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Como um homem à beira morte encontrou esperança em 'Breath of the Wild'

A vida nunca foi justa para Gabe Marcelo, mas videogames davam a ele a chance de experimentar um mundo além da sua realidade.

Matéria originalmente publicada no Waypoint.

Em julho retrasado, Gabe Marcelo não sabia se conseguiria participar do PAX Prime. Normalmente isso não seria uma questão, mas os problemas cardíacos antigos do homem de 26 anos tinham piorado, e ele ficaria internado por um tempo. O problema: a PAX podia ser sua última chance de jogar The Legend of Zelda: Breath of the Wild, o novo jogo de sua série favorita, antes de morrer.

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“Como ele quase não saía de casa”, disse a mãe dele, Anita Marcelo, “essas datas eram muito importantes. Elas eram o calendário dele, como aniversários e feriados”.

Ele encontrou forças para participar da PAX. Mesmo com o plano sendo ir ao evento só um dia, Gabe conseguiu surpreender todo mundo. Sua família o ajudou numa cadeira de rodas pelos quatro dias da feira. Infelizmente, a Nintendo não tinha levado Breath of the Wild para o evento, fazendo Gabe pedir a mãe para perguntar a Nintendo se ele podia jogar o jogo antes.

Anita escreveu sua primeira carta para a Nintendo enquanto ainda estava na PAX.

“Liguei para eles e falei com pessoas muito simpáticas, que me deram um endereço para escrever em se tratando de 'doações'”, ela me contou. “Não tive resposta. Então mandei outra carta no mês seguinte. Ainda nada.”

Gabe veio ao mundo com cardiopatia congênita (CC), o deixando com um único ventrículo e uma área perdida no meio do coração. CC é comum, aparecendo em oito de cada mil recém-nascidos. Na maioria das vezes é uma condição tratável, mas a versão de Gabe era complexa.

Gabe (direita) e Jaime (esquerda) jogavam videogames, porque atividades mais cansativas eram demais para Gabe. Todas as fotos são cortesia de Jaime Marcelo.

Com três semanas de vida, ele foi mandado para a cirurgia. Isso desencadeou várias outras operações antes dele completar três anos. Em meio a tudo isso, ele teve um derrame. Não tinha como consertar seu coração, e as complicações das cirurgias tiraram a possibilidade de um transplante da mesa.

As expectativas para sua qualidade de vida eram baixas, e era possível que ele nunca chegasse à adolescência.

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“O coração dele tinha que trabalhar muito mais para comandar seu corpo do que um coração normal”, disse seu irmão mais velho, Jaime.

Pense assim: a maioria das pessoas tem 100% oxigênio no sangue. Gabe tinha 92% até o começo do colegial, depois isso caiu para 88%. Depois 83%. Em 2016, despencou para a casa dos 70%, depois 60%. O ato de sentar já o deixava sem fôlego.

“Ele não tinha oxigênio suficiente para seu corpo ter energia”, disse a mãe, “e quando era criança, ele 'gastava' toda sua energia e passava mal porque seu corpo não aguentava. Ele saía para o quintal e não conseguia voltar porque estava cansado”.

“Os videogames eram tão importantes porque traziam alegria, diversão e beleza.”

Com os anos, várias cirurgias ajudaram, mas Gabe nunca seria um atleta. (Por um tempo, ele conseguiu jogar basebol.) Mas uma coisa que ele conseguia fazer era jogar videogames. Era uma oportunidade para explorar o mundo de manerias que nunca seriam possíveis para ele. Salvar o mundo é legal, mas para Gabe, só poder correr por um campo aberto já era uma fantasia.

“Os videogames eram tão importantes porque traziam alegria, diversão e beleza”, disse a mãe. “Tinha personagens que ele amava, e desafios que a mente inteligente dele precisava. Era uma distração do desconforto físico e da dor.”

“Lembro de me sentar na frente da TV na sala no começo dos anos 90, jogando Super Mario 2, Excitebike e The Legend of Zelda”, disse o irmão dele. “Ele era muito novo na época e não sabia realmente o que estava acontecendo, mas foi aí que tudo começou. […] Lembro de jogar Link's Awakening e ficar puto com meu irmão me enchendo o saco para jogar. Toda chance que ele tinha de entrar naquele mundo, ele ficava hipnotizado. Tenho certeza que ele apagou meus arquivos para poder jogar em algum ponto. Acho que ele não sabia exatamente o que estava fazendo, mas adorava apenas explorar.”

