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Ilustração: Flora Próspero e Juliana Lucato / VICE Brasil

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Semana da Saúde Mental

Como superar o trauma dessas eleições, segundo o psicanalista Christian Dunker

Para curar as feridas do pleito marcado por rupturas, brigas, mortes, mentiras e má fé, o professor dá a dica: “Tome distância, mas não se desligue.”
Flora Próspero
ilustração por Flora Próspero
JL
ilustração por Juliana Lucato

Professor do Instituto de Psicologia da USP e dono de um popular canal sobre o tema no YouTube, o psicanalista Christian Dunker colocou o eleitorado brasileiro no divã. Seu vídeo “A psicanálise e o discurso de Jair Bolsonaro” recebeu mais de 750 mil visualizações nos últimos dois meses. Sua conclusão de que Bolsonaro “extrai de nos o que temos de pior” motivou muitas críticas e ofensas de seguidores do candidato, mas Dunker não pareceu se abalar. Pelo contrário: usou os comentários desses eleitores como inspiração para dois novos vídeos no canal analisando o discurso de apoiadores do PSL e do PT. Terminadas as eleições, Dunker volta ao tema, desta vez abordando a saúde mental dos eleitores. Em entrevista à VICE, ele faz um diagnóstico dos traumas e as rupturas causadas pelo processo eleitoral e propõe ideias para curá-los.

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VICE: Uma eleição atípica e cheia de conflitos como a que o Brasil viveu poderia ser considerada uma experiência traumática, no sentido psicanalítico do termo?

CHRISTIAN DUNKER: Um trauma atinge diferentes pessoas de diferentes maneiras, portanto nem todos sofrerão efeitos desta natureza. O que torna um evento realmente traumático é a conexão entre o fato e a fantasia de cada um, que interpreta e simboliza ou repudia e rejeita o que se passou. Um trauma envolve dois tipos de efeitos. Há os positivos, como a recorrência de sonhos e pesadelos e a repetição de palavras e imagens que nos causam mais medo. É essa a reação que temos, por exemplo, quando passamos por um assalto ou um acidente de trânsito: as cenas ficam se repetindo, perdemos o sono, nos congelamos na repetição daquele instante que não passa. Mas há também os efeitos negativos do trauma, não no sentido de que seriam piores que os efeitos positivos, mas porque apagam ou neutralizam o ocorrido. Pessoas sob esse efeito vivem o evento traumático “como se nada tivesse acontecido”. A transmissão silenciosa do trauma expõe a pessoa ao seu retorno inadvertido mais à frente. E ele retorna em atos disruptivos de violência, em reações de choro ou de despersonalização, em rupturas inexplicáveis de laços e relações. Este segundo grupo de efeitos do traumático traz a repetição que às vezes demora gerações inteiras para se realizar e ao que parece está sendo empregada pela retórica eleitoral para evocar fantasias dormentes de gerações anteriores, com seus respectivos traumas.

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Como é possível superar esses traumas?

A forma de superar traumas é fácil de enunciar e difícil de praticar. É preciso um esforço coordenado de lembrança e reconstrução da história. É preciso um esforço de subjetivação ou de implicação de cada qual nos acontecimentos e suas consequências. É preciso simbolizar coletivamente o que se viveu coletivamente como traumático. Finalmente, é preciso ações de reparação, de reconhecimento, em vários níveis: pessoal, familiar, comunitário e institucional, o que é mais difícil quando se consideram as violências de Estado.

Que lições o país poderia aprender com nações cujas populações passaram por processos políticos traumáticos?

Há alguns modelos para assimilar, todos eles relativos a culturas diferentes da brasileira, mas com contribuições importantes, pesadas as suas relatividades. Do pós-guerra alemão devemos reconhecer a importância da educação política e do regramento de certas estratégias institucionais de formação crítica. Da experiência sul-africana e sua comissão de Reconciliação e Verdade é preciso extrair a importância do reconhecimento de abusos praticados e das experiência públicas de reparação. Das experiências com as ditaduras sul-americanas deveríamos tirar a importância de punir os verdadeiros mandantes ainda que seja no longo prazo histórico. Das guerras civis na Guatemala e em demais países centroamericanos devemos trazer a importância de reconstituição da história das famílias e dos ritos e partilhas coletivas que são desmembrados e apagados pelos traumas políticos. As experiências locais precisam de alguma generalização para que o trauma particular, daquele grupo de pessoas, seja elevado à condição de universalidade, que toca a todas as pessoas, para desta extrairmos um fragmento singular que sirva a cada um de nós na transmissão desta experiência. Desta maneira transformamos o pior do sofrimento no melhor da partilha social de uma experiência comum. Impedimos que a vergonha se transforme em ressentimento e vingança, amenizando assim a tentação da repetição.

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O psicanalista Christian Dunker. Foto: Divulgação/ Boitempo

"Aquele que xingou movido pelo espírito de massa provavelmente esquecerá o que disse. Mas aquele que foi ofendido seguirá com as palavras ofensivas na sua carne."

Algumas pessoas, particularmente gays e membros de outras minorias, relataram sentir-se "abandonados" por familiares que votaram em Bolsonaro. Como o senhor avaliaria o dano que as eleições causaram as relações familiares?

O dano é muito mais prejudicial do que se imagina. Aquele que xingou movido pelo espírito de massa e pela coragem odiosa que se apossa de nós nestas circunstâncias provavelmente esquecerá do que disse. Se enganará atribuindo seus atos e palavras às circunstâncias, à guerra de todos contra todos, que é a política. Mas aquele que foi ofendido, o vulnerável que depende de alguma tolerância e respeito, seguirá com as palavras ofensivas na sua carne. É como uma situação de prova real, na qual descobrimos, pela agonia e severidade da situação, quem é quem. É nessa hora que surgem os heróis anônimos, que nos estendem a mão de onde menos esperávamos, mas também dos vilões decepcionantes, aqueles que quem esperávamos algo mais além da isenção calculada ou da covarde neutralidade. Esta situação nos leva a desconfiar de nossas identificações verticais, ou seja, a quem atribuímos maior poder de proteção e auxílio, e a valorizar mais nossas identificações horizontais, ou seja, aqueles outros, que, como nós, se veem confrontados com efeitos similares de opressão e segregação.

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É possível reparar os danos a essas relações?

A reparação é possível e desejável, mas em geral ela toma um trabalho que as pessoas não estão muito dispostas a realizar nas condições de vida “normal em pressão e temperatura”. O mais esperado é que sobrevenha uma espécie de pressão para o esquecimento, de perdão por decurso de prazo, de redução do efeito das palavras, o que é péssimo para a vida política e para a elaboração de conflitos. Os efeitos desta ausência do trabalho de reparação podem ser sentidos, inesperadamente, muito tempo depois: o filho que se recusa a cuidar do velho pai doente, a filha que se retira para outro país perdendo contato com sua família de origem, o sobrinho que corta relações diplomaticamente com aquele ramo da família. Tudo isso de forma limpa e silenciosa, desperdiçando assim nosso capital social mais precioso e nossa relações de cuidado mais importantes para o seguimento da jornada. O sofrimento mal tratado individualiza as pessoas, que depois se queixarão de solidão e abandono.

"O sofrimento mal tratado individualiza as pessoas, que depois se queixarão de solidão e abandono."

Alguns eleitores chegaram a cometer atos de violência física contra opositores nas últimas semanas. Depois de eleições marcadas pela forte rejeição entre candidatos e eleitores dos dois lados, é possível restabelecer a tolerância?

A tolerância vai ser restabelecida. Se seguimos os padrões americanos isso vai acontecer mais rápido do que pensamos. A fórmula mágica do “voltemos a trabalhar” será aplicada e as coisas ditas e feitas cairão sob a penumbra da tolerância. No entanto penso que, para nosso momento de antagonismo social, tolerância é pouco. Precisamos de bem mais do que isso, ou seja, manter uma distância respeitosa e um silêncio obsequioso sobre o outro, suas opiniões e sua forma de vida. Nenhuma inclusão escolar será bem sucedida se se limitar à tolerância, nenhuma solidariedade produtiva será realizada à base de cada qual em seu quadrado, fazendo sua parte para nosso “belo quadro social”. Se queremos que a diversidade de raça, de gênero, de classe, de formação cultural, seja realmente produtiva, precisamos de estratégias ativas de mediação. Não basta colocar todo mundo num mesmo caldeirão, mexer bem, colocar fogo em baixo e dizer: "Abracadabra! Faça-se uma nação!" Uma verdadeira diversidade de desejos vai além da distribuição judicialista das nossas propriedades de gozo, identitárias, ideológicas e subjetivas.

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"Para o nosso momento de antagonismo social, tolerância é pouco. Precisamos de bem mais do que isso."

O ódio e a insegurança causados pela política já chegaram aos divãs dos psicanalistas?

