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Da Frigideira Para o Congelador

Relatórios recentes apontam que nesse exato momento 250.000 soldados-mirins estão sendo forçados a lutar em conflitos armados ao redor do mundo. Falamos com três deles.

Relatórios recentes apontam que nesse exato momento 250.000 soldados-mirins estão sendo forçados a lutar em conflitos armados ao redor do mundo. De acordo com a organização Terre des Hommes, um grupo de pessoas extremamente generosas que agem em prol de crianças abusadas, a cada ano 500 desses jovens fogem e se refugiam na Alemanha. Não é de se espantar que políticos alemães e várias pessoas que eles representam reclamam e repudiam esses intrusos através de leis dúbias que os classificam como "desertores" e impedem que a maioria deles andem livremente pelo país por medo de ser deportados. Basicamente, muitos desses exilados estão aprisionados nos próprios centros que os resgataram. O Dr. Albert Riedelsheimer tem trabalhado com refugiados por mais de 17 anos, e é um dos fundadores da organização humanitária Separated Children em Munique. Ele nos apresentou para o William* e para o Paul*, dois exsoldados- mirins de Serra Leoa, e Mohammad*, um refugiado afegão que escapou por pouco de um recrutamento involuntário no Talibã. Eles foram muito gentis em falar abertamente sobre suas horríveis experiências e sobre a dificuldade de estabelecer uma identidade, sem uma certidão de nascimento, em um país em que não são benvindos.

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*Seus nomes foram trocados e seus rostos escondidos por motivos óbvios. WILLIAM, 16, SIERRA LEONE Vice: Oi, William. Obrigada por ter vindo de Böbrach para Munique para essa conversa. Espero não ter sido um incômodo.
William: Não foi não, obrigado pelo convite. Estou feliz por ter vindo. A burocracia alemã é muito rígida e sempre que quero sair do centro de refugiados preciso de uma autorização oficial. "Visitar amigos" não é uma razão boa o bastante para os agentes alemães. Se eu saio do centro sem autorização e um policial me para na rua, posso ser deportado. A guerra civil em Serra Leoa acabou em 2002. Como você conseguiu escapar?
Eu morava com a minha família em Lungi, uma cidade pequena a duas horas de Freetown. Em 2000, 2001 a situação piorou de repente. Eu tinha nove anos quando minha mãe resolveu me levar e as minhas irmãs para Guinea para criar a gente em um ambiente mais seguro. No caminho para lá, fomos capturados pela Frente Revolucionária Unida (RUF) e levados para um de seus acampamentos. Não pudemos fazer nada, eram centenas deles e estavam armados. O que aconteceu no acampamento?
Primeiro mataram as minhas duas irmãs. Devem ter estuprado elas antes. Disseram que se eu não trabalhasse como espião matariam a minha mãe. Não tive escolha. Falaram que eu tinha que ir para outro vilarejo, emplorar por comida e me enturmar com os soldados inimigos. Todo dia, à noitinha, eu tinha que voltar para o acampamento da RUF para contar o que eu ouvia. Tive sorte de trabalhar apenas como espião. Ouvi histórias de outras crianças que tinham que cortar as mãos e os braços de prisioneiros. Os rebeldes queriam garantir que eles não voltariam a lutar. A única opção que tinham era "Manga curta ou comprida?" Ainda tenho pesadelos com isso. O quão perto você chegou de ser morto?
Depois de uns dois meses trabalhando como espião, os soldados que eu estava espiando começaram a me fazer perguntas sobre mim e sobre as outras crianças, "De onde vocês são? O que vocês fazem? Por que só ficam aqui durante o dia?". Eu trabalhava com mais duas crianças, e começaram a ficar de olho na gente. Fomos levados até o chefe de lá e fomos espancados. Mentimos, e ele acabou acreditando na gente. Teria nos matado se soubessem a verdade. Quando voltamos para o acampamento apanhamos de novo, pois acharam que tínhamos mudado de lado. Você teve que lutar alguma vez?
Existe um ditado em Serra Leoa: "O sangue me persegue". Significa que o sangue das vítimas vai te perseguir até o fim da sua vida. Não quero falar sobre isso. Qual a lembrança que mais te persegue dos tempos da RUF?
Não sei… foram muitas coisas ruins. Um dia os homens da RUF foram para um vilarejo e estupraram as mulheres de lá. Me fizeram assistir. Quando viram uma grávida, apostaram se era de um menino ou de uma menina. Em seguida cortaram sua barriga para descobrir. Uma vez me forçaram a participar. Meu Deus! E você conseguiu escapar. Como foi isso?
Conheci um homem que decidiu me ajudar. Me disse que eu deveria ir de navio de carga para a Europa. Eu nem sabia qual seria o destino do navio, não importava, só queria ir embora para viver uma vida melhor. Não sei nem te dizer a duração da viagem porque perdi a noção do tempo. Talvez um mês ou mais. Fiquei o tempo todo escondido em um dos containers. Não vi muita luz. Levei um pouco de comida mas não bebi praticamente nada. Quais foram as suas primeiras impressões da Alemanha?
Tinha muita gente nas ruas. Eu estava perdido porque não encontrava as pessoas certas para me ajudar, me dizer o que fazer ou para onde ir. De Bremen me mandaram para Munique. Depois de três meses em Munique me mandaram para Böbrach. É isso que fazem com os refugiados. Ninguém fica nas cidades grandes em que chegam. As leis alemãs de asilo são complicadas, não entendo direito. Ficam mudando as pessoas de lugar. É bem difícil. Como é morar no lugar em que você vive agora?
No meu quarto tem sete homens e nos outros quartos tem mais pessoas. O lugar é pequeno. Temos beliches e uma cozinha pequena, a cozinha não tem janela. Não temos lençóis para as nossas camas, só alguns cobertores. No inverno fica muito frio e várias pessoas ficam doentes. Você se sente benvindo aqui?
É bem difícil. Quando cheguei os agentes não acreditavam em mim—que sou menor de idade—porque eu não tinha uma certidão de nascimento. Ninguém em Serra Leoa tem uma. Nasci quando a guerra já tinha começado. Certidões não eram prioridade. Por causa disso tive que preencher um formulário para refugiados adultos e acabei sendo mandado para Böbrach em vez de ir a um centro de menores. Meu tutor está preparando uma reivindicação para que quando eles finalmente acreditem que sou menor de idade eu possa ir morar em Munique, onde meus amigos estão. Quais são os seus planos para o futuro?
Eu gostava de compor música no meu tempo livre, talvez eu pudesse trabalhar com isso. Gosto muito do Jay-Z e do Sean Paul. Queria me matricular em um curso de Administração. Queria ter um diploma, mas acho difícil isso tudo acontecer aqui.

