Traçando as táticas do protesto jovem do século 21
Ilustração por Kitron Neuschatz e Lia Kantrowitz.

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Entretenimento

Como universitários sérvios criaram a cartilha da militância jovem do século 21

Usando não-violência, humor e cultura pop, o Otpor desencadeou uma revolução e criou parâmetros estéticos e práticos para movimentos jovens do mundo inteiro.
Emma Garland
London, GB
KN
ilustração por Kitron Neuschatz
Lia Kantrowitz
ilustração por Lia Kantrowitz
MS
Traduzido por Marina Schnoor

O futuro dos movimentos políticos jovens do século 21 foi moldado por um barril e um bastão de basebol. Em 1998, o parlamento sérvio aprovou o Ato Universitário — uma lei que minou a autonomia das universidades e substituiu equipes acadêmicas pelos aliados do presidente iugoslavo Slobodan Milošević. A ação era parte de um esforço maior para acabar com a dissidência e a liberdade de expressão na Sérvia. Em resposta, alguns estudantes da Universidade de Belgrado fundaram o movimento de protesto civil Otpor (tradução: Resistência!) com duas estratégias: oposição de base e zoeira. Uma das pegadinhas mais infames deles foi durante a campanha do governo “Dinar para Sementes”, que colocou caixas de coleta em locais públicos para levantar fundos para fazendeiros. Para sua própria campanha “Dinar para Aposentadoria”, o Otpor pintou o rosto de Milošević num barril de petróleo que eles deixaram no meio do maior distrito de comércio de Belgrado. Um cartaz oferecia aos pedestres a oportunidade de colocar uma moeda nele em troca do privilégio de bater no barril com um taco, deixado convenientemente ao lado dele.

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Os estudantes se sentaram num café próximo e assistiram enquanto os pedestres formavam uma fila para expressar seus sentimentos pelo presidente, deixando as autoridades numa posição complicadíssima. Não fazer nada pareceria fraqueza, mas intervir e arrastar o barril embora seria ridículo. No dia seguinte, canais de TV da oposição transmitiram fotos dos policiais “prendendo” o barril e o colocando num camburão, e o Otpor ficou famoso. O que começou como um pequeno protesto cívico virou uma bola de neve de um movimento popular envolvendo 70 mil pessoas no espaço de apenas dois anos, e o uso estratégico do grupo de não-violência, humor e conhecimento da cultura popular levou a uma luta contra Milošević, que perdeu a eleição de 2000 que ele adiantou, eventualmente ganhando uma viagem só de ida para Haia.

Se inspirando numa mistura de Gandhi, Martin Luther King Jr., Gene Sharp (o pai da não-violência estratégica) e nos movimentos libertários de 1989, o Otpor atualizou a imagem do ativismo político para atrair os jovens e descontentes da Geração X. Se afastando da violência, o objetivo deles era uma revolução da mente. Em vez de armas, eles lutaram com logotipos, slogans e teatro de rua. Eles usavam o riso para tornar a resistência prazerosa, táticas de marketing corporativo (um logo arrojado, um slogan inesquecível) para tornar o movimento atraente, e tecnologia para disseminar informação e se organizar. Resumindo: eles transformaram a resistência em algo divertido. Eles perturbaram o status quo para estar sempre um passo a frete do regime desesperado para se manter através da força — e venceram.

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O Otpor teve um efeito cascata não só entre os países vizinhos da ex-União Soviética na época, mas também no espírito do ativismo antiautoritário praticamente por todo o mundo. Eles criaram uma cartilha para movimentos jovens que depois foi realmente adotada e adaptada. E é exatamente isso que está acontecendo nas últimas duas décadas, com vários graus de sucesso.

Depois de receber treinamento no Centro de Ação e Estratégias Não-Violentas Aplicadas (CAENVA) — uma ONG criada pelos membros fundadores do Otpor Srđa Popović e Slobodan Đinović, com o objetivo de transferir seu conhecimento para outros ativistas pró-democracia — o movimento de resistência cívica jovem Kmara (Chega!) ajudou a trazer uma mudança pacífica de poder na Geórgia em 2003, enquanto o Pora (É Hora!) coordenou a oposição jovem ao governo autoritário da Ucrânia em 2004-2005. O treinamento e metodologia do CAENVA também ajudaram a estimular uma mudança no regime do Líbano em 2005 e nas Maldivas em 2008. O manual deles — “Luta Não-Violenta: 50 Pontos Cruciais” — foi baixado 17 mil vezes no Irã durante os protestos na eleição presidencial de 2009. Um ano e meio antes do começo da Primavera Árabe, um grupo de jovens blogueiros e ativistas egípcios chamado Movimento Jovem 6 de Abril participou de uma sessão de treinamento do CAENVA em Belgrado, e se tornaria integral para os protestos contra Mubarak em 2011. Em homenagem, o logo forte e facilmente reconhecível do Otpor — um punho estilizado satirizando o símbolo dos guerrilheiros sérvios na Segunda Guerra Mundial — se tornou o logo preferido da resistência, hasteado do Zuccotti Park até a Praça Tahrir.

