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A indústria de videogames está encarando várias acusações de abuso

Enquanto mais alegações surgem, respostas também estão vindo dos acusados.
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Foto por Mario Gutierrez / Getty.

Onde há fumaça, geralmente há fogo. Recentemente houve muita fumaça na indústria dos videogames, que está lidando com uma lista crescente de alegações contra desenvolvedores, que variam de ataque sexual a abuso gerencial. Alguns admitiram a culpa, outros negaram tudo e contrataram advogados. Um dos acusados morreu. Como já relatado, o que começou com três acusações de alto escalão virou uma bola de neve para um momento #MeToo dos videogames, enquanto mais pessoas tornaram públicas suas histórias.

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Tentar acompanhar tudo que está acontecendo nos últimos tempos, uma mistura de depoimentos e catarse, tem sido complicado. Quando eu estava escrevendo esta matéria, o cofundador da Oculus, Michael Antonov, foi acusado de colocar as mão embaixo da saia de uma mulher enquanto ela via uma demonstração de realidade virtual, numa situação onde ela não conseguia ver o que estava acontecendo. Antonov não comentou publicamente sobre o caso, e um pedido de comentário não foi respondido até a publicação desta matéria.

O que se segue é resultado de muitos dias de cobertura de algumas, não todas, as alegações compartilhadas, e essa cobertura continua. Esta é uma tentativa de tirar sentido de como a semana passada rendeu tantas acusações, as examinando de perto.

A designer de narrativa Meg Jayanth, mais conhecida por seu trabalho em 80 Day s, usou o Twitter para acusar o designer de Fallen London e Cultist Simulator Alexis Kennedy de ser “um predador conhecido da indústria de videogames”, e que ela estava “avisando as pessoas sobre ele há anos”. Jayanth acusou Kennedy de estabelecer e explorar relacionamentos com mulheres jovens novas na indústria para ganho pessoas, e mais tarde “ameaçar muitas mulheres com retaliação para garantir silêncio + obediência”.

“Sei que Alexis usou a amizade dele comigo e outras mulheres estabelecidas na indústria para isolar jovens mulheres + pessoas vulneráveis”, tuitou Jayanth, “para fazê-las pensar que ninguém acreditaria nelas, para as isolar de fontes de ajuda. Isso é deliberado, e uma violação grotesca de confiança”.

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As repórteres Laura Hudson e Ana Valens reconheceram ter ouvido histórias similares sobre Kennedy no passado. A Failbetter Games, o estúdio que Kennedy ajudou a fundar em 2010 e de onde saiu em 2016, disse que acredita nas histórias sobre o ex-cofundador e ficaria “do lado de qualquer pessoa que fale publicamente sobre Alexis Kennedy”.

Separadamente no Twitter, a atual roteirista da Failbetter Olivia Wood destacou um relacionamento tóxico anterior com Kennedy onde, depois que a relação acabou, segundo ela, Kennedy gritou e menosprezou Wood na frente de colegas. Wood disse que essa foi uma retaliação explícita ao fim da relação.

Numa matéria de 2017 da PCGamesN, Kennedy descreveu como se sentiu atraído e entrou num relacionamento íntimo com outra parceira depois que trabalhou como supervisor dela na Failbetter. A matéria queria destacar como ele equilibrava sua parceria profissional e romântica como cofundador do estúdio de desenvolvimento The Weather Factory, mas também mostrou a aparente disposição de Kennedy de entrar em relacionamentos românticos com suas subordinadas.

Kennedy respondeu publicamente a Jayanth no Twitter, reconhecendo “um pequeno número de relacionamentos totalmente consensuais com outras pessoas da indústria” e negando o resto. Numa série de mensagens privadas com a VICE Game, Kennedy disse que “se tudo que Jayanth disse fosse literalmente verdade, o que não é, então isso não é abuso mas claramente uma questão de irresponsabilidade”. Ele disse ter entrado em contato com a polícia para “fazer uma queixa” dos comentários de Jayanth. Contatamos o departamento de polícia onde Kennedy disse ter feito a queixa, mas eles não confirmaram ou negaram sua existência.

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Logo depois disso, Kennedy pediu que seus comentários anteriores (feitos oficialmente) fossem retirados, o que é contra padrões da prática jornalística. Kennedy então passou o contato de seus representantes legais que, quando contatados, não tinham um comentário oficial a fazer. A atual parceira romântica de Kennedy e cofundadora de estúdio Lottie Bevan disse no Twitter que “essas histórias são insanas e não são verdade”.

