As casas infernais das igrejas evangélicas dos EUA querem a sua alma
Um homem vestido como o Diabo ensaia para a Hell House Rage on Stage, apresentada pela Destiny Church da Vision Fellowship em outubro de 2003. Foto por Brian Brainerd/Denver Post, via Getty Images.

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As casas infernais das igrejas evangélicas dos EUA querem a sua alma

Encenações teatrais nas chamadas "hell houses" doutrinam fiéis sobre o bem e do mal.

Matéria publicada originalmente na VICE US.

Simpatizantes furiosos de Trump estavam à nossa esquerda, e manifestantes enfurecidos do Black Lives Matter à nossa direita. Um demônio sarcástico passava de um lado para o outro, exclamando orgulhosamente "Bem-vindos ao meu mundo, onde qualquer pessoa diferente de você é uma ameaça, onde o mal cresce e o ódio é profundo! Essa é uma das minhas táticas mais antigas e de maior sucesso!"

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Sorrindo por trás de uma macabra maquiagem, o demônio sussurra nos ouvidos de cada manifestante, plantando gírias racistas e criando mais divisão. O combate verbal acaba com o som de uma pistola de um simpatizante de Trump disparada contra um ativista do BLM, que cai no chão, morto.

"Vocês não podem escapar do meu ódio!", rosna o demônio. "Agora saiam daqui!"

Depois da cena do tiroteio da Hell House 27: No Escape da Igreja Trindade em Dalas, Texas, me lembrei de quão tóxica uma casa infernal evangélica pode ser. A mensagem aqui – e de incontáveis outras casas infernais que acontecem no Halloween norte-americano – é que todo o mal afetando a sociedade hoje (vício, violência doméstica, tráfico sexual, tiroteios em massa) é prova de que há demônios à nossa volta tentando nos seduzir para pecar, morrer e sermos atormentados eternamente no inferno.

A cena do protesto em particular parecia dizer que as divisões sociais no clima político atual dos EUA não são causadas por preconceito sistemático, injustiça econômica e encarceramento em massa – são resultado de capetas arranjando confusão dos dois lados.

Casas infernais são uma das muitas produções teatrais que os evangélicos usam para reforçar essas ideias. Elas combinam teatro interativo e táticas de susto de casas assombradas, com o objetivo de imprimir no cérebro de cada visitante o fato de que as forças do bem e do mal estão em guerra pela sua alma.

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"Assustar as pessoas para serem salvas é parte da tradição cristã", segundo R. Marie Griffith, diretora do Centro de Religião e Política John C. Danforth. "Dante escreveu sobre isso n' O Inferno. E os puritanos tinham sua maneira própria de assustar os cristãos com a vida após a morte. Mas o meio imersivo de uma casa infernal é um jeito novo de assustar as pessoas para serem virtuosas."

O conceito de casas infernais foi popularizado por Jerry Falwell nos anos 70, mas só pegou mesmo nos anos 90 e 2000, quando igrejas evangélicas por todo os EUA começaram a realizá-las anualmente. As abordagens delas para coisas como aborto e casamento gay as tornaram uma fonte confiável de polêmica.

A casa infernal da Igreja Trindade se tornou a mais notória quando, em 1999, eles recriaram o tiroteio de Columbine seis meses depois do acontecido, retratando os assassinos como agentes de Satanás tentando matar todos os alunos cristãos. Isso fez a igreja ser o tema de um documentário de 2002, Hell House – que recentemente passou num episódio de Full Frontal with Samantha Bee.

Da perspectiva de um cristão que acredita que o mundo é governado por uma guerra sobrenatural, essas casas infernais são um tipo de serviço público, tipo as filmagens de acidentes de trânsito usadas para assustar adolescentes nas aulas de direção.

"Algo está aqui tentando destruir nossos filhos", explicou o Pastor John Michael Barajas, diretor da casa infernal da Trindade deste ano. "Queremos iluminar o que o inimigo está tentando fazer com as nossas crianças. Acreditando em Deus ou não, você pode ver das taxas de suicídio, as taxas de assassinatos. Não dá para negar que tem algo atrás dos nossos filhos."

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Nas primeiras duas décadas da minha vida, estive imerso na visão de mundo do cristianismo fundamentalista, e participei de várias casas infernais no norte rural de Iowa onde cresci. Durante aquele tempo, o medo de demônios se infiltrarem nos meus pensamentos, tentando me atrair para uma eternidade de agonia no inferno, governava meu comportamento. Então, quando era hora de impor essa visão de mundo para outras pessoas nas apresentações da casa infernal, eu realmente me empenhava.

