todo o mundo. Quando a vemos na tela, também nos afastamos das páginas e de nossas próprias impressões de leitura para entrar em um novo universo: a adaptação de A Amiga Genial, série dirigida por Saverio Costanzo e escrita por uma equipe que tem Ferrante nos créditos de roteiro. Portanto, é coautora da versão.

A série estreou neste domingo (25) no Brasil com o título My Brilliant Friend. Difícil entender porque escolheram usar a versão em inglês por aqui. O título original, assim como a obra adaptada, é italiano — L’amica geniale. Ficamos com uma terceira via: nem cá, nem lá.

Os oito episódios da primeira temporada serão exibidos aos domingos e às segundas-feiras, às 22h, na HBO, e correspondem ao primeiro volume da obra de Ferrante. Ou seja: à infância e à adolescência das protagonistas, Elena (a narradora) e Rafaella Cerullo, a Lila, sua amiga há mais de seis décadas.

Quem leu os livros provavelmente imaginou a sua própria versão das personagens, partindo tanto da descrição que encontramos nas páginas quanto de nossas projeções e fantasias. O mesmo ocorre com Nino, Enzo, Stefano, Dom Achille, os irmãos Solara e toda a extensa lista de personagens que ocupam as cerca de mil e setecentas páginas da tetralogia napolitana.

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Agora, somos confrontados com rostos, corpos, vozes, gestos e olhares concretos, que se impõem sobre as imagens que antes formamos. Esse embate costuma ser o principal obstáculo a uma adaptação literária. Ainda assim, a escolha do elenco impressiona: depois de uma seleção rigorosa, que incluiu a audição de milhares de crianças e adolescentes em Nápoles, chegaram a quatro atrizes que personificam Elena e Lila com perfeição: Elisa del Genio e Ludovica Nasti representam as protagonistas na infância; Margherita Mazzucco e Gaia Girace, na adolescência.

Nos dois primeiros episódios, são as crianças a quem acompanhamos, passando pelos acontecimentos mais marcantes do livro, como as cenas na escola, onde se conheceram, a cena das pedras e a da troca das bonecas, que terminam lançadas ao porão, o que leva as garotas à porta de Dom Achille, homem temido como o ogro das fábulas.

No primeiro episódio, como no prólogo do livro, Elena recebe a notícia do desaparecimento da amiga em circunstâncias misteriosas. Quem está do outro lado do telefone é Rino, filho de Lila, que soa aflito ao contar que a mãe sumiu há duas semanas. A ausência de Lila é a força que leva a narradora à escrivaninha de seu bonito apartamento em Turim para então escrever a história dessa amizade, impedindo assim que a amiga desapareça sem deixar vestígios.

Algumas pequenas diferenças podem ser notadas logo de saída. Se, nos livros, o cachorro de Elena é mencionado apenas no final do último volume, na série, ele está presente desde o início. Nas páginas, a menção ao cachorro poderia soar fora de lugar, como um detalhe excessivo em um prólogo que afinal é tão conciso, tão enxuto, mas dificilmente escaparia despercebido na série, que apresenta a personagem em seu apartamento, com um número de informações visuais a que não temos acesso na leitura, uma distinção importante entre contar e mostrar.

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Mas há outras alterações mais significativas, que não são meramente circunstanciais, e que podem determinar a interpretação da história que acompanhamos. Por exemplo: no livro, Elena sempre se refere a Lila em terceira pessoa. Já na série, é com Lila, diretamente, que dialoga: o uso da segunda pessoa no final do prólogo sugere que a própria amiga seja, de alguma forma, a destinatária da história que Elena passa a escrever.

De fato, é o vulto de Lila, ainda criança, que Elena, agora perto dos setenta anos, vê numa cadeira de balanço, num canto escuro do apartamento. A cena, que não está no livro, tem uma força inquietante: Lila olha para Elena, levanta silenciosamente como uma fantasma e desaparece soturna. No lugar deixado por sua ausência, o texto de Elena começa a tomar forma.

Nos livros, só mais tarde descobrimos que a narradora prometeu à amiga que nunca escreveria sobre ela. Esse é, portanto, um gesto de desobediência de Elena. Na série, ao contrário, somos informados da promessa feita e descumprida ainda no prólogo. Mas o processo de condensação funciona bem para transmitir os conflitos que estão em jogo, e que ficarão mais intensos conforme o desenrolar das memórias.

O bairro de Nápoles, inspirado no rione Luzzatti, surge empoeirado, desbotado e claustrofóbico. Os moradores se esbarram nas esquinas e nas escadas, gritam nas janelas e nas ruas, parecem parte de um mesmo organismo, ligados como células que compõem um tecido. Afastado da cidade, o bairro paira suspenso como uma ilha mítica.

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Mas a direção, às vezes, prolonga a duração de cenas trágicas, acentuando o tom melodramático (como na longuíssima cena da partida da família Sarratore sob protestos de Melina), o que soa como um ponto de exclamação — recurso que Ferrante evita em seus textos. O tom destoa, portanto, do relato seco de Elena Greco ao narrar as passagens mais violentas ou as mais afetuosas da tetralogia.

Na série, a brutalidade das relações humanas é retratada de maneira gráfica, o que pode ser difícil mesmo para quem leu os livros e está habituado à violência do universo de Ferrante. Em boa parte das representações da cultura italiana, os excessos são contrabalanceados pelo humor. Em Ferrante, não há atenuante para o desamparo: a sensibilidade de Elena e Lila esbarram na aspereza da realidade a todo instante. Mas o laço que as une, embora conflituoso, é o ponto de ternura que funciona como abrigo.

Competindo ou fantasiando juntas, provocando uma à outra ou cuidando uma da outra, Elena e Lila começam a tecer assim a trama de uma longa e complicada amizade. Quando as meninas trocam as bonecas, Tina e Nu, e cada uma lança a boneca da outra no escuro do porão, lugar que concentra os temores mais secretos da narradora, entrelaçam seus destinos definitivamente, como se as bonecas fossem duplos das personagens e tivessem sido lançadas juntas ao desconhecido, inseparáveis.

O livro, mais do que a série, acaba se desdobrando em diferentes gêneros, passando por temas diversos, como a sombra opressora da Camorra, máfia da região, que se pronuncia sobre o bairro especialmente vulnerável no período pós-guerra. Vai do suspense ao melodrama, flerta com a tragédia e com a epopeia, misturando histórias de amor com narrativas de aventura e de vingança.

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A série dificilmente será capaz de envolver quem assiste aos episódios da mesma forma que os livros fazem com quem lê, mas talvez seja uma experiência interessante para quem puder conjugá-los: ao traçar paralelos e notar contrastes, é possível confrontar as nossas hipóteses de leitura e iluminá-las.

Na abertura, o uso das fotografias das famílias pode ser pensada como uma transposição visual da lista de personagens com que Ferrante abre a tetralogia e que, salvo exceções específicas, são indicadas pelo trabalho desempenhado pelo pai: família do sapateiro (Cerullo), família do contínuo (Greco), família do marceneiro (Peluso), do ferroviário-poeta (Sarratote), do verdureiro (Scanno), do confeiteiro (Spagnuolo), do dono do bar (Solara) e as que estão fora de lugar, como a família da viúva louca (Cappucio) e a família de Dom Achille (Carraci), a personificação do mal nesse primeiro momento da história.

O maior mérito da série, no entanto, é a escolha das protagonistas, que encantam com interpretações comoventes. Esse é o centro em torno do qual tudo orbita na tetralogia, a história de Elena e de Lila: precisamos acreditar nessas meninas, no que elas sentem, no que dizem, no que calam. E isso, sem nenhuma sombra de dúvida, Elisa del Genio e Ludovica Nasti fazem brilhantemente.

Fabiane Secches é psicanalista e mestranda do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo. Ela é especialista na obra de Elena Ferrante.

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