Como Muhammad Ali inventou o hip hop
Muhamed Ali durante entrevista concedida em 1970 dentro de um ringue. Foto: AP Photo/ARQUIVO

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Como Muhammad Ali inventou o hip hop

Com audácia, coragem, irreverência e poesia, Ali traçou o caminho a ser seguido pelos pioneiros do hip hop e nos ensinou como um homem deve ser.
Touré
Por Touré
AS
Traduzido por Aline Scatola

Muhammad Ali já era hip hop antes do hip hop existir. Ele é o pai do hip hop. Um dos homens que a jovem geração do hip hop assistia enquanto formava a noção do que era ser homem. (Os pais do hip hop são muitos – eu incluiria Malcolm X, Richard Pryor, James Brown e Bruce Lee na lista, mas a história deles fica para outro dia.) Não falo de hip hop pensando só em rappers nem mesmo na comunidade específica. Estou falando de uma coisa mais: o Ali foi uma influência central na essência da cultura hip hop compreendida de maneira mais ampla. Cultura hip hop no sentido de gente como Jay-Z e Rakim, e também de pessoas como Richard Sherman e Jamie Foxx e Serena Williams e a Leslie Jones do SNL, e assim por diante. A cultura hip hop é ousada e irreverente e, às vezes, entra em guerra com a nação que se cativa por ela. Isso é porque o hip hop é filho de Muhammad Ali. Como? Permita-me dar a letra. Ali era a síntese da masculinidade Em uma época em que ser campeão dos pesos-pesados significava alguma coisa, Ali venceu o título três vezes. Superou Sonny Liston, Joe Frazier, George Foreman e outros, fazendo desses grandes lutadores nada além de derrotados. Além disso, e principalmente, Ali vencia com estilo. Parecia que ele dançava no ringue. Com certeza flutuava como uma borboleta. Tinha fluidez, tranquilidade, balé, força e beleza. As constantes declarações de sua graça não eram mera vaidade nem forma de se gabar por ser tão raramente atingido. Era a maneira dele dizer que negro é lindo. Mas mesmo ao discutir sua própria beleza, Ali era robustamente masculino. Toda a visão de masculinidade que ele tinha – ousada e irreverente, com consciência absoluta da própria genialidade, certo de sua beleza – se tornou o ideal da geração hip hop. Ele foi, como afirmou Ossie Davis sobre Malcolm X por ocasião de sua morte, "nossa masculinidade negra viva". Ali nos ensinou o que era ser homem. Ali manipulava a mídia A cultura hip hop adora criar uma cena, se destacar, exigir atenção. Tem a ver com as correntes de ouro, os óculos escuros imensos, a nave chamativa. Ali foi o maior showman, produto e promotor do boxe. Contou em rima como era incrível e provou que falava sério. E sabia chamar atenção para as lutas. Sabia falar com os repórteres para que ficassem ligados em toda palavra do boxeador, sabia ser engraçado, espirituoso, poético, imprevisível e desaforado com muito charme. Ele nos ensinou a ter presunção e fazer isso de um jeito divertido. A audácia irresistível do ego no hip hop vem de Muhammad Ali. Ele também era cheio de manha. Dava para ver a malícia nos olhos dele. Dava para ver no jeito que ele manipulava a imprensa. Aquela foto famosa em que ele está lutando boxe debaixo d'água foi puro teatro. Ele falou para um repórter que aquilo fazia parte do treino — uma mentira deslavada. Mas é uma das imagens mais emblemáticas de todos os tempos. A lição dele foi que o estilo poderia se tornar sua própria substância. Ali questionou a lei e ganhou A luta mais importante de Muhammad Ali foi contra o governo norte-americano, que tentou recrutá-lo para o exército durante a Guerra do Vietnã. Ali enxergou a estrutura de poder branco que oprimia cidadãos negros e não-brancos e que também pedia para ele ir matar pessoas não-brancas em outro país. Entendeu que seu próprio país não cumpria a promessa com seus cidadãos não-brancos, o que tornava impossível atender à exigência de matar em nome desse mesmo país. Não foi uma tentativa de se esquivar da luta. Foi uma manifestação profunda – um cidadão enfrentando o próprio país e exigindo uma postura melhor, embora a decisão o tenha afastado do boxe durante seu auge absoluto. O hip hop adora um homem que se levanta de forma justa contra o governo e denuncia que a estrutura de poder não respeita os negros. Ali foi o Black Lives Matter antes do BLM. Ali era guerreiro O hip hop sempre teve a ver com batalhas. Das antigas batalhas entre MCs às diss tracks da atualidade, o hip hop adora entrar e assistir a uma boa briga. Ali era famoso por passar por cima de tudo. Foi para a batalha contra os homens mais inclementes de sua geração e, na maioria das vezes, saiu ganhando. O resultado, no entanto, é quase irrelevante: Provavelmente jamais esqueceremos o nocaute que Ali levou de Joe Frazier na primeira luta, mas não conseguiríamos nunca imaginá-lo fugindo. Ele era implacável e corajoso demais para isso. Mesmo quando já estava mais velho e mais lento, ainda assim enfrentou Larry Holmes. Com certeza o hip hop puxou isso dele. Ele chocou o mundo e o obrigou a acolhê-lo Para muita gente nos anos 60, Ali era um vilão, um falador, atleta que violava regras tácitas discutindo política – e com posições radicais ainda por cima. Muitos assistiam às lutas torcendo para que ele perdesse. Mas, com o tempo, pelo caráter, os princípios, o sucesso e a personalidade de Ali, ele passou a ser cada vez mais amado no mundo todo. Aqueles que se lembram do homem que virou muçulmano quando a Nação do Islã era temida sabem que o maior truque que Ali já conseguiu fazer foi conquistar o amor de todo o planeta. O hip hop, assim como Ali, passou de contracultura perigosa a queridinho universal. E hoje essa cultura espera honrar seu pai, Muhammad Ali, continuando a não se curvar diante dos poderosos. Siga o Toure no Twitter. Tradução: Aline Scátola

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