A urgência de alertar sobre os demônios ao nosso redor, enquanto tenta comentar sobre questões polêmicas, geralmente leva a retratos estreitos de um mundo bem mais complexo que isso. Segundo Griffith, também é nas visões simplistas das casas infernais que você encontra um microcosmo da agenda política evangélica.

"Com os evangélicos isso volta até um século atrás", disse Griffith, "e enquanto cada momento histórico teve suas questões quentes, tem uma consistência na resposta deles para todos os problemas do mundo: mais Jesus".

Fui para a casa infernal da Trindade com um grupo de amigos ex-evangélicos da minha igreja e de outras. Eles deixaram esse mundo para trás por várias razões – que poderiam todas ser explicadas por demônios sussurrando no seu ouvido, se você é inclinado a acreditar nesse tipo de coisa.

Ryan Connell já foi um membro importante da Igreja Trindade e atuou em muitas casas infernais, mas antes dessa visita, ele não colocava os pés na propriedade há 13 anos. "Essa é minha primeira vez voltando ao Texas como não-cristão", ele me disse. "Eu queria fazer isso como uma jornada pessoal."

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Hoje, Connell cuida da página de ex-fundamentalistas do Facebook e escreve sobre os perigos do abuso religioso.

Uma garota interpreta uma lésbica de 17 anos atormentada por demônios na Casa Infernal do Centro da Vida Cristã Abundante em outubro de 2000. Foto por John Leyba/Denver Post via Getty Images.

No documentário Hell House, você vê o jovem Connell atuando como um padre da Igreja de Satã, preparando o sacrifício de uma garota em nome de Belzebu. Ele ainda lembra suas falas na peça: "Eu enganei esta garota, primeiro fazendo ela se envolver com Harry Potter, Magic: The Gathering e Dungeons & Dragons!", ele recita para mim numa voz sinistra e arrogante, temperada com uma risada maníaca. "Agora ela está no meu sabá e quero mais poder, então vou sacrificá-la para o demônio!"

Naqueles dias, Connell acreditava que o mundo estava para acabar: todos os pecadores estavam condenados ao tormento eterno no inferno, e ele poderia ser um deles se continuasse pensando tanto em sexo. Connell me disse que uma vez cometeu o erro de confessar para um pastor da Trindade que estava sofrendo com o impulso de se masturbar. O pastor respondeu, com nojo, "Não acredito que deixei meus filhos ficarem perto de você".

Apesar de ele e eu acharmos terapêutico estudar nossa cultura nativa da distância segura dos livros, documentários e redes sociais, memórias difíceis como essa podem tornar uma atividade imersiva como visitar uma casa infernal um gatilho. "Eu não consigo mais assistir um culto sem ter um ataque de pânico hardcore", Connell me disse entrando na propriedade da Trindade.

Membros da Colheita de Almas se reúnem para orar em frente à Casa Assombrada HeavenNHell em outubro de 2000. Foto por Al Schaben/Los Angeles Times via Getty Images.

O campus da Trindade em Cedar Hill, Dalas, atende mais de 10 mil membros, então o lugar é gigantesco. A área é composta de uma rede de construções, um campo de futebol e a maior torre de energia que já vi. A propriedade da megaigreja é tão vasta que levamos 10 minutos para chegar do estacionamento à casa infernal, que fica dentro de túneis serpenteando entre várias cabanas e prédios.

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Quando entramos na primeira das muitas salas escuras – essa exibindo uma série surpreendentemente bem produzida de curtas sobre violência doméstica e tráfico sexual – memórias da minha juventude desperdiçada aterrorizado com as forças do mal inundam meus pensamentos e meu corpo.

Para os visitantes das casas infernais, esses pesadelos são pensados para ficar marcados na sua memória. Bases da cultura pop estão espalhadas por cada vinheta, para que você faça conexões de memória entre o medo de demônios e, digamos, uma certa música.

Connell me disse que como evangélico, ele não tinha permissão para ver os filmes e ouvir as músicas a que faziam referência na casa infernal, e que a igreja tinha uma pessoa designada especificamente para achar as referências de cultura pop.

"Antigamente a gente tinha uma cena de rave nos anos 90", disse Barajas. "Mas isso não ressoa tanto com os jovens hoje como uma garota colocando uma foto provocante no Tinder."

