Meus sete anos como escrava sexual dos cartéis de drogas do México
A hondurenha em imagem da autora Daniele Giacometti/VICE News

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Meus sete anos como escrava sexual dos cartéis de drogas do México

Uma mulher sequestrada em Honduras foi obrigada a se prostituir a mando de chefões do tráfico mexicano. Depois que conseguiu escapar, ela conta sua história.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE NEWS.

Daniela se lembra de atravessar de carro o deserto do norte do México de olhos vendados, pensando que estava a caminho da morte. Recorda que foi obrigada a descer da van, tirar a venda e seguir os sequestradores armados até uma casa grande, onde então teve que descer para o porão. Ela foi forçada a ver o que estava acontecendo e tentou apagar da mente.

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Não deu certo. A cena ainda está na memória — cerca de cinco jovens amarradas a pilares, cercadas de homens que tinham pagado caro não só para estuprá-las, mas também para torturá-las e, quem sabe, matá-las.

Daniela não é seu nome de verdade. Ela insiste em usar um pseudônimo porque, apesar de ter conseguido fugir do terror a que foi submetida, o alcance de seus antigos raptores é grande. O que ela viu naquele dia foi apenas uma das muitas experiências aterradoras pelas quais passou em sete anos de escravidão sexual, primeiro sob controle de Los Zetas e depois, do Cartel do Golfo. O tormento terminou quando ela conseguiu fugir em 2015, voltando para a família na Nicarágua, onde todo pesadelo começou.

"Vi muita gente morrer, e de formas terríveis", diz, tomando chocolate quente e comendo pizza em uma cafeteria na Cidade do México. "Quero contar porque as pessoas precisam saber o que está acontecendo na fronteira com as meninas desaparecidas, e com muitas das meninas que trabalham no comércio sexual nas zonas dos tráfico."

O caso de Daniela está sendo investigado pela procuradoria geral do México, mas se ela tivesse esperado a salvação do governo, muito provavelmente não estaria livre, e viva, hoje.

Quero contar porque as pessoas precisam saber o que está acontecendo na fronteira com as meninas desaparecidas.

Segundo dados do governo mexicano, 20.203 homens e 7.435 mulheres estavam classificados como "sumidos ou desaparecidos" no país no fim de 2015. É basicamente o mesmo número de quando o presidente Enrique Peña Nieto assumiu o mandato em dezembro de 2012, com o compromisso de agir para acabar com os horrores dos desaparecimentos promovidos pelas mãos dos cartéis de drogas. As promessas se intensificaram depois que o desaparecimento em massa de 43 estudantes em setembro de 2014 na cidade de Iguala, no sul do país, desencadeou a indignação nacional e internacional.

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São recorrentes as duras críticas de grupos de direitos humanos do México e do exterior às autoridades do país por não atuarem com mais empenho na busca pelos desaparecidos. No começo de agosto, 68 membros do Congresso dos EUA assinaram uma carta endereçada ao secretário de Estado norte-americano John Kerry sobre a "atual crise de direitos humanos no México". O texto começa com uma referência aos desaparecidos.

Quem some raramente volta para contar a história. Os motivos dos sequestros variam, mas muitos são raptados para fins de escravidão sexual. A história de sobrevivência de Daniela é ao mesmo tempo extraordinária e angustiante.

Daniela conta que ela mesma ficou chocada ao descobrir a duração de seu suplício. Ela havia estimado quatro ou cinco anos, mas os sequestradores deliberadamente confundiam a passagem do tempo para ela.

"Às vezes, quando estava com um cliente, eu descobria em que mês ou ano estávamos, porque ele acabava falando na conversa, mas se me ouviam perguntando, eu apanhava bastante", recorda. "Não tinha rádio nem televisão [onde eu estava], jornal, nada. Eu dormia em uma das casas deles, eles me levavam para fazer coisas horríveis com os clientes, tiravam meu dinheiro e depois me levavam de volta para dormir."

O início do inferno

Tudo começou quando Daniela tinha 22 anos e passava dificuldades para sustentar os filhos e a mãe, trabalhando como costureira em uma fábrica voltada para exportação perto de sua cidade natal na Nicarágua.

Era abril de 2008 e o país de Daniela mantinha relativa distância da violência brutal que já assolava regiões do México e países vizinhos na América Central. Então a jovem não tinha muitos motivos para ter cautela quando aceitou um convite para uma reunião em que, segundo lhe disseram, ela passaria por uma avaliação para assumir um empréstimo.