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Videogames se tornaram ainda mais importantes para os irmãos quando Jaime se mudou para o outro lado do país, Nova York, dez anos depois. Para se distraírem da condição de Gabe, eles jogavam online juntos. No verão de 2016, eles passaram a maior parte do tempo jogando Final Fantasy XIV.

Mas a série Zelda se tornou uma constante para Gabe, uma de suas pedras fundamentais. Breath of the Wild, segundo sua mãe, era uma razão pra viver. Se ele conseguisse viver mais um dia, talvez ele pudesse jogar o jogo. E por isso sua mãe se viu escrevendo cartas e mais cartas para a Nintendo, mesmo que ninguém respondesse. Quando Jaime visitou a família em outubro daquele ano, ele ouviu os planos de pedir acesso ao jogo antes do lançamento. Sua primeira ideia? Postar o pedido na internet.

“Eu já tinha testemunhado o poder das massas se juntando para provocar mudança”, ele disse, “tanto em pessoa (protestando) como através de campanhas online, então achei que se conseguisse algum apoio online, talvez eu pudesse colocar o Gabe no radar da Nintendo”.

O resultado foi uma postagem no reddit para os fãs da Nintendo, que logo viralizou. Enquanto o post decolava, os três estavam numa consulta médica de Gabe. Jaime estava na sala de espera, olhando ansiosamente no celular. Ele considerou fazer uma petição ou uma página no Facebook, mas em questão de horas, a equipe de redes sociais da Nintendo ouviu a história de Gabe e quis ajudar.

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(A Nintendo me confirmou toda a história.)

“A cara dele era uma mistura de choque e alegria”, disse Jaime. “Ele tinha essa risada onde erguia as mãos na frente dele como se estivesse fazendo malabares, tentando processar o que tinha acontecido.”

O apoio enorme fez Gabe explodir numa mistura de lágrimas e risadas. Enquanto a postagem era votada no reddit, ele lia os comentários para o irmão. Aquela onda de positividade também foi uma mudança bem-vinda de ritmo; naquele ponto, a condição de Gabe era muito séria. Ele só podia subir alguns degraus de escada uma ou duas vezes por dia, e sua disposição geralmente alegre estava muda.

“Eu conseguia dizer que as coisas estavam indo mal pra ele”, disse Jaime. “Foi maravilhoso ter tantas palavras de apoio e pessoas se identificando com a experiência."

“Ele sempre dizia 'Meh, podia ser pior'”, disse a mãe. “Ele se apegava a isso, mesmo sabendo que estava pior.”

Muito pior. Enquanto 2016 passava, eles descobriram que algumas medicações que ele tomava não estavam mais ajudando. Ele não parava de tossir, e às vezes tossia sangue. Ele começou a ganhar muito peso em fluído, às vezes até 13 quilos numa semana. Gabe tinha orgulho de se cuidar, o que tornava esse ganho de peso emocionalmente devastador.

“Eu tinha muito trabalho em lembrá-lo que ele estava lutando contra algo além de seu controle”, disse a mãe. “Sua vergonha com o peso era de partir o coração. A cintura dele estava sensível e desconfortável, então eu precisava comprar mais shorts e calças jeans de tamanhos maiores. O médico tentou explicar a ele que o peso era uma questão médica, de fluído se acumulando pelas falhas do coração. Ainda assim Gabe tentava comer menos, apesar disso ter acontecido meio que naturalmente, porque ele já não tinha muito apetite de qualquer maneira.”

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“Ele sempre dizia 'Meh, podia ser pior'”, disse a mãe. “Ele se apegava a isso, mesmo sabendo que estava pior.”

Algumas semanas depois da Nintendo entrar em contato, Gabe e a mãe fizeram uma viagem para o quartel-general da empresa nos EUA, em Seattle. Usando uma camiseta com as palavras “Obrigado, Sr. Iwata”, ele teve a chance de viver seu sonho e jogar Breath of the Wild, por pouco mais de 30 minutos. Era a mesma demo mostrada um milhão de vezes, com um pedaço do mundo aberto do jogo. Um grupo da Nintendo se juntou ao redor dele, torcendo enquanto ele pulava, nadava e escalava montanhas. Ele até aprontou algumas, colocando fogo em objetos ao redor.