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A maioria das pessoas participando das sessões de treinamento do CAENVA, me conta Popović, são jovens. “Eles muitas vezes estão na frente das mudanças sociais por várias razões”, ele diz. “Com 20 e poucos anos, você sente que tem o direito a um futuro melhor — como eu sentia quando era ativista naquela idade. Jovens tem mais tempo para investir em mudanças sociais porque fora estudar eles não têm restrições econômicas ou de tempo como carreira, filhos ou família. Eles também são mais corajosos porque não têm muito a perder. É fácil chantagear alguém que tem uma família dependente de seu salário, mas é difícil chantagear alguém dizendo 'Vou te fazer ser expulso da escola', porque eles vão dizer 'Foda-se, acredito mesmo nessa causa'.”

“O Otpor teve um efeito cascata não só entre os países vizinhos na União Soviética na época, mas também no espírito do ativismo antiautoritário praticamente por toda parte. Eles forneceram uma cartilha para movimentos jovens que vieram depois adotarem e se adaptarem, que é exatamente o que está acontecendo nas últimas duas décadas, com vários graus de sucesso.”

Apesar de seus fins poderem ser diferentes, as origens e significados dos movimentos jovens muitas vezes são similares. Em seu livro de 2007 The Time of the Rebels, Matthew Collin define as revoluções democráticas do final dos anos 90 e 2000 como “uma fração dos estudantes descontentes que se tornou uma rede subversiva se espalhando pelo país inteiro”. Apesar desses começos modestos, o sucesso de qualquer revolução depende de números. “Para realmente ter um movimento de sucesso você precisa dos jovens”, diz Bryan Farrell, jornalista, ativista e editor do site Waging Nonviolence. “Você precisa da energia deles para tornar a luta uma experiência divertida e prazerosa. Você precisa fazer sua campanha o lugar certo para se estar, basicamente.” O que o Otpor fez, e outros grupos jovens vêm fazendo desde então, é inovar para envolvê-los.

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Como não tinha muitos membros no começo, o Otpor se desviou de formas tradicionais de oposição como marchas e comícios, optando por atrair pessoas para sua revolução tornando seu movimento interessante. “Nosso produto é um estilo de vida”, o membro fundador do movimento Ivan Marović explicou ao Foreign Policy em 2011. “O movimento não é sobre as questões. É sobre minha identidade. Estamos tentando tornar a polícia sexy.”

Então, para o Otpor, logos inteligentes, slogans e ações de dilema eram mais que apenas métodos de protesto, eram estratégias de branding — pensadas para trazer mais pessoas para o movimento, para poder fazer ações mais tradicionais como greves e boicotes de maneira eficiente.

“Um movimento de não-violência, especialmente agora, precisa saber como se vender e como se tornar popular. Isso não é mais uma questão do conteúdo da campanha política, mas sobre como se apresentar para o público”, diz a escritora Janjira Sombatpoonsiri. Para sua pesquisa de PhD sobre movimentos de resistência não-violentos, Sombatpoonsiri investigou porque os jovens em particular se sentiam atraídos pela marca de ativismo do Otpor. “Eles se juntaram ao movimento porque não tinham um trabalho e achavam que Milošević era a causa de todos os problemas em suas vidas”, ela explica. “E apesar de não terem uma ideia clara do tipo da mudança que queriam criar, na época eles também se juntaram ao movimento porque era divertido.”

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As redes sociais reinventaram o modo como os movimentos jovens operam, com campanhas de hashtag tornando a dissidência mais acessível e impossível de ignorar. O Movimento Jovem 6 de Abril começou como um grupo do Facebook encorajando apoio para uma greve de trabalhadores; simpatizantes do Movimento Guarda-Chuva de Hong Kong em 2014 na China puderam contornar a censura da internet postando imagens em vez de palavras; e plataformas como o Twitter significam que os manifestantes estão no controle de sua própria narrativa e podem transmiti-la internacionalmente, mesmo se a mídia está sujeita a corrupção ou apagões. As redes sociais permitem que movimentos cresçam significativamente e rápido, mas também precisam de uma direção tangível. Isso pode explicar parcialmente a ascensão recente de ocupações.

Na década passada, as táticas do Otpor, que eram de teatro de rua e pegadinhas (quase flash mobs) para perturbar a hegemonia social e atrair pessoas, moldaram os movimentos sociais modernos, para os quais ocupar espaços físicos se tornou central para a resistência não-violenta. Seja o Occupy se assentando num local de Nova York que representa injustiça, a Praça Tahrir se tornando o ponto focal da Primavera Árabe, ou ocupações de distritos e escolas que paralisaram Hong Kong por 79 dias, movimentos jovens estão cada vez mais dependentes da tomada e ocupação de espaços. É um desenvolvimento natural da estratégia do Otpor de obrigar questionamento moral do público, tornando a pergunta simples “De que lado você está?” impossível de ignorar.