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As 15 jovens que participaram daquela reunião perto da fronteira com Honduras foram sequestradas.

Homens armados tomaram seus documentos de identificação e deram calças jeans claras, camisetas e bonés de beisebol brancos para elas vestirem. Ameaçaram matar as famílias das jovens se elas não seguissem instruções detalhadas durante a travessia de postos fronteiriços em Honduras, depois Guatemala, Belize e, finalmente, México.

Dois dias depois do início da viagem, elas pararam na cidade de Comitán, no sul do estado mexicano de Chiapas, e foram colocadas para trabalhar em prostíbulos escuros e sujos. Daniela diz que elas eram espancadas quando demonstravam inexperiência. Duas semanas depois, o grupo continuou a viagem rumo ao norte. Daniela conta que foi a última a ser entregue aos novos mestres, em Nuevo Laredo, no estado de Tamaulipas, na fronteira com o Texas. Foi só então que ela descobriu que estava em poder do cartel Los Zetas.

O cartel

Os Zetas foram formados nos anos 90 por um grupo de desertores das forças especiais recrutados pelo Cartel do Golfo para proteger o então líder do grupo, Osiel Cárdenas. Quando capturaram Daniela, já eram uma organização criminosa famosa pela inclemência dispensada aos inimigos e exerciam poder sobre a população que vivia em suas fortalezas, das quais a mais importante era Tamaulipas.

Nada durante a entrevista afeta tanto Daniela quanto falar sobre o menino que ela considerava um irmãozinho, quando os dois trabalhavam na boate Danash, no centro de Nuevo Laredo. Ela o conheceu quando ele tinha apenas 12 anos e a lembrança a leva a soluçar.

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Daniela tinha que dançar, beber e ficar chapada com os clientes, além de cumprir uma cota de seis serviços sexuais prestados por noite nos cubículos do clube. O menino era ajudante, mensageiro, vigia e DJ — e também era alugado para os clientes, muitos dos quais, turistas norte-americanos em busca de sexo com crianças.

Vi muita gente morrer, e de formas terríveis.

Daniela e seu irmão de consideração surrupiavam conversas furtivas quando seus sequestradores não estavam atentos. Fantasiavam com a liberdade. Ajudavam um ao outro a sobreviver.

Quando o menino teve problemas digestivos que o impediram de trabalhar, homens armados do cartel levaram-no junto com Daniela para a área montanhosa nos arredores da cidade.

Lá, deram uma arma para Daniela e ordenaram que ela o matasse. Quando ela se negou, deram a arma para o adolescente e disseram para ele a matar. Quando ele também se recusou a atirar, os homens o enforcaram em uma árvore e começaram a cortá-lo. Por fim, então, eles o mataram.

"Nunca mais ouvi falarem nada sobre ele", conta.

Mais tarde, Daniela descobriu que a ordem para matá-lo era um teste para ver se ela poderia, de escrava sexual, se transformar em sicaria, como são chamadas as assassinas de aluguel. Quando ficou claro que ela não cumpria os requisitos, o cartel atribui-lhe a função de contrabandear drogas. Esse é um padrão comum, no qual as vítimas do tráfico sexual são forçadas a realizar outros crimes quando envelhecem e passam a ganhar menos dinheiro para seus raptores.

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Daniela conta que o novo trabalho a colocou em contato com líderes do cartel de nomes bem conhecidos da polícia, como Z-40, Metro 3 e Catracho.

Ela também conheceu um Zeta chamado de La Ardilla, e diz que viu quando ele ordenou o massacre de 72 migrantes centro-americanos em agosto de 2010. Mais tarde, ela contou às autoridades que os assassinatos foram encomendados porque o traficante acreditava que as vítimas eram reforços de seus inimigos.

O massacre ocorreu quando os Zetas e o Golfo travavam uma guerra generalizada depois do rompimento entre os dois cartéis no início daquele ano. A disputa incluía batalhas imensas com transporte de homens fortemente armados em comboios com dezenas de veículos de uma só vez.

O início de Daniela na guerra foi como escrava/amante escolhida por um comandante do Zeta de apelido El Viejón. Quando o traficante decidiu mudar a lealdade para o Golfo, ela inevitavelmente foi junto.

Pensei que já estava morta mesmo, então deixei que eles fugissem e se escondessem.

Ser identificada como propriedade pessoal de um chefe do cartel significa que implantaram um chip rastreador no pé de Daniela. Isso não a liberava, no entanto, da obrigação de fazer sexo com outros clientes também. Na verdade, as condições do bordel em que ela trabalhava ficaram ainda piores depois que o Golfo assumiu, apesar da reputação mais sangrenta dos Zetas.