“Ele era, naquele jogo, o que não era na vida”, a mãe disse. “Eu podia sair para caminhar mas Gabe não podia me acompanhar. Quando saía de casa, eu pensava em como ele não podia se beneficiar do ar fresco e da liberdade de simplesmente andar pelo bairro. Quando vi o jogo Zelda, percebi que aquele era o mundo maravilhoso que ele queria.”

Além de jogar o jogo, Gabe fez um tour pelas instalações, empolgado em ver uma sala de reuniões onde as pessoas bolavam jogos da Nintendo. Depois do almoço, onde todo mundo trocou histórias de videogames, ele visitou a loja de lembranças e comprou presentes. (“Gabe era muito generoso com amigos e a família quando dava presentes”, disse o irmão.) A Nintendo devolveu o favor, dando a ele uma mochila Zelda com, entre outras coisas, um pôster autografado.

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“Eu conseguia sentir na voz dele que ele estava cheio de pura alegria”, disse Jaime. “Algo que era difícil acontecer enquanto sua condição piorava.”

Gabe jogando uma versão de teste de Breath of the Wild na visita a Nintendo.

Se houvesse justiça no mundo, este seria o ponto da história onde o coração de Gabe começaria a melhorar inexplicavelmente. Mas não havia uma cura milagrosa. E enquanto Gabe se preparava para encarar a morte, sua mãe manteve uma expressão corajosa – ou pelo menos tentou.

“Eu sabia que meu filho ia morrer”, ela disse. “Eu estava com muito medo, imaginando como aconteceria. Ele ficaria extremamente doente por anos, morreria de repente ou com muita dor? Eu tinha que parecer alegre para ele. Eu tinha que ser o mais positiva possível para ele. E era cada vez mais difícil. Na última semana, ele disse 'Preciso emprestar sua atitude positiva agora, porque estou realmente sofrendo'.”

Foi na semana em que Gabe ganhou 13 quilos em apenas sete dias, e logo, não conseguia mais respirar sozinho. Enquanto seu corpo entrava em colapso, ele se agarrava a uma esperança: uma chance de ainda estar aqui quando Breath of the Wild fosse lançado, dando a ele uma nova chance de se juntar a Zelda, Link e Ganon para outra aventura. Sua mãe tem certeza que ele não teria chegado tão longe sem isso.

“Na noite antes dele morrer, ele me chamou no quarto”, ela disse. “Ele queria que eu visse o trailer de dois minutos que ele tinha baixado. Algumas lágrimas caíram enquanto ele via as cores, os sons, os exemplos de ação vindo da tela. No final, o trailer dizia 'lançamento em 03/03/2017'. Ele olhou para mim e disse 'Eu vou conseguir!' Preciso pensar em como ele estava feliz, não em como ele não conseguiu. Lembrei para ele naquela noite que ele já tinha jogado Zelda… e mesmo assim eu sabia o que ele queria dizer.”

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Em 14 de janeiro de 2017, algumas semanas depois de seu aniversário de 27 anos, Gabe morreu pacificamente.

“A última vez que falei com ele foi uns dois dias antes dele morrer”, diz o irmão, “e só conversamos casualmente sobre alguns jogos que iam sair. No final, dissemos 'boa noite' e 'te amo, irmão' – como sempre fazíamos. Na hora, eu não tinha ideia que seria a última vez que eu falaria com ele”.

Logo, Breath of the Wild, o jogo pelo qual Gabe estava esperando, seria lançado. Jaime ainda não tinha processado como seria jogar o jogo sem o irmão.

“Alguém mencionou que quando eu jogar Breath of the Wild, não estarei sozinho”, ele disse. “Gabe vai ser meu Navi, me guiando pelo jogo o tempo todo. Gosto muito desse pensamento.”

“Nunca conheci uma pessoa tão forte”, disse a mãe. “Se fosse só pela força de vontade dele, ele estaria aqui até hoje.”

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