Quando os vídeos acabam, um par de demônios raivosos sai de trás de uma cortina preta, gritando para nós como carcereiros de uma prisão: "andem logo!" Depois de descer um corredor escuro, somos levados para uma sala de estar, onde uma garota chamada Jessica reclama de ter sido largada pelo namorado. Ela espera achar um novo romance baixando o Tinder.

As coisas rapidamente se tornam violentas quando o encontro dela chega, e Jessica se vê prisioneira de um cartel de tráfico sexual. Um demônio, que estava espreitando no fundo o tempo todo, sutilmente orquestra o sequestro, rindo sinistramente e dizendo "Tudo que a Jessica queria era uma noite divertida com um cara legal! Agora ela vai se divertir com muitos caras por um longo tempo!"

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Em seguida encontramos uma cena com um motorista bêbado, depois uma venda de drogas violenta e a sequência do Black Lives Matter. Depois entramos em um dos cenários mais potentes de todas as casas infernais: a cena do aborto.

Nessa cena vemos um demônio convencer uma mãe a obrigar a filha a fazer um aborto que ela não quer. A mãe fica repetindo "Esse bebê vai arruinar sua vida!" Enquanto a médica faz a operação na garota, um demônio próximo explica: "Essa mulher honestamente acha que está fornecendo um serviço por causa dos direitos das mulheres. 'Meu corpo, minhas regras!' Bom, na verdade é minha escolha! Agora me dê esse pequeno bocado da sua barriga!"

Na cena seguinte, vemos uma garota que é abusada sexualmente pelo pai, que depois mata a mãe dela. Mais tarde, a mesma garota é atormentada por dois demônios, que a enchem de vergonha por ter sido abusada e dizem que a única resposta é o suicídio. Chorando e gritando, a garota obedece, cortando os pulsos com uma gilete.

Esse cenário chocante me lembrou de uma amiga próxima que teve um surto psicótico e começou a ouvir demônios dizendo para ela se matar. Como essa atriz, ela ouviu as vozes e tirou a própria vida. Se eu ainda acreditasse em guerra sobrenatural como essas pessoas, eu provavelmente acharia que ela foi vítima de um soldado de Satanás, não da esquizofrenia.

São cenários violentos como esse que tornam as casas infernais tão emocionalmente impactantes. Como a maioria das casas assombradas, o público tem pouco contexto para as bruxas, assassinos do machado e aranhas radioativas vindo em sua direção. E mesmo que o conceito de guerra sobrenatural não seja universal, coisas como abuso doméstico, racismo, violência armada, aborto e acidentes de carro fatais são bem familiares para a maioria das pessoas. São dores de que queremos escapar.

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Mas não havia saída para nós, pelo menos não ainda. Tínhamos que ver onde sucumbir à tentação te leva no final: o inferno.

Naturalmente, a entrada para o inferno era através de um caixão. A tampa batia e nos trancava num salão escuro que se abria para uma variedade desorientadora de gritos, gemidos, metais batendo, luzes piscantes vermelhas e demônios vindo de todos os cantos.

Ver esses garotos em suas maquiagens góticas e bocas cheias de sangue, atuando exageradamente enquanto gritavam para nós "anda logo!" e "sai da minha frente!", me deixou um pouco sentimental com a minha infância. Lembro que era empoderador se fantasiar de demônio e participar de todo aquele terror que eu imaginava que me aguardava (não se engane, eu tinha certeza que ia para o inferno). Naquela época, eu estava desesperado para traumatizar todos os visitantes para acreditar que meu Deus era o único Deus.

Depois que nossos sentidos estavam pulverizados, fomos levados para uma sala iluminada onde um jovem explicava que só uma pessoa poderia nos ajudar a evitar as armadilhas do pecado e a tortura no inferno que vimos em Hell House 27. Seu nome era Jesus.

Técnicas de lavagem cerebral como essa me traumatizaram quando eu era criança. O ateísmo foi a única ferramenta que encontrei para combater o medo do inferno que assombrava meus sonhos. Esse é um tema bastante mencionado na página do Facebook de ex-fundamentalistas de Ryan Connell, onde pessoas que foram abusadas em nome da religião se ajudam para determinar o que é "real ou não".

Enquanto o terror produzido em casas infernais é visto por Connell e por mim como uma marca traumática da nossa juventude, para pastores como Barajas, esse continua sendo um mandamento de amor da Bíblia.

"Na epístola de Judas, a Bíblia nos diz: 'apiedai-vos de alguns usando discernimento; e salvai alguns com temor, arrebatando-os do fogo'", ele diz. "O objetivo da casa infernal é mostrar que existe um inferno de verdade, e que a misericórdia de Jesus é o caminho para o céu."

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