Terapia visão política
Ilustração: Flora Próspero/VICE

FYI.

This story is over 5 years old.

Semana da Saúde Mental

Vale procurar um terapeuta com a mesma visão política que a sua?

Uma investigação sobre os limites da discussão política no divã.

Esses dias estava em uma conversa com uma colega de trabalho e discutíamos se era possível um especialista em saúde mental ter uma posição política diferente da de seu paciente. Ela contou que já passou por isso e sabe muito bem como é complicado.

Minha colega toma remédio controlado para síndrome do pânico e ansiedade e precisa ir ao psiquiatra de tempos em tempos, afinal, sem receita não é possível comprar esses medicamentos. Por quase um ano ela foi atendida pelo mesmo psiquiatra. “Como ele sabia que eu era jornalista, começou a falar de política, PT, corrupção. Às vezes eu entrava no consultório e ele já começava a falar: 'Porque o Brasil desse jeito é um absurdo, essa Dilma, blablabla'. Eu fiquei muito incomodada, não só por ele ser reaça, mas por estar usando um tempo que era meu, pelo qual eu pagava pra desabafar, sei lá.”

Publicidade

"Eu fiquei muito incomodada, não só por ele ser reaça, mas por estar usando um tempo que era meu"

Terapia por Skype dá certo?

Claro que ela pulou fora. Na procura por novos médicos, preferiu ser atendida por uma mulher. Mas não passou nem duas ou três consultas para a profissional soltar críticas ao PT e falar da corrupção bem no auge do impeachment. Nessa de ficar mudando de médico por conta das inconvenientes manifestações políticas, agora ela até conta que é jornalista, mas de cultura. Essa questão, no entanto, tem uma problemática bem significativa. Afinal, se você omite algo pra pessoa que tem que te entender melhor do que você mesma e fazer algum trabalho efetivo ali, algo não está certo.

A psicologia anda lado a lado com a política, e não tem como evitar. A prática profissional do psicólogo tem sua origem nas contradições sociais durante o período da revolução industrial, na década de 30. Nessa época, a ciência foi consolidada pela análise de aparelhos autoritários repressivos e o questionamento social a partir do movimento revolucionário.

E foi também nesse período que a ciência dos estudos mentais começou a se dividir em ramificações a partir de filósofos e técnicas diferentes. E, antes de tudo, é preciso entender o seu problema, a sua necessidade e a diferença entre psiquiatria, psicanálise e a psicologia.

"É fundamental que o analista preserve o paciente de suas paixões ou posicionamentos políticos"

Segundo Laerte de Paula, psicanalista do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP), enquanto a psiquiatria trabalha em uma abordagem mais objetiva e emergencial para o tratamento de um transtorno, a psicanálise vai considerar os sintomas do paciente como ponto de partida para a autodescoberta das determinações inconscientes. “Já a psicologia está dirigida para um trabalho de restabelecimento e funcionamento junto com a realidade levando em conta as exigências do exterior”, completa.

Publicidade

Para o psicanalista, é fundamental que o analista preserve o paciente de suas paixões ou posicionamentos políticos. “Ele tem o compromisso, na posição ética, de deixar que surja a singularidade do paciente, para que possa preservá-lo de eventualmente tomar o analista como ideal a ser seguido, e como uma referência de adaptação.”

A psicóloga analista de comportamento Ana Arantes também tem o mesmo posicionamento para a psicologia. Porém, segundo ela, a subjetividade do terapeuta influencia na análise em questão. "A psicologia enquanto ciência não tem um ponto de vista. Não porque ela quer ser neutra, pelo contrário, porque cada cientista ou cada grupo vai construir a ciência do seu ponto de vista ideológico, político e assim por diante.”

A profissional, entretanto, reforça que na psicologia é importante estar preso às técnicas e não aos valores subjetivos e morais. “Neste momento, o psicólogo tem que estar muito seguro e não deixar que isso interfira naquilo que ele acha que é o melhor pro paciente. Afinal, o que é o melhor para ele não é o que é o melhor para o psicólogo, mas sim o que o julgamento técnico diz que deve ser.”

O psicanalista Laerte também permanece na mesma linha de raciocínio em relação a isso. “Por mais que fora do consultório ele possa ter sua escolha de candidato ou preferência política, acho que essa é uma questão que convém ao tratamento e que isso pode ficar de fora”, complementa.

Publicidade

Essas recomendações, segundo eles, são prioridade no código de ética. Mas a estudante Nicole Viana, 21, vive o contrário desse mundo essencial. Ela me contou que faz terapia com a mesma pessoa há três anos. Isso já é um problema, segundo ela, pois a relação entre as duas ficou muito amigável. “Nossas sessões acabam sendo muito mais um bate-papo do que análise em si, e nesse momento, política é o assunto da vez.”

"Nunca brigamos nem nada, mas eu meio que perdi o encanto, porque ela está ali pra me analisar e me fazer refletir sobre a minha vida"

O problema desse assunto é que sua terapeuta votou no Bolsonaro, e ela não votaria em hipótese alguma. “Nós expomos nossas opiniões e acabamos discutindo. Nunca brigamos nem nada, mas eu meio que perdi o encanto, porque ela está ali pra me analisar e me fazer refletir sobre a minha vida”, completa.

Para ela, a terapia perdeu todo o sentido. “Não quero pessoas que apoiam ele perto de mim, muito menos alguém que deveria me ajudar a me auto analisar”, diz. Ela também fala sobre como não consegue mais levar em consideração as coisas que sua terapeuta aborda, já que ela já sabe que seus ideais são totalmente diferentes dos dela.

Em relação a isso, a psicóloga Ana Arantes fala que é responsabilidade do profissional reconhecer seu erro e encaminhar o paciente a alguém que atenda suas necessidades. “Quando os valores sociais do cliente são absolutamente contrários e irreconciliáveis sobre seus próprios valores, isso estabelece um limite no próprio atendimento, então, nesse caso, o procedimento ético a se tomar é que você coloque isso pro paciente e encaminhe para outro profissional que tenha mais competência pra fazer o que é melhor para ele.”

Publicidade

Riscos à liberdade de expressão

Diante do momento que estamos vivendo, é inevitável falar sobre política. E mais do que o incômodo existente ao falar sobre isso para um terapeuta, já existe, entre os profissionais, a preocupação em relação à ameaça da liberdade de expressão na sociedade. “O que a gente tem escutado muito na clínica e nas discussões é sobre essa preocupação com um eventual cerceamento com essa possibilidade de sustentar os conflitos”, cita Laerte.

Para ele, a não existência de uma democracia pode acabar com o exercício da profissão, que funciona como instrumento político. “Eu acho que todo trabalho analítico produz um tanto de desalienação das paixões de grupo e detém um certo trabalho de singularização, o que não quer dizer ser indiferente ao próximo e poder conceber o outro como sujeito singular que não precisa ser idêntico à nós.”

Recentemente, os Conselhos Regionais de Psicologia do Paraná e São Paulo emitiram uma nota pública em defesa da democracia e dos Direitos Humanos. Na nota, eles colocam a discussão “diante do processo para as eleições presidenciais de 2018”, convidando os membros da sociedade de psicologia “para a reflexão sobre o compromisso ético da profissão, reafirmando a valorização dos princípios democráticos, a liberdade, a promoção de igualdade e respeito a todas(os) as(os) cidadãs e cidadãos.”

Para Ana Arantes, a manutenção para os direitos humanos e a liberdade de expressão é o ponto da prática da psicologia. “Nenhum psicólogo deve trabalhar no sentido de negar direitos humanos a qualquer um que seja.”

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube.