Do Run DMC ao Run the Jewels: como os quadrinhos influenciaram o hip hop

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Do Run DMC ao Run the Jewels: como os quadrinhos influenciaram o hip hop

Wu-Tang, Kendrick Lamar e quase todos seus rappers, produtores e B-boys favoritos piram em quadrinhos.

Em 2009, 50 Cent e o escritor Robert Greene publicaram The 50th Law – um bestseller semi-autobiográfico que meio que virou um tratado em como se dar bem nos negócios ou morrer tentando. O livro foi um sucesso inquestionável, mas muitas gente não botou fé quando 50 Cent e companhia decidiram relançá-lo de forma ilustrada; como quadrinho. Apesar das muitas referências ao Quarteto Fantástico no original, o livro simplesmente não se traduzia bem para o formato, e a sua novelização gráfica saiu brega e desajeitada, se assemelhando a um daqueles filmes feitos direto pra TV com frases feitas como "Eu podia fugir de tudo com as drogas. Mas quando você escolhe esse caminho, não tem volta". Coisa séria mesmo.

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Claro que não há muito a se comentar sobre 50 Cent ter lançado uma HQ terrível, mas a coisa toda pareceu uma dolorosa e enigmática nota de rodapé naquilo que de fato é uma prestigiosa e longeva linhagem de figuras no mundo do hip-hop tentando convergir seus dois maiores amores. Do Wu-Tang ao K.dot, quase todos seus rappers, produtores e B-boys favoritos piram em quadrinhos.

A documentação da multifacetada e gigantesca história do hip-hop compreende os mais diversos formatos: filmes desde Style Wars até Something From Nothing, artigos e livros sem fim detalhando e dissecando vários ramos da cultura hip-hop, e uma cacetada de obras visuais que exploram as origens da coisa toda. Mas apesar de todo o escrutínio e academicismo intenso, aqueles que contam a história do hip-hop, muitas vezes esquecem dos universos em Technicolor que moldaram as imaginações dos pioneiros: os quadrinhos que liam quando eram moleques.

Fato é que muitos foram culturalmente nutridos por estas HQs, influenciados tanto pelos lápis bem apontados de um ilustrador criativo quanto pelas desconstruções do Amen break. Ainda assim, o legado avassalador das graphic novels, profundamente incrustado no desenvolvimento do hip-hop moderno, segue desconhecido pelo mainstream em 2015 que tende a vê-los como a muito saqueada reserva de diretores de cinema hollywoodianos com orçamentos enormes e pouca originalidade.

Uma homenagem da Marvel ao Run The Jewels

"Quadrinhos fazem parte do mundo criativo de um jovem em um ambiente urbano. Você pode não admitir oficialmente, mas ao falar com quase todo rapper – a gente cresceu com essas porras. Te garanto que 80% dos rappers que se encontra por aí provavelmente tiveram uma fase de ler muitos quadrinhos". Assim disse El-P, uma das metades do Run The Jewels, em entrevista à Rolling Stone de janeiro, após a Marvel ter feito uma homenagem a eles.

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Justiça seja feita, as pistas estavam por toda parte: o manto de DOOM, os discos conceituais de Killah, Birdman posando ameaçadoramente na capa de The Amazing Spiderman (abaixo). E não são só rappers das ruas como Lupe Fiasco e Gambino que mandam um salve para o mundo dos quadrinhos por ter lhes ajudado a criarem suas vozes. A influência vai até os chefões do rap, os Original Gangstas, nomes reverenciados que exigem respeito onde quer seja. Nomes como Darry McDaniels, a lenda que adicionou o 'DMC' depois do 'Run'.

"Eu já curtia quadrinhos antes do hip-hop chegar em mim. Em 'King of Rock' eu não eu digo 'I'm DMC, I can rap', digo 'I'm DMC, I can draw" [Sou DMC e sei desenhar], ele diz. "Você tem que parar e pensar: quando surgiu o hip-hop? No começo dos anos 70. E ao mesmo tempo você tinha ali o Bruce Lee, um puta de um herói, e quadrinhos. E tudo aquilo existia ao mesmo tempo para nós que acabamos virando os primeiros artistas de hip-hop e também os da atualidade. Fazia parte do nosso estilo de vida".

McDaniels sabe muito bem do que está falando. Sua editora de quadrinhos, Darryl Makes Comics , realizou um sonho de 40 anos quando o primeiro volume de DMC foi publicado, contando a história de um universo alternativo onde o gentil Darryl McDaniels nunca se torna um rapper e ao invés disso se vê dando aulas de Literatura durante o dia e socando criminais durante a noite. Digno de nota é seu traje, em que o heroico DMC usa o mesmo uniforme de B-boy que seu supergrupo popularizou: chapéu fedora preto, corrente brilhantes, e o mais importante, Adidas novinhos.

