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Desfile de crianças e jovens para adoção em shopping gera revolta

Evento aconteceu no Pantanal Shopping e fez parte de uma "Semana da Adoção" organizada por uma associação com parceria da OAB-MT.
passarela vazia
Foto do usuário do Flickr Jason Hargrove.

A segunda edição do evento “Adoção na Passarela” aconteceu nesta terça-feira (21) no Pantanal Shopping em Cuiabá (MT) e causou polêmica nas redes sociais. A ideia do evento, segundo os organizadores, foi trazer crianças e jovens aptos para adoção para desfilarem em uma passarela e dar visibilidade para famílias e casais interessados em adotar. No entanto, a desfile causou revolta ao expor crianças entre 4 a 17 anos, segundo as críticas, como mercadorias. O evento foi aberto ao público e fez parte da “Semana da Adoção”, organizado pela Associação Matogrossense de Pesquisa e Apoio à Adoção (AMPARA) em parceria com a Comissão de Infância e Juventude (CIJ) da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Mato Grosso (OAB-MT). Além da OAB, outros órgãos públicos como o Tribunal de Justiça do Mato Grosso atuaram como parceiros do desfile e da semana dedicada ao tema.

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Em uma entrevista para o jornal regional Olhar Direto, a presidente da Comissão de Infância e Juventude da OAB-MT e da Comissão Nacional da Infância, Tatiane de Barros Ramalho explicou sobre o objetivo do “desfile” de crianças e jovens aptos à adoção. “Será uma noite para os pretendentes - pessoas que estão aptas a adotar - poderem conhecer as crianças, a população em geral poderá ter mais informações sobre adoção e as crianças em si terão um dia diferenciado em que elas irão se produzir, cabelo, roupa e maquiagem para o desfile”, disse. Ramalho citou ainda que na edição do ano passado dois adolescentes foram adotados por uma família após participar do desfile. “E como sempre dizemos: o que os olhos veem o coração sente,” adicionou.

Nas redes sociais e comentários sobre o evento, usuários expressaram revolta e indignação, relacionando os participantes menores de idade à mercadorias expostas em um shopping. A AMPARA apagou as publicações e stories publicados em seu Instagram sobre o evento e não respondeu às solicitações de entrevistas da VICE até a publicação desta reportagem.

A representante da AMPARA, Bianca Bagatin, deu uma entrevista ontem (21) a RDTV News para divulgar a “Semana da Adoção” e também explicar o evento “Adoção na Passarela”. Segundo ela, a intenção da passarela é dar visibilidade para as crianças e jovens aptas à adoção e que foi concedida uma autorização judicial para que elas pudessem participar do evento. Ainda segundo a representante do AMPARA, foi perguntado aos jovens e crianças quem gostaria de participar. Além das crianças e jovens, famílias adotantes também desfilaram na passarela no primeiro evento de 2018. Neste ano, a semana contou com palestras e uma exposição de fotos itinerante de famílias que adotaram filhos no estado.

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A segunda edição do evento foi aberto ao público e teve início às 19 horas no Pantanal Shopping, que também foi um dos parceiros da Semana da Adoção. No Instagram, é possível ver alguns stories de pessoas que estavam presente no evento. De acordo com a AMPARA, o evento de 2018 na passarela ajudou a dois adolescentes encontrarem famílias adotivas.

Após o evento, internautas expressaram revolta com a iniciativa, afirmando que o desfile passa uma ideia de mercadoria e que também expõe as crianças e jovens à uma situação vexatória, criando expectativas nas crianças e jovens que desfilaram na passarela.

A AMPARA foi criada por Lindacir Rocha Bernardon em 2010 e, segundo a descrição da associação, presta apoio e consultas à família interessadas em adotar crianças e jovens. Em uma entrevista concedida ao G1, Lindacir disse que resolveu criar a AMPARA após ter adotado três crianças e notado as dificuldades e preconceitos em torno desse tema.

Por meio de nota, a OAB-MT respondeu as críticas sobre o evento. "Nunca foi o objetivo do evento apresentar as crianças e adolescentes a famílias para a concretização da adoção. A ideia da ação visa promover aconvivência social e mostrar a diversidade da construção familiar por meio da adoção com a participação das famílias adotivas," afirmou por meio de sua assessoria. O órgão disse também que nenhuma criança ou adolescente foi obrigada a participar do evento e que todos eles expressaram aos organizadores alegria com a possibilidade de participarem de um momento como esse."

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A OAB-MT disse também na nota que os menores foram autorizados a participar no evento através de autorização judicial "conferida pelas varas da Infância e Juventude de Cuiabá e Várzea Grande, bem como o apoio do Poder Judiciário". Rebatendo alguns comentários associando o evento com leilão de pessoas na época da escravidão no país, o órgão saiu em defesa dizendo que a "OAB-MT e a Ampara repudiam qualquer tipo de distorção do evento associando-o a períodos sombrios de nossa história e reitera que em nenhum momento houve a exposição de crianças e adolescentes."

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Cartaz do evento publicado nas redes sociais. Foto: Divulgação.

Para Pedro Hartung, advogado e coordenador do Prioridade Alta do Instituto Alana é importante sempre deixar claro que a questão da adoção no Brasil é um desafio para crianças maiores de 8 anos de idade, especialmente as que têm irmãos e as que pertencem a grupos étnicos-raciais diferentes do casal adotante. Por conta disso, iniciativas e estratégias para dar visibilidade ao tema são comuns, segundo o advogado, mas dependem da forma que são apresentadas.

“Creio que a discussão do desfile têm gerado essa comoção porque a ideia de um desfile é muito focada na imagem da pessoa, que pode passar a ideia de que somente uma imagem supostamente dentro de padrões de beleza vistos como ideais é o que gera a adoção,” analisa Hartung. “O desfile ocorreu num espaço público onde elas estão sujeitas à diferentes olhares que podem estigmatizar as crianças. A questão é: será que essas crianças se sentiram bem? Será que elas passaram por uma situação de stress? Será que elas foram submetidas à uma situação vexatória proibida pelo artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente? Elas precisam ser ouvidas.”

No caso do desfile, o advogado atenta para a reflexão de se criar práticas sensíveis que respeitem a intimidade e a imagem da criança no tocante da adoção. E que se pense em um contato respeitoso e verdadeiro que possa ser criado entre o casal adotante e a criança sem cuidado parental. " Por isso é preciso que o sistema de justiça e todos aqueles na sociedade interessados nisso permitem a existência de espaços de encontros sem expor a criança em uma situação que possa colocá-la numa pressão muito grande. Afinal, estar estar na espera traz muitas expectativas, medos e desafios que se não for concretizado pode trazer consequências", diz.

@VieneInPace

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