Como o Nirvana uniu as tribos do forró eletrônico e do pop rock

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Noisey

Como o Nirvana uniu as tribos do forró eletrônico e do pop rock

Lá em 2011, a versão de “Come You as Are” da banda cearense Forró Estourado deixou os roquistas daqui eriçados, mas a real é que versões de hits internacionais são parte importante da indústria musical brasileira.
PN
ilustração por Pedro Nekoi

Parece que foi ontem, mas já faz cinco anos. Foi em 2011 que a roqueirada brasileira se pegou consternada com um vídeo que na época circulava pela internet. Nele, uma banda de forró mandava uma versão festeira de "Come as You Are", hino do Nirvana, com direito a dançarinas, backing vocals e uma naipe de metais nervoso. Sacrilégio com o Santo Cobain? Porra nenhuma. Provavelmente, ele até curtiria, como fez seu ex-colega Krist Novoselic.

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Porém, aquele vídeo da banda Forró Estourado era mais do que um viral maravilhoso. Ele era a ponta de um gigantesco iceberg, que mostrou para o resto do país — especialmente para os xiitas do sudeste — como as bandas de forró eletrônico haviam se tornado máquinas de versões de hits internacionais. Mesmo assim, era difícil entender como um estilo fundado na poesia do campo e nos sofrimentos rurais havia se tornado binóculos para as paradas de sucesso da gringa.

Essa história começa bem antes do surgimento do Nirvana e, ironicamente, tem como ponto de partida os primeiros roqueiros nacionais. O Brasil sempre teve uma quedinha por converter sons gringos — esse texto do Jornal do Commercio, publicado em 2000, lembra que uma das primeira versões da música nacional surgiu em 1869, quando a canção de abertura do espetáculo musical francês Les Pompiers de Nanterre virou uma fanfarra de carnaval. A prática começou a se intensificar a partir dos anos 1950, quando o infante rock n'roll fez o primeiro movimento global de um estilo musical como produto de massa. Os nossos primeiros ídolos roqueiros eram todos trabalhados nas versões. Dois dos maiores hits de Celly Campello, a matriarca do rock brasileiro, são versões de até então canções obscuras gringas. "Estúpido Cúpido" é "Stupid Cupid", de Neil Sedaka, e "Banho de Lua" é na verdade "Tintarella di Luna", de Franco Migliacci e Bruno de Filippi. Nessa época, o rei das versões era o paulista Fred Jorge.

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Uma década antes, o forró havia surgido e caído no gosto popular, baseado em sons autorais e na força do regionalismo e do folclore nordestino. A pedra angular do estilo, "Asa Branca", foi lançada em 1947 por Gonzagão. Os rumos do forró e das versões gringas se cruzariam pela primeira vez nos anos 1960, mas longe da maneira gloriosa da união atual.

De olho no sucesso que as versões haviam feito com a primeira geração roqueira, a galera da Jovem Guarda abusou do recurso. Vários hits de Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, entre outros, eram sons gringos. Segundo esse texto, a Ternurinha gravou 80 músicas entre 1963 e 1968, das quais 50 eram versões, incluindo "Pare o Casamento" (lançada pelos Charmettes como "Stop the Wedding"). Isso, claro, turbinou o Iê-iê-iê, o que acabou tirando o oxigênio de quase todos os outros estilos, incluindo o forró.

Com a alta da Jovem Guarda e também a ascensão da Bossa Nova, o estilo nordestino perdeu espaço no Sudeste, o mercado que mais importava na época. Gonzagão chegou para Dominguinhos e disse: "Olhe, Nenê, você quer ficar aqui tentando, tudo bem. Eu vou embora porque aqui não dá mais". Quem relembra a passagem é Expedito Leandro Silva, antropólogo e autor de Forró no Asfalto Mercado e Identidade Sociocultural . Gonzagão, então, retorna para o nordeste, onde assiste de longe o seu gênero musical quase ser esquecido. Só voltou às manchetes no final dos anos 60, quando Carlos Imperial espalhou um boato de que os Beatles teriam feito uma versão de "Asa Branca". Pena que ela nunca ocorreu.

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Impulsionado pelo caô de Imperial e beneficiado pelo fim da Jovem Guarda, Gonzagão e o forró voltaram mais fortes. E dessa vez, uma nova geração de artistas, incluindo Alceu Valença, Zé e Elba Ramalho e Geraldo Azevedo, também havia sido influenciada. A infusão de sangue jovem a partir da metade dos anos 1970 permitiu que o estilo passasse a agregar novos instrumentos, como guitarra, saxofone e teclado, o que seria fundamental para tornar o forró uma central de versões de sons gringos.