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A motivação, diz DMC, não é sua persona rapper cheia de marra e atiradora de rimas, mas o garotinho lá dentro, "cuja vida foi mudada pelos quadrinhos". É um trabalho de amor que por acaso se passa em um universo B-boy, não como mero artifício, mas porque a cultura do hip-hop e quadrinhos se misturam tão bem que acaba se tornando um ambiente natural. Afinal, para garotos como DMC, desmamados em meio às áreas mais pobres de uma metrópole cruel, os quadrinhos eram o tipo de cultura mais acessível que se tinha por perto.

Arte por Shawn Crystal, Khoi Pham, Chris Sotomayor e Edgardo Miranda-Rodriguez

"Eles costumavam custar menos de um dólar", relembra Edgardo Miranda-Rodriguez, atual editor-chefe da Darryl Makes Comics. "Nem de classe trabalhadora eu era – era pobre mesmo. Cresci no South Bronx e coletava garrafas e latas. Quando finalmente conseguia uns trocados, ia na loja e comprava uma revistinha. Os preços eram acessíveis".

Da mesma forma, Ed Piskor – cérebro e mãos por trás da versão gráfica da história do hip-hop publicada em 2013 intitulada Hip-Hop Family Tree – também vê a acessibilidade como principal fator em seu amor por ambos. "Sou de Pittsburgh, Pensilvânia, e não tem nada mais simples que isso. Não tínhamos muita grana para gastar com entretenimento, mas dava pra comprar uma HQ pagando 60 centavos às vezes, e o hip-hop estava por toda a parte. Eu podia entregar uma fita em branco para uns amigos e no outro dia na escola, teria um monte de sons de rap novos. Os dois formatos eram muito democráticos; tudo que você precisava era de papel e uns lápis para fazer quadrinhos, e o rap nem disso precisava! O pessoal na escola só batucava em uma mesa e alguém saía rimando".

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Agora é bem óbvio sacar como as histórias contadas nestas revistas inspiraram a juventude que liderou uma revolução cultural. Histórias de heróis com defeitos, naturalistas, lutando contra sistemas sociais injustos para se protegerem e também seus entes queridos? Como estas narrativas não influenciaram gente crescendo em uma sociedade que parecia ter sido projetada para mantê-los por baixo?

Observe os primeiros pixos e grafites associados ao hip-hop, dá pra ver que todo mundo era bem aberto quanto a esse tipo de estímulo. Temos aí o infame mural de Lee Quiñones que destaca Howard o Pato, ou a obra de Lee como parte da crew ícone de Nova York, Fabulous Five, que cobriu incontáveis vagões do metrô com vibrantes e incríveis pinturas que indubitavelmente adotavam uma clara estética de quadrinhos. "Olha o Style Wars", diz DMC, assistindo o documentário definitivo de 1983 sobre o hip-hop, "Acho que o cara mais velho ali tinha 17 anos. São jovens criando imagens e visuais daquilo que vivíamos todos os dias. Você metia o escudo do Capitão América ali e o Batman ali quando deixava sua marca. A influência artística dos quadrinhos sempre esteve presente".

Arte por Chase Conley e Mare 139 (recortada)

Agora, muitos destes jovens B-boys dos anos 80 dominam o hip-hop, no papel de rappers, produtores, curadores de arte e influenciadores em geral, respeitados por todos. Mesmo assim, eles não perderam seu amor por uma arte que mostrou a tantos deles o poder da imaginação. "Eu fiz a curadoria de uma exposição sobre a Marvel em 2009", lembra Edgardo, "aí aparece Pete Rock, com uma pilha enorme de quadrinhos. Ele chega no Joe Quesada, editor da Marvel Comics na época, com um puta de um sorriso amarelo porque ele quer que Joe autografe todos eles". Ele ri, e complementa: "E no fundo está o Axel Alonso [atual editor da Marvel] surtando tipo 'Ei! Ei! É o pete Rock!". Ele imita Axel, pegando um telefone. "Se liga Mecca e o Soul Brother estão bem aqui comigo!".

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O hip-hop tem sido dominado por 'geeks B-boys' malucos por quadrinhos (termo cunhado por Edgardo e o formidável executivo da Atlantic Records, Riggs Morales) desde que as primeiras festas nas ruas dos Bronx rolaram no calor grudento de um verão qualquer dos anos 70. E mesmo agora, você vê a evolução e expansão contemporânea disso nos laços estreitos do hip-hop com os desenhos do Adult Swim: Tyler the Creator, Chance The Rapper, Flying Lotus, Killer Mike e tantos outros mais aparecem no canal. Então o 50 Cent não arruinou a ligação entre hip hop e quadrinhos, no fim das contas.

Talvez anteriormente a significância dos quadrinhos fosse ignorada por não serem valorizados pela maioria como obras literárias e artísticas legítimas. Agora, diante de um fluxo sem-fim de filmes hollywoodianos diluídos de super-heróis com orçamentos gigantescos, a atenção se volta para o material original e o mundo está acordando para a existência de universo incrível em Technicolor que inspirou alguns dos maiores nomes da cultura de hoje. Como disse o próprio DMC: "O que as pessoas deveriam sacar é que isso não é nada novo. Sempre foi assim, é só que agora o mundo está começando a descobrir como os quadrinhos fazem parte de nosso cotidiano".

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