Mais tarde, Bevan postou uma atualização breve no site da The Weather Factory, apontando que um projeto do Kickstarter do estúdio tinha sido pausado.

“Consegui adivinhar quem era sem saber o nome, só vendo o padrão.”

Um efeito das pessoas falando abertamente sobre suas histórias colocou rostos em acusações antes anônimas. A gerente de comunidade e especialista em marketing Mina Vanir decidiu dar detalhes sobre acusações anteriores sem nomear a pessoa envolvida. Em outubro de 2018, Vanir usou o Twitter para revelar um incidente de suposto assédio sexual através de uma série de mensagens privadas com um indivíduo que admitia estar “com tesão e solitário” e pressionar seu pênis ereto contra Vanis várias vezes. A pessoa disse que estava “um pouco confuso com como você [Vanir] respondeu às vezes”, e disse “me certifico de não fazer coisas que deixem alguém desconfortável”.

Nas mensagens, Vanir está irritada e com raiva, e no começo da semana passada, ela nomeou o indivíduo: o consultor de desenvolvimento Vlad Micu, que segundo o perfil dele no LinkedIn, recentemente prestou consultoria para desenvolvedores como Robot Gentleman e Little Chicken Game Company. Ela também publicou as mensagens sem edição no Twitter.

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“Não estou aqui para estragar sua vida”, disse Vanir. “Estou aqui para te impedir de estragar a vida dos outros.”

Vanir disse a VICE que o incidente aconteceu numa pequena conferência europeia de desenvolvimento de videogames em 2017. Quando Vanir conheceu Micu, ela ainda era estudante e tinha acabado de entrar na indústria, ela disse.

“Pensando agora naquele dia em particular me senti muito idiota por ter ficado perto dele”, Vanir disse a VICE. “Do momento em que eu disse oi, ele continuava falando sobre como estava feliz em me ver porque estava solitário.”

Vanir não teve uma resposta de Micu depois da alegação, mas Micu falou com a VICE. Ele compartilhou uma postagem de fevereiro de 2018 do Facebook para amigos e colegas, onde ele admitia em privado que o incidente ocorreu, mas que via problemas na caracterização de Vanir. No post, ele dizia que “a narrativa reduz as complexidades de dois seres humanos para um caso simplificado de bem versus mal”.

“Desde a época da acusação e minha resposta”, disse Micu numa declaração separada, mandada semana passada junto com a postagem no Facebook, “tenho feito um esforço consciente de falar abertamente com meus colegas, parceiros, clientes e organizadores de conferências da indústria sobre o que transpirou e como admito totalmente meu erro”.

Logo depois que Vanir deu o nome de Micu, a produtora de ambiente do Turn 10 Studios Kristina Rothe disse no Twitter que ela teve “várias interações com o mesmo cara [Micu] que me fizeram sentir não só desconfortável como duvidando de mim mesma”.

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“Eu sabia dizer quem era sem saber o nome”, disse Rothe, “só de ver o padrão”.

“Não estou aqui para estragar sua vida, estou aqui para te impedir de estragar dos outros.”

Rothe não respondeu nossos pedidos de comentário adicional. Micu disse que tinha “mensagens de texto e testemunhas para refutar as alegações de Rothe”, mas se recusou a compartilhá-las.

Enquanto muito desse momento em particular tem sido sobre abuso sexual, dificilmente essa é a única maneira como desenvolvedores estão alegando vitimização injusta. Terça retrasada, o desenvolvedor Tony Coculuzzi disse que foi “abusado até o ponto da depressão e suicídio” durante dois anos trabalhando com o diretor criativo Ken Wong no estúdio Mountains. Na época, o Mountains estava desenvolvendo o celebrado Florence, uma história interativa sobre o fim de um relacionamento.

“Meu corpo literalmente parou de funcionar porque eu não conseguia lidar com o abuso diário dele no trabalho”, tuitou Coculuzzi. “Tentei colocar a culpa disso em coisas bobas como 'talvez eu não esteja acostumada com a gripe aqui' mas eu sabia a verdadeira razão, só não queria admitir pra mim mesmo.”

Coculuzzi não trabalha mais na Mountains, mas a produtora Kamina Vincent sim. Ela foi a primeira pessoa contratada na Mountains, e portanto a primeira pessoa a trabalhar com Wong.