MOHAMMAD, 16, AFEGANISTÃO Vice: Oi, Mohammad. Então você quer fazer essa entrevista em alemão? É impressionante você ter aprendido o idioma tão rápido.
Mohammad: Obrigado. Tento melhorar a cada dia. Temos um bom professor e uma boa escola aqui. O que fez você sair do Afeganistão?
Meu pai disse que se eu não saísse do Afeganistão o Talibã iria me levar. Eles obrigam os garotos jovens a entrarem para o serviço militar nas montanhas do norte do país. Eles são treinados por algumas semanas, aprendem como utilizar armas e como se tornar um mártir. Conte como foi sua fuga.
Alguns dias antes de eu deixar o Afeganistão eles pegaram alguns amigos meus. Meu pai viu isso acontecer. Tenho certeza que eles nunca mais vão ver suas famílias porque os mais jovens são obrigados a lutar na linha de frente. O Talibã gosta de usá-los como escudo de proteção. Quando o Talibã chegou, eu me escondi em um forno que minha mãe usava para fazer pão. Tentaram me procurar várias vezes nas semanas seguintes, mas eu sempre me escondia. Não sei como sabiam que tinha um garoto na nossa casa que ainda não tinha sido recrutado para a guerra. O Talibã matou muita gente da sua cidade?
Matou. O Talibã aterrorizava a gente mas não moravam na minha cidade, que fica a poucas horas de Cabul. Eles só iam lá para recrutar jovens e pegar dinheiro. Como foi a sua jornada?
Foi bem perigosa, principalmente entre o Paquistão e o Irã, porque se me encontrassem me matariam na hora. A viagem foi bem cansativa porque estávamos sempre correndo. Não tinha quase nada para beber e pouquíssima comida e animais selvagens por todos os lados. Passei muito medo. Você teve que pagar as pessoas que te ajudaram na fuga?
Meu pai pagou, mas não sei quanto. Eram contrabandistas profissionais. Por que a Alemanha?
Quis vir para a Alemanha porque ela foi reconstruída depois da 2a. Guerra. As pessoas aqui sabem como reconstruir um país. A Alemanha é muito melhor que outros países da Europa. Aqui você encontra muitas fábricas: Mercedes-Benz, BMW e Audi. Quando eu aprender melhor a língua e começar a estudar, quero começar uma carreira e ajudar minha família no Afeganistão. Com certeza existem muitas diferenças entre a Alemanha e o Afeganistão.
Com certeza. No começo eu fiquei bem surpreso por não ter caos nas ruas. É tudo muito organizado. Você não vê soldados, violência ou crimes. Você teve algum problema com as leis infames de asilo?
Eu não tinha passaporte, então não queriam acreditar que eu era menor de idade. Sou alto e aparento ser mais velho do que realmente sou. Queriam ver uma certidão de nascimento e saber como cheguei aqui. Não acreditaram quando disse que vim por conta própria. Por sorte conheci o Dr. Riedelsheimer. Ele me ajudou no processo e por isso estou aqui agora. Seu apartamento é muito legal, mas às vezes sente falta de casa?
Tenho saudades da minha família. Eles acham que as coisas vão ser melhores para mim aqui. Meu pai tem muita fé em Deus, ele nunca, nunca vai deixar nossa cidade. Espero poder mandar dinheiro para eles quando eu conseguir um emprego. O que você faz no seu tempo livre?
Gosto de tae kwon do. Quero ser bom nisso!

PAUL, 22, SERRA LEOA Vice: Tudo bem perguntar sobre a sua viagem para a Alemanha e sobre como sua vida nova difere da sua vida como soldado?
Paul: Podemos falar sobre tudo, mas estou num momento onde quero esquecer dos meus tempos como soldado. Fiz terapia e quero seguir em frente agora. Pode perguntar o que quiser mas talvez eu não responda tudo. Acho justo. Como começou a lutar para a RUF?
Quando eu tinha oito anos eles apareceram no meu vilarejo e queimaram nossas casas. Mataram meus pais e me levaram com eles. Eu estava apavorado demais para ter qualquer reação—me obrigaram a ir com eles. Também pegaram outras crianças e homens mais velhos, e levaram todos nós para um acampamento no meio do mato. É difícil dizer quantos eram. Como eu disse antes, quero esquecer essas coisas. Eu entendo. Por favor ignore qualquer pergunta que você não queira responder. O que aconteceu quando você chegou no acampamento? Você foi treinado?
Não precisa treinar muito. Eu cresci em volta de armas e quando a RUF me pegou eu sabia o que estava acontecendo. Não foi uma surpresa completa. A gente sempre fugia do vilarejo quando a RUF aparecia, mas aquele dia foi diferente. Ouvi dizer que os líderes da RUF dão drogas e álcool para as crianças para conquistá-las. É verdade?
É verdade. Os líderes também usam drogas. Algumas crianças usavam muita droga. Dançavam no acampamento e enlouqueciam. Sempre tentei evitar essas coisas, mas não tive muita escolha. Quando me davam certas pílulas eu tinha que tomar. O que acontecia com as crianças que não obedeciam?
Matavam na hora. Algumas tentaram fugir do acampamento, mas também foram mortas. Você tinha alguma função em especial quando era soldado?
Lutávamos e roubávamos vilarejos. Era o que chamávamos de "Operação: Você mesmo", o que significa que pegávamos tudo o queríamos ou precisávamos da casa das pessoas. A maioria das vezes lutávamos mano-a-mano. Também tinham jazidas e bombas, mas não muitas. As armas viam da Libéria e era tudo baseado em diamante e poder. A guerra civil girava em torno disso. Como você conseguiu escapar?
Foi algo que eu não esperava. Eu estava com 14 anos na época. Durante uma batalha no mato muita gente foi morta. Depois disso eu fugi para a Guinea. Troquei de roupas, joguei minhas coisas fora e me escondi na casa de uma senhora idosa por alguns dias. A Guinea também não estava em conflito naquela época? Tinham soldados atrás de você?
Tinham conflitos na fronteira e se tivessem me achado teriam me matado. A dona da casa em que fiquei me pôs em contato com um contrabandista. Ele me colocou num caminhão que me levou para a Guinea. No litoral entrei clandestinamente num navio que me levou para a Alemanha. Quanto você pagou para o contrabandista?
$1,500. Como um garoto tão jovem tinha todo esse dinheiro?
Isso eu não vou falar. Tudo bem. Eles te falaram para onde o navio estava indo?
Não. Eu fiquei o tempo todo escondido. Você viu outras crianças?
Com certeza tinham mais crianças. O contrabandista me deu alguma comida. Não tinha ideia para onde o navio iria. Acho que cheguei em Hamburgo, não tenho certeza até hoje. Quando cheguei, peguei um trem para outra cidade e quando cheguei no primeiro centro de refugiados descobri que estava na Alemanha. Você teve problemas com os documentos de entrada?
Tive, foi bem complicado. Eu sabia ler um pouco porque meu pai me ensinou. Ele era professor. Não assinei nada até conhecer o Dr. Riedelsheimer. Os agentes discutiram alguns dias e então decidiram que eu era menor de idade. Tive que deixar o primeiro centro e fui mandado para Munique. Você está trabalhando?
Trabalho como tradutor aqui no centro e em um supermercado grande na seção de frutas e verduras. Quando alguém quer saber onde uma fruta está ou como é o seu sabor eu ajudo. É um trabalho legal, que eu gosto. Gosto de viver aqui e não me imagino voltando. Temos um apartamento pequeno no subúrbio de Munique. Não temos muito dinheiro mas dá pra viver. Você fala "nós". Você tem namorada?
Tenho. Estamos juntos há quatro anos. Estou feliz com ela. Ela é da Guinea e trabalha como arrumadeira. Também cuida dos nossos filhos. Temos três meninos. Ainda tem um lugar no seu coração para Serra Leoa? Você sente falta de lá de vez em quando?
Às vezes sinto. Sinto falta do clima e da comida, mas têm muitas lembranças ruins relacionadas àquele lugar. Não vejo nenhuma razão para voltar. Vou fazer o que lá? Voltei pra Guinea ano passado pela primeira vez. Visitamos a cidade natal da minha namorada. Era bem parecida com a minha. Você já falou com os seus filhos sobre o seu passado?
Quando estou com a minha família não penso na guerra. Nem minha namorada sabe pelo que eu passei. Não quero que meus filhos saibam. Não quero que brinquem com jogos de guerra e nem que tenham armas de plástico.