SOLTA O SOM, GARÇOM

O ano era 2011 e a banda Forró Estourado havia chegado cedo demais para um dos seus dois shows que faria naquela noite. Durante a passagem de som, o baixista não parava de tocar o riff que Kurt Cobain havia kibado do Killing Joke vinte anos antes. Enquanto isso, o vocalista Romim Mata estava no bar do clube ouvindo de longe a sonzeira. "Caramba, isso dá forró! E fiquei pensando como tornaria aquilo cotidiano. Daí já vi um garçom na minha frente…", conta o vocalista.

O episódio revela um detalhe fundamental sobre o novo estado do forró. Com a entrada de instrumentos diferentes de zabumba, sanfona e triângulo, gente com outras influências e referências musicais passaram a orbitar o universo forrozeiro. O repertório dos músicos ia além daquilo que era cantado no sertão. Faziam parte do cardápio o pop e o rock internacionais.

Essas transformações começaram a tomar forma no Ceará com bandas, como o Mastruz com Leite, que deram origem na década de 1990 ao que ficou conhecido como Forró Eletrônico. Até que chegamos no ano 2000, o ano chave para a internacionalização do forró. Foi quando o Calcinha Preta lançou o disco "Volume 6", que trazia "Louca por Ti", versão de "Dust in the Wind", classicaço brega do Kansas. Foi a primeira vez que o Calcinha, hoje uma potência das versões, abrasileirou um hit gringo. O sucesso foi imediato e tornou inevitável a prática.

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"Depois que acertamos uma, nossos empresários buscaram por outras versões que continuassem agradando aos nossos fãs e admiradores", conta o vocalista Bell Oliver. A tacada influenciou bandas contemporâneas, como o Noda de Caju, e a próxima geração de grupos que ainda estava se formando. Xand, vocal do Aviões do Forró, conta que a primeira versão que escutou foi a do Calcinha — ainda demoraria mais dois anos até que o Aviões fosse fundado.

O Brasil também começava a mudar, a ficar mais conectado e urbano, e não apenas os grandes centros passavam a ter contato com o que é produzido no pop mundial. "O forró passou a assumir uma linguagem urbana, dentro de um ritmo regional, que os jovens e a sociedade consomem", diz Expedito Leandro Silva. Além de representar a identidade do novo jovem brasileiro, as versões de forró são uma vitória da melodia como parte mais importante dentro de uma canção.

"Para mim, a melodia é 80% de uma música", diz Xand ao explicar o que determina uma canção ganhar uma versão. Quase todos do meio concordam com o vocalista. As versões, segundo as bandas, também são uma forma de colocar uma história que faça sentido para quem não fala outros idiomas, mesmo que essas histórias não tenham absolutamente nada a ver com o que é cantado na versão original. Atenção para a passagem maravilhosa: "Eu chegava em casa, e a minha mãe tava sentada, tomando uma cervejinha de olhos fechados e escutando aqueles CDs 'Love Songs'. Eu pensei que eu tinha que transformar aquelas melodias em algo que ela entendesse", diz Mata.

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Quase sempre, a forrozada gringa canta sobre alguma sofrência pesada. Para doer os cornos mesmo. Porém, o sucesso das versões cobra o seu preço. E a galera do Aviões dá a letra. Xand conta que o Ecad passou a olhar mais de perto e cobrar pelos direitos autorais, o que não acontecia no começo dessa onda. "Se na época do Nirvana os caras tivessem vindo atrás, eu teria que parar minha carreira. Deve ser muito dinheiro", diz o ex-vocalista do Forró Estourado. Romim Mata saiu em 2014 e (infelizmente) não tocou mais "Liga o Som".

A outra pedra no sapato é a preguiça. Segundo Xand, o fato de uma versão já oferecer melodia pronta pode fazer com que a banda se acomode, deixando o trabalho autoral de lado. Ele diz que agora o Aviões está maneirando.

E antes de acabar: o que aconteceu depois que o Romim Mata ouviu o seu baixista mandando "Come as You Are"? No ônibus da banda, após o primeiro show da noite e a caminho do segundo, o vocalista escreveu os versos, "Som/Liga o Som/E o garçom/Traz o whiskey que é bom para mim…". No pico, pediu para a banda repetir a música do Nirvana. E já naquela noite, eles tocaram "Liga o Som". Nascia ali um clássico, que entrou para a história do forró eletrônico. E botou um pouco rapadura e cachaça em Kurt Cobain.