“Tem coisas que eu não desejo pra ninguém, e nunca mais quero estar naquela situação”, ela disse no Twitter. “A relação que tenho com Ken agora é muito diferente. Não é sempre perfeita, somos pessoas muito diferentes. Trabalhamos muito para chegar na comunicação que temos hoje.”

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Depois Wong publicou uma resposta para Coculuzzi. A mesma declaração foi passada para a VICE Games.

“Tem muita coisa que eu deveria ter feito melhor ou diferente naquela época”, disse Wong. “Eu queria ter encontrado formas mais gentis de me comunicar. Eu queria ter mostrado para as pessoas da minha equipe mais apreciação. Eu deveria ter trabalhado mais para construir confiança e empatia. Essa foi uma falha minha como líder e colega de trabalho. Para a pessoa que escreveu a thread e outras pessoas que prejudiquei na minha carreira: desculpa.”

Coculuzzi não encontrou muito consolo na declaração de Wong, argumentando que foi só uma desculpa “para salvar a face” e “um jeito de dar de ombros para a responsabilidade”. Quando pedimos mais detalhes, Wong disse que precisava falar com um advogado.

Vincent, que disse “me encolhi e chorei” semana passada com as alegações de Coculuzzi, disse que Wong “mudou e cresceu” e que “a Mountains é mais que só o Ken”. Apesar de ter perdoado pessoalmente Wong pelo que aconteceu entre eles no passado – cujos detalhes Vincent não quis revelar – ela disse que “isso não significa que os outros têm que fazer o mesmo e não quero diminuir suas experiências”.

“Tem coisas que eu não desejo pra ninguém, e nunca mais quero estar naquela situação.”

Tudo que aconteceu acima veio depois de três alegações cujas consequências ainda estão se desenrolando.

Jeremy Soule, um compositor mais conhecido por seu trabalho em The Elder Scrolls, foi acusado de estuprar a designer independente Natahlie Lawhead e ameaçar retaliação profissional contra a vocalista Aeralie Brighton por recusar seus avanços sexuais. Soule disse a Kotaku que as acusações são “falsas” e que ele ficou “chocado e entristecido com essas alegações ultrajantes”. Quanto à alegação de Brighton, ele disse que “não concordava com o ponto de vista dela”. A Kotaku teve a oportunidade de revisar uma transcrição de alguns textos de flerte e sexuais entre Brighton e Soule, e disse que elas “pintam um retrato complicado do relacionamento deles”.

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Inspirada em Lawhead, a designer Zoe Quinn acusou o desenvolvedor de Night in the Woods Alec Holowka de abuso contínuo, incluindo mantê-la presa na casa dele e ser “mau e violento” durante o sexo. No final de semana passado, foi revelado que Holowka se suicidou.

Antes disso, outros desenvolvedores por trás de Night in the Woods disseram que acreditavam em Quinn, e estavam “cortando laços com [Holowka]”. Um videogame em desenvolvimento, provavelmente em colaboração com Holowka, foi cancelado.

O designer de Celeste Matt Thorson trabalhou com Holowka em um jogo anterior, TowerFall, e já tinha morado com ele. Thorson disse que acreditava em Quinn e admitiu que estava “chocado com o relato dela” mas não surpreso. Albertine Watson, uma designer que estava trabalhando com Holowka em outro projeto, compartilhou suas próprias experiências, alegando que “momentos de insulto [de Holowka] erodiram minha confiança como uma nova desenvolvedora de jogos”.

Holowka não respondeu publicamente nenhuma das acusações antes de morrer no final de semana retrasado. O programador da Splash Damage, Luc Shelton, não comentou sobre as alegações feitas por uma mulher chamada Adelaide Gardner, que disse que Shelton a atacou em 2018, mas a Splash Damage disse que estava “consciente da questão e a levando muito a sério… também é bom saber que o empregado negou qualquer alegação de má conduta”.

Shelton pode nunca dizer nada. Acusações e alegações, mesmo críveis, não resultam necessariamente em consequências. Não há um caminho claro aqui, e catarse não é justiça. Dificilmente essa será a última vez que a indústria de videogames passa por um momento assim, e é necessário um acerto de contas com seu passado e presente para garantir um futuro ligeiramente melhor.

Esse futuro vai, até certo ponto, ser influenciado pelo que acontecer agora.

“Espero que nossas comunidades e indústria encontrem maneiras de melhorar isso”, disse Quinn alguns dias atrás. “Espero que as pessoas prejudicadas possam finalmente começar a se curar.”

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