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O fotógrafo que não existia

Eduardo Martins roubou imagens e deixou rastros na internet, como um projeto suspeito para arrecadar fundos humanitários.
Imagem do até então Eduardo Martins, que utilizava fotos de perfil do inglês Max Hepworth-Povey. Crédito: reprodução

"Fica com Deus." Era com essa frase que o então surfista e fotógrafo de guerra Eduardo Martins encerrava diversas mensagens que trocou com a redação da VICE. Há algumas semanas, antes da reportagem investigativa publicada pela BBC Brasil, chegou até nossos ouvidos a bomba: o cara que tinha superado uma leucemia, se jogado no voluntariado no Oriente Médio e cedido fotos incríveis de áreas em conflito armado para vários veículos do Brasil e do mundo, era fake e as fotos não eram dele.

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Durante o período em que Martins manteve contato com a VICE, trocou de celular quatro vezes – o que parecia plausível para um sujeito que cada hora estava em um país. Publicou também na própria BBC Brasil, além de ter um perfil na LensCulture, conceituada revista de fotografia online. No Instagram – onde contabilizava mais de 120 mil seguidores, entre eles a própria ONU –, ele republicava posts de pautas que teria emplacado em veículos como Al Jazeera e The Wall Street Journal. Assim como a VICE, demais sites deletaram o conteúdo que publicaram atrelado à figura do "fotógrafo".

Sites de venda de imagens, como a Getty Images e a agência NurPhoto também chegaram a comercializar imagens que, supostamente, pertenciam a Martins, que se apresentava como voluntário da Safe Drinking Water Foundation. Por e-mail, a ONG informou à VICE que "ninguém com esse nome trabalhou para a organização".

Eduardo Martins não sabia que sua história estava sendo investigada por jornalistas - a BBC Brasil e a própria VICE. Há algumas semanas, contatado pela reportagem da BBC Brasil, Fernando Costa Netto, sócio-fundador da DOC Galeria e ex-editor de veículos como a Trip e o Notícias Populares, tomou ciência da apuração do caso e alertou Martins. "Edu, como vai? Meu caro, se você algum dia quiser contar a sua história, não a da guerra ou a do surf, mas a 'outra', me procure", enviou.

Foi depois do episódio que o falso fotógrafo deletou seus perfis nas redes sociais e enviou uma mensagem dizendo que iria se desligar de tudo, deletar o WhatsApp e passar um ano surfando na Austrália. Na sequência, Costa Netto, até então fonte, publicou a história em sua coluna no site de surf Waves antes mesmo de a BBC soltar sua reportagem ainda em processo de apuração. O mesmo aconteceu conosco.

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Em uma mensagem enviada para a Wix, plataforma para a construção de sites, em outubro de 2016, Eduardo pede ajuda para acessar sua própria conta, dizendo ter problemas no login. A resposta oficial informa não só o e-mail e site do falso fotógrafo, como também um outro domínio de sua conta: o For Gaza Project.

No Facebook, uma publicação da atriz Daniele Suzuki (também em outubro de 2016), se refere a Martins como um de seus "amigos especiais trabalhando em campo". Ela divulga o projeto, que reverteria dinheiro para pessoas pobres da Faixa de Gaza e pede colaborações. "O Edu vende as fotos do seu trabalho. Cada impressão comprada, 100% da renda será revertida para comprar suprimentos para cada abrigo e para melhorar de alguma forma a qualidade de vida daquele povo."

Procurada pela reportagem da VICE, a assessoria da atriz informou que não responderia sobre o assunto. O post no Facebook continua no ar.

No Instagram de Bruno Gagliasso, um perfil comenta sobre suposta ajuda de Eduardo Martins. Crédito: reprodução/ Instagram

O ator Bruno Gagliasso também publicou sobre o projeto em seu Instagram. Ali, um comentário chama a atenção. Uma mulher chamada Andrea Lopes rebate a crítica de alguém afirmando que Eduardo Martins a ajudava. "Coitado desse povo que critica. Tenho pena de pessoas assim. O Edu faz um trabalho lindo não só na Faixa de Gaza, mas no Brasil também, onde sempre me ajuda na comunidade de Brasilândia. Conheçam antes de criticar."

A VICE tentou entrar em contato com Andrea, mas seu perfil no Instagram é bloqueado.

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Não há maiores informações disponíveis na internet sobre o For Gaza Project.

Apuramos que, tanto para seu site pessoal quanto para o do projeto, Martins registrou o domínio de forma privada. Isso significa que o proprietário do site não é público para qualquer pessoa, mas poderia ser revelado sob investigação policial.

Entramos em contato com a Polícia Federal e também com a Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo (SSP-SP), já que o suspeito possuía telefones com o prefixo 11 e se dizia paulistano, mas, até a publicação dessa matéria, não obtivemos respostas sobre o caso estar ou não sendo investigado. A SSP informou que ainda não tem um posicionamento.

Na última segunda (4), a BBC Brasil publicou uma entrevista com o homem que teve suas fotos de perfil roubadas por Eduardo Martins, o surfista inglês Max Hepworth-Povey. Em entrevista, ele disse não saber se irá entrar com processo, já que a verdadeira identidade do autor que criou a figura de Eduardo Martins é desconhecida.

A mesma resposta foi dada à VICE pelo fotógrafo norte-americano Daniel C. Britt, de quem Eduardo roubou fotos de zonas de conflito. "Não sei quais são minhas opções. Não tenho ideia do que posso fazer", contou por telefone. "Não sei como funcionam as leis no Brasil, se protegem propriedade intelectual, se preciso recorrer a um advogado", lamentou.

De acordo com o advogado especialista em direitos autorais Leo Wojdyslawski, Daniel pode recorrer tanto ao judiciário norte-americano quanto brasileiro, "já que a violação de direito autoral se deu na internet", infringindo o artigo 184 do Código Penal.

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Questionado sobre como os feitos de Eduardo Martins se encaixariam em caso de polícia, o advogado explicou que existem dois aspectos. "O criminal, já que ele cometeu violação de direitos autorais. E o civil, porque ele poderia ser acionado na Justiça pelo uso não autorizado das obras e pelas alterações que fez, já que espelhou as fotos", menciona, em relação ao artifício utilizado por Martins para não ser facilmente descoberto.

O advogado pontua também que, caso tenham efetuado a compra de prints de fotos para o tal projeto de Gaza, os atores Bruno Gagliasso e Daniele Suzuki seriam fundamentais para a investigação. "Porque fizeram uma transferência bancária para uma conta real, algo factível", frisa o especialista.

Mulher que se identificou como namorada de Eduardo Martins em 2015. Crédito: reprodução/ Facebook/ VICE

Em novembro de 2015, quando a VICE publicou um artigo com fotos que supostamente eram de Eduardo Martins no Facebook, uma mulher se identificou como namorada do falso fotógrafo. Por telefone, ela negou o pedido de entrevista e disse não conhecê-lo. "Eu não sei se eu comentei 'meu namorado' ou não, porque isso não é comentário meu, é uma pessoa que nunca foi meu namorado e eu não tenho nada pra falar sobre isso", disse.

Eduardo Martins existiu na rede por pouco mais de dois anos. Não há acusação formal na Justiça brasileira contra o suposto fotógrafo, assim como não há pistas concretas sobre o verdadeiro autor do caso. A VICE segue atuando para descobrir mais informações e se desculpa com os leitores pelo erro.

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