BÔNUS: PLAYLIST

Claro, a gente não poderia terminar esse texto sem uma playlist básica com as versões mais legais da forrozeira nacional

1) Forró Estourado - "Liga o Som" / Nirvana - "Come as You Are"

Sai prá lá depressão! Aqui, "Come as You Are" do Nirvana vira "Liga o Som" na mão da cearense Forró Estourado, e faz uma crônica direta sobre a vida de um rei da balada. O clássico riff de guitarra da música (que, aliás, Kurt Cobain teria kibado do Killing Joke), virou uma metaleira nervosa! Não tem como você achar ruim. Se até o Krist Novoselic aprovou, é melhor ficar bem quietinho.

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2) Forró Zanzibar - "Eu Sou Mais Eu" / Daft Punk - "Get Lucky"

Se você achava que o Daft Punk não poderia ficar mais festeiro, errou rude. O Forró Zanzibar, de Paulínia (SP), eleva todos os níveis de animação já concebidos pela dupla Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter. E os brasileiros nem precisaram de capacetes futuristas para fazer graça. Bastou uma sonzeira sobre autoconfiança e amor próprio. Se liga e desaparece!

3) Sabor de Mulher - "Vem Pra Mim" / A-Ha - "Take on Me"

Aquele sintetizador oitentista do A-Ha já tinha um pé na farofeira completa, mas faltava o andamento gostoso do forró. Ficou fácil para o Sabor de Mulher. E o melhor de tudo é assistir esse vídeo com um casal atingindo o nirvana dos passos forrozeiros. É uma aula que deixa qualquer cintura dura pensando "agora fudeu a coluna".

4) Calcinha Preta - "Tem Mais Alguém" / Wham! - "Careless Whisper"

A conexão entre o balanço sensual do Calcinha Preta e o saxofone sacana do George Michael vai além do fato da banda sergipana ter feito uma versão da clássica "Careless Whisper". A letra brasileira parece ser uma resposta à versão gringa. Veja só: enquanto George Michael canta sobre estar traindo o parceiro sem ele saber, o Calcinha admite que o romance deu bosta. Ao descobrir que está sendo traído, canta: "Eu não vou mais amar alguém que me faça versos e promessas".

5) Calcinha Preta - "Não Vale a Pena" / Cranberries - "Linger"

O Calcinha Preta consegue deixar ainda mais dramáticas músicas que originalmente já falam de amores rompidos. Nessa versão do sucesso dos Cranberries, eles descrevem uma das maiores dores do corno: testemunhar o grande amor no carro de outro, entrando no motel. Diz a letra: "Só eu sei o que passei/Você com outra/Dentro do carro/Entrando no motel". Para, bicho.

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6) Forró Brucelose - "Te Quero Mais" / Guns n' Roses - "Sweet Child O' Mine"

Se o Slash gostaria mesmo de causar impacto, ele não deveria ter voltado ao Guns n' Roses. Esse caminho era o mais fácil. Bom mesmo teria sido se ele entrasse para o Forró Brucelose para tocar "Te Quero Mais". O romantismo é o mesmo. O riff de guitarra também. Mas o molejo é para deixar o Axl Rose passando vergonha com aquele passinho da cobra.

7) Mara Pavanelly - "Eu Largo Tudo" / Alicia Keys & Jay Z - "Empire State of Mind"

Sai pra lá Nova York! A capital no mundo é Mirandiba, Pernambuco. Pelo menos é o que acontece nessa versão da Mara Pavanelly para "Empire State of Mind". Foi na cidadezinha pernambucana que a vocalista nasceu! E aqui ela substitui a saga do guerreiro novaiorquino pela epopeia de largar tudo para trás por um amor suado de forró. A metaleira dá a letra e deixa até a banda Vitória Régia, que acompanhava Tim Maia, morrendo de inveja.

8) Mulheres Perdidas - "Porque te Amo" / U2 - "Pride (In the Name of Love)"

Faz um favor, Bono. Se você quer salvar o mundo, trate de tocar "Pride" no esquema do Mulheres Perdidas. A banda sergipana tem vários clássicos do rock, especialmente os do U2, em versões forrozeiras. E isso começou em 2002. Detalhe: o Mulheres dispensa o uso de metais e aposta em guitarras ultra agudas, como o sertanejo 90 ensinou.

9) Lagosta Bronzeada - "Telefona-me" / Madonna - "Like a Prayer"

Dona de um dos nomes mais legais da cena forrozeira, o Lagosta Bronzeada deixa um pouco mais ensolarada a profana "Like a Prayer", da Madonna. O suingue deixa o clássico ainda mais gostoso.

10) Aviões do Forró - "Aqui se Faz, Aqui se Pagará" / Adele - "Set Fire to the Rain"

Tchau, pianinho. Olá, teclado raio lazer! O Aviões deixa a dor e superação de Adele numa gostosa e dançante vingança. Eles dão a letra: Aqui se faz, aqui se paga. Fica esperto!