Chegaram como nunca, balançando a atitude dos psicanalistas tanto com relação ao conflito subjetivo de seus pacientes quanto o sentido político de sua inserção no espaço público. É possível sim tratá-los porque os conflitos políticos apenas intensificam as fantasias e os sintomas de nossos pacientes, porque inflacionam sua experiência social e intersubjetiva de sofrimento. Mais do que nunca comprova-se a tese freudiana de que os delírios contém um fragmento de verdade, inclusive os delírios políticos. Mais do que nunca se mostra como a associação livre e a força da palavra têm uma função terapêutica em situação de censura e opressão. Mais do que nunca precisamos desfazer identificações imaginárias, em torno do grande mal, do grande inimigo, da posição que nunca consegue se perguntar: “qual a sua contribuição para a miséria da qual você se queixa?”. Mais do que nunca precisamos pensar sobre nossa paixão pela violência, pela nossa tentação ao sadismo ou ao masoquismo, e ao uso que fazemos do outro para recalcar nosso próprio desejo. Mas do que nunca é importante perceber que nunca somos tão maus senão quando nos apegamos aos ideais de bondade ou de purificação.

Já se disse que estamos na era do pós-verdade, em que somos expostos cada vez mais a informações falsas e temos dificuldades de saber o que é real. Que impacto isso tem sobre a saúde mental dos brasileiros?

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É grande o impacto da experiência digital em nossa subjetividade. Isso se dá tanto porque estamos diante de uma nova forma de linguagem, com sua velocidade própria, com seus efeitos de negação novos e com suas alienações ainda insuspeitas, quanto porque estamos em uma espécie de reconfiguração de modos de relação e consequentemente de nosso narcisismo, com as respectivas patologias de redução do tamanho do mundo, aumento do volume do eu e tensionamento da gramática da diferença e indiferença. O terceiro impacto subjetivo deste estado de coisas diz respeito à estrutura do saber e a economia da sua autoridade. Formas de opinionismo, de impulsão à pseudo-participação e a crença de que a verdade é realmente apenas um fator de convenção tornam-nos mais frágeis e expostos à falta de critério e de crítica, o que retorna sobre nós com uma incrível voracidade de auto-exigência, culpabilização e auto-observação.

Para uma parcela considerável da população brasileira, essas eleições foram um processo de decepção e ruptura. O sentimento de pertencimento ao país pode ser afetado por isso?

Isso iria acontecer em algum momento. Aprendemos com a psicanálise que a história dos desejos desejados não se apaga nem se evapora. As contas com nosso passado escravista, com nossa razão segregatória em termos de classe, com nosso desprezo pela distribuição dos bens simbólicos como a cultura e a sociabilidade, tudo isso deixa uma dívida. Uma dívida simbólica que ou é paga e elaborada ou retornará em formações de violência disruptiva. O sentimento social de injustiça, nosso pacto de distribuição de poderes, nossa alienação histórica e nossa tendência a colocar a causa de nossos problemas no outro parecem ter chegado ao fim. Como ao fim chegou nossa confiança e nosso ideal de que é possível uma vida em forma de condomínio, onde alguns se salvam atrás dos muros e outros se matam, também atrás dos muros. Essa estratégia chegou ao fim, é preciso entender a radicalização e não simplesmente rezar para que ela passe.

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"É preciso entender a radicalização e não simplesmente rezar para que ela passe."

Que recomendações gerais o senhor daria para quem quer manter a saúde mental no Brasil de Bolsonaro?

Antes de tudo, tome distância mas não se desligue. Cuide de si, mas não abandone a conversa. Encontre seu lugar, entre os seus, mas também com alguma diferença. Não imagine que a solução para o ódio seja um estado de paz e beatitude. Um pouco de raiva é importante para nos separar. Muita raiva, ao contrário, cansa, mata e não produz nada. Não se refugie na culpa, seja a própria, seja a do outro. Experiências coletivas nos fazem dividir o pior e melhor, não há santos nesta jornada. É importante autocrítica, assim como é importante o trabalho de luto. Luto de pessoas “perdidas”, de ideais perdidos, de sonhos perdidos. Faça o luto em toda a sua extensão. Por outro lado é preciso levar a sério o que se deu em termos de novas formas de organização e pertencimento que surgiram no interior do caos. Nossa imaginação política precisa ser reinventada, a nossa experiência política precisa ser trazida de volta para o cotidiano e para a vida ordinária das pessoas, porque com isso podemos praticar e pensar a pequena transformação e a grande ou pequena resistência. A palavra, a palavra partilhada com o outro é fundamental nessa hora. Não deixe que ela se degrade como estamos vendo nestas eleições.

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