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Um bando de artistas peladões conseguiu apavorar Londrina

No interior do Paraná a causa do frenesi não é a crise, nem a delação do Delcídio ou a lista da Odebrecht: são 40 artistas nus interpretando prisioneiros de Auschwitz.

Os 40 atores e atrizes relembraram que o futebol era um dos poucos hobbies nos campos de concentração. Créditos: Edward Fao.

Imagine dezenas de prisioneiros jogando uma partida de futebol no campo de concentração de Auschwitz em plena década de 40. Mas nem sinal daquele uniforme listrado que estamos acostumados a ver: há apenas os corpos nus, esquálidos e marcados pela rotina cruel de trabalho. Peitos, bundas e pintos balançam enquanto os jogadores correm vigorosamente atrás da bola. Por um momento, o semblante atônito e miserável daquela gente deu lugar a expressões descontraídas, até tranquilas. Sem dúvida, um oásis de humanidade em meio à barbárie cotidiana.

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A cena, filmada pelos nazistas e hoje exibida exclusivamente no interior do ônibus que transporta turistas entre os campos de Birkenau e Auschwitz, impressionou o professor de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Londrina (UEL) Aguinaldo de Souza. Quando retornou ao Paraná, decidiu usar o que viu na Polônia para fazer o que sabe melhor: arte. Daí surgiu a ideia de fundir performance e teoria política numa apresentação de sua autoria realizada dentro do campus da UEL.

No fim de fevereiro, a apresentação reuniu atrizes e atores engajados num espetáculo dramático, preocupado em denunciar os poderes constituídos que, em inúmeros momentos da história, usaram a nudez para desumanizar e extirpar a dignidade dos oprimidos. Sob o pôr do sol, 40 pessoas nuas e semi-nuas encenaram o futebol despreocupado dos prisioneiros e ocuparam seus lugares simbólicos em uma vala comum no gramado do Centro de Letras e Ciências Humanas da UEL, onde foram enterrados com cal, observados por um público universitário silencioso e impressionado.

Como era de se esperar, fotos da performance foram divulgadas no Facebook e ganharam centenas de timelines de usuários chocados e indignados – não com o horror nazista – mas com a nudez dos performers, acusados de "misturar arte com sodomia", "atentar contra a moral e os bons costumes" e até de "aderir ao ensino decadente dos comunistas". Não tardou e as imagens chegaram aos portais de notícias online, que, ávidos por aumentar o número de acessos, estamparam meia dúzia fotos dos "peladões" no meio de matérias que pouco ou nada explicavam a proposta artística.

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No mesmo dia, o frenesi deixou o meio virtual e chegou aos pontos de ônibus, residências e botecos: a vibrante Londrina, palco anual de um dos mais importantes festivais de teatro do país transformara-se por um dia em uma daquelas cidadezinhas pacatas onde fofocas moralistas espalham-se feito rastilho de pólvora.

Mesmo com a atribulada agenda de docente da UEL, coordenador de um projeto de pesquisa que investiga o impacto do holocausto nas artes e diretor de dois grupos de teatro, o idealizador da polêmica performance encontrou tempo para conversar com a VICE. "A intervenção fez parte do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da minha graduação em Filosofia. Eu já vinha fazendo uma leitura atenta da filósofa Hanna Arendt, que estudou o holocausto, e com esse trabalho quis propor imagens fortes que se sobrepusessem ao excesso de imagens de todos os dias", esclareceu.

Um mês depois do espetáculo, Aguinaldo ainda relembra assustado as mensagens de ódio multiplicadas em questão de minutos, mas, agora com a poeira mais baixa, avalia que o impacto foi positivo: "As pessoas viram apenas os fragmentos e construíram uma narrativa própria sem saber a que todo eles pertenciam. Hoje a maioria dos revoltados silenciou. Me escreveram da UnB pra dizer que o trabalho está sendo debatido na pós graduação deles". A experiência toda – TCC, performance e repercussão - ainda foi indicada para virar um livro, que pode ser publicado no final desse ano.

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A nudez refém da erotização

A primeira jornalista a entrevistar o dramaturgo foi Celia Musili, que durante 15 anos ocupou o posto de editora de cultura no maior jornal diário londrinense do qual atualmente é colunista semanal. Celia avalia que a potencial reflexão estimulada pela performance – a morte programada administrativamente pelo Estado e a capacidade de resiliência dos seres humanos diante de tamanha monstruosidade – foi ofuscada pela constante erotização dos corpos a que a mídia nos submete cotidianamente.

"Embora as pessoas tenham contato direto com a nudez ou quase isso na figura das beldades da TV, no carnaval, no cinema, revistas e sites, tudo isso tem um sentido mais erotizado. Mas o nu não é só erotismo. O nu pode ser cultural, tribal, pode ser de protesto para criar um sentido de liberdade, reflexão e provocação", afirmou à VICE.

Célia aponta que essa repercussão monstruosa, ainda que tenha assustado os envolvidos, revelou a força do trabalho. Ao lançar mão de um recurso considerado tabu, o nu artístico, a performance revelou o abismo que separa a universidade pública e sua órbita do restante da cidade. Descortinado esse abismo, resta a pergunta: quem foi o responsável pela criação dele?

O idealizador da performance se inspirou nas imensas valas comuns de prisioneiros vítimas do nazismo para retratar o horror espalhado por estados totalitários. Créditos: Aguinaldo de Souza (acima) e Wikipedia (abaixo).

O abismo entre nós

A rejeição imediata aos "peladões da UEL", como ficaram conhecidos os performers, não é um fenômeno local: poderia acontecer – e acontece - em qualquer lugar do país ou do mundo. O sociólogo Fernando Kulaitis, líder do Núcleo de Estudos sobre Sociologia, multiculturalismo e migrações internacionais da Universidade Federal do Paraná (UFPR) tem uma explicação interessante para isso: a nudez foi um gatilho que disparou uma disputa política mais ampla entre o Estado, garantidor da estabilidade social a qualquer custo, e aqueles comprometidos a questionar o status-quo.

O pudor que mantém os corpos vestidos não está, portanto, apenas na cabeça das pessoas, mas também no próprio corpo jurídico brasileiro, que nas palavras do sociólogo "garante a estabilidade da vergonha em forma de lei pelo artigo 233 do Código Penal de 1940 – ato obsceno". Os atos de nudez deixam ser exclusivamente estéticos para implicar numa ameaça à ordem social que sustenta a existência da elite econômica atualmente envolvida numa batalha contra o grupo político à frente do governo federal.

Assim fica mais fácil entender por que a "intelectualidade" pode ser vista como uma ameaça ao desenvolvimento do Brasil. "No atual cenário político, tudo que pode ser considerado como 'ruim', 'atrasado' ou 'obsceno' pode ser utilizado pela verdadeira elite ameaçada em associação ao fracasso - real ou imaginário - do atual governo. Ouvi opinião, por exemplo, de que a derrota de Anderson Silva em sua última luta deve-se ao fato de que 'o Brasil hoje está uma bagunça'", conclui Fernando.

O professor Aguinaldo admite que escolheu para si uma tarefa dura, com ares de Davi versus Golias. Mas não dá sinais de que vai esmorecer. "Estamos emperrados num círculo cultural de amesquinhamento. As sensações e os pensamentos estão rasos. Eu não sou jornalista, não sou advogado, nem médico. Sou artista e decidi que devo fazer ações artísticas enquanto eu viver".

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