Daniela conta que os novos chefes filmavam os clientes desde o momento em que eles entravam no bar. Os quartos tinham microfones e câmeras escondidas.

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Ela relata que as mulheres tinham que assistir a vídeos de torturas e assassinatos de pessoas que tentavam fugir. Adquirir vícios também levava a desaparecimentos para sempre. E havia também as vítimas de clientes que pagavam para torturá-las e matá-las, como as mulheres que ela vira no porão em meio ao seu suplício. Daniela afirma que os raptores uma vez lhe mostraram um vídeo de um capanga alimentando um leão mantido em um esconderijo na cidade de Reynosa com partes de um corpo.

Embora diga que fez o possível para não arranjar problemas, Daniela conta que uma vez procurou a própria morte quando recebeu ordens de vigiar um casal que havia sido sequestrado.

"Era a primeira vez que me mandavam vigiar alguém e eles estavam muito tristes", relembra. "Pensei que já estava morta mesmo, então deixei que eles fossem embora. Deixei que eles fugissem e se escondessem."

Ela conta que esse ato de rebeldia lhe rendeu um espancamento terrível e uma viagem para o interior, onde El Viejón entrou em um trator e ameaçou passar por cima dela. Depois ele mudou de ideia e mandou que ela passasse horas de joelhos na frente de membros do cartel, para em seguida ser trancada em uma van sem nada para comer nem beber até quase a morte.

Passado o castigo, conta Daniela, ela teve que voltar a trabalhar no bordel.

Foto: Daniele Giacometti/VICE News

De acordo com o relatório mais recente do governo mexicano sobre tráfico sexual no país, que data de 2014, existem 47 grupos criminosos identificados envolvidos com esse mercado de escravos sexuais, com líderes identificados na América Central, no México e nos Estados Unidos, e a participação de bares e boates nos raptos em toda a fronteira norte do país.

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Daniela não tem certeza se algum de seus clientes sabia que ela era escravizada, mas acredita que alguns suspeitavam. Ela diz que às vezes ficava claro que eles tinham visto seus hematomas — apesar de não apanhar no rosto e dos cubículos serem escuros — mas faziam vista grossa. E pedir ajuda, conta a moça, estava fora de cogitação, embora às vezes ela tenha tentado transmitir seu desespero pelo olhar.

Fuga

A jovem não dá detalhes de como conseguiu finalmente escapar, tirar o chip do pé e fugir em segurança. Ela só diz que uma pessoa arriscou a própria vida para ajudá-la. "A pessoa me tirou daquele lugar, pagou meu transporte para a Cidade do México." É tudo que ela conta. "Se eu disser mais alguma coisa, vão matar essa pessoa e eu jamais me perdoaria por isso."

Ela tem bons motivos para temer pela vida de quem a salvou. A violência continua implacável em Tamaulipas, mesmo após o fim da guerra entre o Golfo e os Zetas, agora substituída por uma multiplicidade de batalhas entre diferentes facções dos dois cartéis.

Daniela também não conta detalhes sobre como acabou levando sua história para investigadores federais na Cidade do México. Inicialmente, afirma a jovem, ela foi enviada de volta para a Nicarágua, mas seu caso foi reavivado depois que uma ONG mexicana que atua no combate ao tráfico sexual bateu à sua porta.

Os ativistas conseguiram convencê-la a entrar em contato com um promotor especial em crimes sexuais. Sua esperança, diz ela, é que as investigações levem à liberdade de mulheres que, acredita a jovem, ainda estão desamparadas em cativeiro.

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Daniela diz que sua família registrou o desaparecimento na Nicarágua logo que ela sumiu. Eles também falaram com um canal de TV local e divulgaram cartazes. Depois de um tempo, ela foi dada como morta. Como muitos centro-americanos que desaparecem no México, Daniela nem sequer foi computada no país como os outros 28 mil desaparecimentos registrados.

Daniela relembra a incredulidade da mãe quando ela ligou da delegacia de polícia na capital mexicana. Ela só começou a acreditar quando começaram os relatos de antigas lembranças, como o vestido longo demais que ela havia feito para o 15° aniversário da filha.

"Filha, você está viva!" Daniela recorda o choro da mãe quando a ficha finalmente caiu. "Estou, estou aqui, mãe. Estou aqui."

Alan Hernandez contribuiu com a matéria.

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Tradução: Aline Scatola

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