Desmoralizar, esculhambar, zoar, desmascarar, humilhar, ridicularizar, espinafrar. O relógio aponta cinco horas da matina, o céu está escuro e cerca de 50 pessoas aguardam em frente ao Sindicato dos Advogados, no centro de São Paulo. Hoje, o objetivo é um só: ir até a casa de Aparecido Laertes Calandra, ex-delegado nos tempos de ditadura brasileira, dar-lhe um saudoso e intrépido bom dia para lembrá-lo das acusações de tortura, homicídio e abusos sexuais correspondentes à época em que ele era conhecido como capitão Ubirajara e comandava os interrogatórios do DOI-CODI SP, o temido calabouço dos presos políticos. Assim como o cinquentenário do golpe de 64 ressuscitou a Marcha da Família com Deus, a memória de torturados, mortos e desaparecidos também foi resgatada.
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O céu escuro lá fora e a galera reunida dentro do Sindicato dos Advogados recebendo as instruções pro escracho.O “escracho” foi organizado pelo Levante Popular da Juventude, movimento social conduzido por uma molecada afiadíssima, que, de forma cautelosa, só revelou o “personagem-alvo” do dia em cima da hora, por motivos de segurança. Pegamos carona no ônibus deles e durante o trajeto recebemos um panfleto com uma breve sinopse da provável atuação de Ubirajara nos anos de chumbo.O ex-militar, hoje um senhorzinho de cabelos grisalhos, mora em uma vila residencial no bairro Vila Carioca. E foi bem em frente ao portão que a galera deu o bom dia microfonado, carinhosamente chamando-o de torturador, safado, criminoso e estuprador, espalhando panfletos pelas casas da região e anunciando para a comunidade local todas as terríveis acusações recebidas por ele até então — que, diga-se, não apareceu para um oizinho.Enquanto o escracho comia solto, dei uma volta para conversar com os vizinhos — completamente atônitos com toda aquela movimentação às seis da manhã. Cileide e Nanci, moradoras da mesma rua que Calandra há anos, acharam as pichações desnecessárias e absurdas. “Isso é baderna, isso é bagunça, sacanagem. Ele é um senhor. É mentira que ele matou gente. Nunca tivemos problema com esse homem. É uma pessoa muito educada, tranquila. Passa e diz ‘bom dia’”, bradavam. Mas um homem que papeava com elas, João Carlos, contemporizava. “Acho que ele deve ser espinafrado mesmo. Ele briga até com o cachorro da esquina. Aparentemente, é um desequilibrado. Mas pichar é vandalismo.”
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O panfleto que recebemos durante o trajeto contando a história do ex-delegado Calandra.Insatisfeitos com o portão da vila impedindo a passagem até a casa do ex-delegado, a galera não pensou duas vezes e deu aquela arrebentadinha na fechadura — o que provocou a ira dos moradores da vila. “Eu tô puto da vida. Moro aqui há 30 anos. Quem vai pagar o portão quebrado? Será que a pessoa não tem chance de se arrepender? Não existe segunda chance?”, dizia Roberto, um senhor de bigode que olhava fundo para as câmeras que o cercavam — inclusive a nossa. Mas em nenhum momento o inconformismo dos vizinhos atrapalhou o escracho e a casa de Calandra ganhou pichações como “torturador”, “assassino”, lambe-lambes e uma faixa clamando por verdade e justiça.“É importante que o povo vá para a rua. E que a partir da memória dos nossos mortos e desaparecidos, consigamos fazer justiça”, disse Luiza Troccoli, estudante de letras da USP e integrante do Levante Popular. Thiago Barison de Oliveira, advogado presente no ato para amparar os manifestantes, reforçou o objetivo. “O que resolve é consciência, luta, ação. Fazer isso é fazer justiça. A revisão da Lei de Anistia é uma forma de completar a democracia. Esses caras não merecem nada a não ser o escracho.”A indignação causada pela impunidade aos agentes da ditadura brasileira tem seus fundamentos. Na América Latina, países como Argentina, Chile e Uruguai condenaram militares por violar os direitos humanos. No Brasil, mesmo com a Comissão da Verdade, a coisa anda devagar, os documentos estão arquivados, não existem respostas sobre desaparecidos e ninguém, absolutamente ninguém, foi punido. Parece muito mais fácil achincalhar estudante que pede justiça do que condenar supostos assassinos que usam o passar dos anos e os fios brancos na cabeça a seu favor.
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