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Será Que Oficiais Egípcios e Eritreus Estão Lucrando Com A Tortura?

De acordo com alguns sobreviventes e o Human Rights Watch, sim.

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“Awet” mostra as cicatrizes da tortura.

Faz quatro dias desde que ele saiu do Sudão, escondido debaixo de cobertores na caçamba de uma caminhonete. Cinco dias desde que ele foi acorrentado com outras pessoas debaixo de uma árvore no meio do nada. Oito dias desde que a polícia e soldados o prenderam, enquanto ele entrava no Sudão vindo da Eritreia, e o venderam aos traficantes. Na noite anterior, ele tinha dormido perto do Nilo, mas agora eles estavam caminhando novamente em algum lugar do Egito. Preciso omitir o nome dele por razões de segurança, então vou chamá-lo apenas de Awet.

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Os dois caminhões carregavam 17 prisioneiros e seguiam rapidamente, mas quando passaram por um posto de controle, Awet levantou um pouco o cobertor. Ele viu um oficial uniformizado egípcio acenando para que os traficantes passassem. Eles já tinham sido sequestrados, acorrentados, espancados e deixados sem comida, mas o pior ainda estava por vir.

O comboio que levava Awet chegou à costa leste do Egito na escuridão. Ainda acorrentados pelos pés, os prisioneiros caminharam em direção ao mar, onde um barco esperava. Havia uma menina pequena demais para andar com as correntes e sua mãe estava fraca demais para carregá-la, então, Awet a colocou sobre os ombros.

Depois de algumas horas no mar, eles chegaram ao Sinai, andaram mais meio quilômetro — ainda acorrentados — até uma praia, onde foram colocados em outras picapes. Eles foram levados para uma casa, onde foram vendidos novamente para outros compradores. Awet e cinco outros foram levados para outro local, vendados, algemados e obrigados a ouvir os sons de sofrimento ao redor deles. Oito prisioneiros já estavam lá dentro.

Esse não é um caso isolado; de acordo com um relatório da Tilburg University, mas de 25 mil pessoas foram sequestradas por traficantes de humanos no Sudão e na Eritreia desde 2010, depois levadas até a península do Sinai e torturadas para extorquir resgates de seus parentes no exterior. A tortura, em geral, acontece enquanto os parentes escutam pelo telefone, uma técnica usada para garantir o pagamento rápido. É uma indústria lucrativa; segundo o relatório, cerca de R$1,4 bilhões em resgate já foram pagos nos últimos três anos.

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Entrevistei Awet em dezembro em nome da Human Rights Watch, que divulgou na semana passada um relatório baseado em 37 entrevistas com vítimas de gangues de traficantes. Onze dos entrevistados relataram 19 casos de conluio com a polícia e soldados egípcios. Muitos também falaram de envolvimento de guardas sudaneses da fronteira, que são conhecidos por prender refugiados da Eritreia e vendê-los para traficantes.

Antes que o relatório fosse divulgado, suspeitava-se que um negócio tão grande não poderia acontecer sem que oficiais do governo fizessem vista grossa. E, realmente, um traficante que usa o nome Abu Faris contou a um jornalista do Sinai que suborna oficiais da segurança para que façam de conta que não sabem de nada.

“Contrabandeamos imigrantes da fronteira entre Egito e Sudão pela Ponte da Paz e o Túnel Sahid Ahmed Hamdy em Suez, pagando muitos subornos pelo caminho”, ele disse. “Depois os colocamos num armazém e oferecemos comida em troca de mais dinheiro, para cobrir o que pagamos como suborno para facilitar o acesso deles até o ponto da fronteira.”

Numa entrevista por telefone na segunda-feira passada, um porta-voz do Ministério de Relações Exteriores do Egito negou que oficiais do país estejam envolvidos no tráfico humano. Ele disse que a prática diminuiu muito desde julho de 2013, quando o governo militar assumiu e a presença no Sinai e nas fronteiras da nação foram fortalecidas. Como as rotas de tráfico humano também são usadas para armas e drogas, segundo ele, elas são um risco à segurança e precisam ser vigiadas.

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No entanto, de acordo com a ativista Meron Estefanos — que monitora essa indústria a partir da Suécia — desde novembro de 2013 o rastro de telefonemas desesperados começou a aumentar pouco a pouco.

De acordo com vários relatos, os serviços de segurança do Egito conheciam a localização de diversas casas de tortura há tempos. Em 2012, por exemplo, uma ONG do Cairo que atua contra o tráfico humano forneceu detalhes dessas casas de tortura à polícia, que não fez nada. “Não podemos fazer nada sobre isso. Sabe-se que essa área está sob o comando de grupos armados. A polícia não pode entrar”, um oficial teria declarado na época. O Serviço Geral de Inteligência, o equivalente à CIA ou ao MI6, disse ter “outras prioridades”.

Em junho de 2013, alguns moradores locais frustrados começaram a tentar resolver a questão por conta própria, organizando suas próprias batidas a algumas casas de tortura. Desde então, as autoridades insistem que estão tomando providências.

Durante seu tempo preso, Awet era acordado às cinco da manhã todo dia para ser espancado. Mas ele teve sorte. Ele é um homem simpático e caloroso, que tem muitos amigos e familiares com conexões no exterior. Dentro de um mês, eles levantaram cerca de R$78.000 exigidos pelos sequestradores e transferiram a soma para um intermediário na Arábia Saudita. Os sem sorte não podiam pagar e, com frequência, sucumbiam à tortura.

“À noite, eles costumavam trazer um corpo coberto e nos mostrar”, me disse Awet. “Eles diziam: 'Vejam — esse cara foi morto porque não quis pagar'. Então, eles nos mandavam enterrar o corpo antes que apodrecesse.”

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Outras vítimas contaram que dividiam celas com cadáveres por dias ou eram obrigadas a abraçar os corpos.

Lendo os testemunhos dos sobreviventes, os termos mais comuns emergem logo: choques, estupros, queimaduras com ferro quente ou plástico derretido, chicotadas e espancamentos. Muitas vítimas contaram ter sido penduradas pelos pulsos no teto, com os braços amarrados nas costas.

“Eles me penduraram três vezes e meus braços ficaram muito ruins. Agora não consigo mais usá-los. É difícil fazer as coisas sem os braços”, um dos homens disse aos pesquisadores.

Awet conseguiu, por fim, chegar ao Cairo, onde ele aguarda que a Agência de Refugiados da ONU processe seu pedido de reassentamento. Ele não pode trabalhar e vive com outros sobreviventes que recebem cerca de R$139 por mês. Muitos mostram danos psicológicos e vivem com medo de serem recapturados pelas gangues, que têm informantes na comunidade eritreia e ameaçam quem fala com a imprensa.

Apesar de ser comandada por gangues criminosas informais, a indústria confia nos oficias do estado em todos os pontos. Como outros refugiados, Awet fugiu da Eritreia depois de ser sujeitado a 16 anos de serviço militar obrigatório num dos países mais pobres e militarizados da Terra. Os oficiais eritreus estão profundamente envolvidos no tráfico. De acordo com o Conselho de Segurança das Nações Unidas que monitora a Somália e a Eritreia, algumas vezes o dinheiro do resgate é transferido para diplomatas eritreus no exterior.

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O relatório de 2013 afirma: “O grupo de monitoramento também ouviu testemunhos de que os resgates são pagos diretamente a oficiais eritreus. Em um dos casos, um cidadão eritreu que vive na Alemanha foi forçado a levantar quase €9.000 (R$29.000) com familiares e amigos para libertar dois sobrinhos sequestrados no Sinai, Egito, em 2011, depois que eles escaparam da Eritreia e se juntaram a uma caravana de traficantes no Sudão. O dinheiro foi transferido para membros da família na Eritreia, que entregaram o dinheiro a um oficial da segurança do governo em Asmara”.

A repressão do governo egípcio no Sinai — que, segundo os moradores locais, fere civis diariamente em sua caçada a insurgentes radicais — pode ter freado a indústria da tortura por enquanto, mas pesquisadores temem que ela reapareça em outro lugar, ou no mesmo lugar assim que a campanha contra os militantes acabar.

No entanto, para as vítimas do tráfico humano resgatadas pelas autoridades, o caso está longe de ter fim. Quando são apanhadas, essas pessoas ficam presas em delegacias egípcias. No momento, a ONU teve o direito de visitar as vítimas negado e as autoridades exigem que os prisioneiros paguem pelo voo para a Etiópia (que aceita refugiados eritreus) como condição para a soltura; uma reconstituição menos violenta e custosa das exigências dos traficantes.

Eu disse ao porta-voz do Ministério das Relações Exteriores que o Egito deveria pelo menos permitir que essas pessoas fossem para a Etiópia, se é isso que elas querem. Ele respondeu dizendo que agências internacionais e governos de outros países precisam ajudar a pagar pelo processo. “Uma mão lava a outra”, ele disse.

Awet é forte. Sinto que ele vai conseguir construir uma nova vida assim que sair do Egito. Mas o rosto angustiado de um amigo dele, que foi torturado tanto quanto ele e por mais tempo, sempre volta à minha mente. Mais de um ano depois de sua fuga, ele parece profundamente desconfortável, sempre com medo, preocupado, mesmo estando em um lugar seguro.

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