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Um movimento de não-violência, especialmente agora, precisa saber como se vender e como se tornar popular. Isso não é mais uma questão do conteúdo da campanha política, mas sobre como se apresentar para o público”, diz a autora Janjira Sombatpoonsiri.

Pesquisa histórica mostra que campanhas de resistência não-violenta são duas vezes mais eficientes que campanhas violentas. Em seu livro de 2012 Why Civil Resistance Works, Erica Chenoweth e Maria J. Stephan estudaram campanhas entre 1900 e 2006, e descobriram que a não-violência leva a níveis mais altos de participação porque “as barreiras para participar são menores”. Isso leva a uma maior resiliência e uma chance maior de conquistar uma democracia mais estável a longo prazo. Elas também descobriram que nenhuma campanha fracassou depois que conseguiram ativar e sustentar o envolvimento de apenas 3,5% da população. Então usar o modelo no Otpor para conseguir apoio é uma rota garantida para o sucesso. “Quando campanhas conseguem preparar, treinar e tornar as pessoas mais resilientes, elas têm sucesso independente de se o governo usa violência contra elas”, escreveu Chenoweth.

Mas muitas ações de resistência não-violenta nos últimos anos falharam porque os protestos não eram significativos o suficiente (como a Revolução do Jeans na Bielorrússia em 2006), ou porque sua organização central desmoronou (como com a Primavera Árabe). O Movimento Jovem 6 de Abril se dividiu em dois grupos, e os dois foram banidos do Egito em 2014 depois de acusações de espionagem e difamação do governo. O governo se manteve firma durante a Revolução Guarda-Chuva de Hong Kong, os protestos não afetaram a economia como eles esperavam, e os estudantes líderes foram presos até que ativistas democratas venceram uma apelação para ter a sentença deles cancelada em fevereiro de 2018. Os protestos liderados por estudantes na Praça Maidan na Ucrânia em 2013, contra a corrupção do governo de Viktor Yanukovych, começaram no mesmo espírito da revolução de sucesso de 2004-2005 — com música, palestras e arte performática. Mas apesar de começar como o maior protesto pacífico desde os esforços do Pora quase uma década antes, a Revolução Euromaidan acabou se tornando incrivelmente violenta. Franco-atiradores do governo, policiais e agentes mercenários mataram mais de 100 manifestantes e feriram milhares de pessoas. Houve uma revisão do parlamento depois que Yanukovych fugiu do país, mas algumas posições de poder foram dadas para partidos de extrema-direita – não exatamente a mudança que os manifestantes tinham em mente.

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Táticas não violentas também podem ser aplicadas a movimentos reacionários. Em Moscou, o grupo jovem pró-Kremlin Nashi (“nossos caras”) se formou para conter a influência do Pora na Ucrânia, apesar deles fazerem principalmente serviço comunitário em troca da promessa de uma carreira política no futuro. Sem dúvida, o movimento político mais definitivo dessa geração é a “alt-right”, que usa trolagem, conhecimento de tecnologia e branding (pense no Pepe, na bandeira “Kekistão”, chamar todo mundo que discorda deles de cuck) não é diferente de como os grupos de esquerda mencionados antes começaram. Mas mesmo havendo uma sobreposição tática, a organização da alt-right se baseia em intimidação e manifestações físicas de violência.

“A questão é a seguinte, [o modelo não-violento] é um livro de código aberto”, me diz Popović. “E você pode usá-lo para qualquer objetivo que não seja muito extremo. Se seu objetivo é extremo, então o modelo não-violento de mobilização para o mainstream não funciona, mas sua ideia pode ser vendida no meio do campo de batalha político, infelizmente, mesmo quando as pessoas com quem você discorda usam esse modelo.”

Mas essa é principalmente uma questão afetando sociedades democráticas, como vimos acontecendo na Europa e EUA na última década. “Na democracia você tem opções e plebiscitos”, continua Popović. “Em autocracias você tem o governo exercendo controle e abusando dos pilares do estado para continuar no poder. Oprimindo as pessoas, controlando a mídia, evitando que a oposição concorra nas eleições – é um jogo diferente.”

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Grupos jovens costumam ter vida curta, mas sua influência dura uma vida inteira. O exemplo mais recente de mudança potencialmente sustentável foi liderada por um político. No dia 13 de abril, as pessoas tomaram as ruas da capital armênia de Erevan para protestar contra Serzh Sargsyan se tornando primeiro-ministro depois de dois mandatos como presidente (assim que a estrutura do governo mudou para dar ao primeiro-ministro mais poder que o presidente). O líder da oposição, Nikol Pashinyan, fez um chamado para uma marcha de 14 dias da comunidade municipal de Gyumri para a praça da Liberdade de Erevan, e quando os manifestantes chegaram na capital, milhares de outras pessoas estavam esperando para recebê-los, unidas sob o slogan “Rejeite Serzh”. O movimento se tornou uma campanha nacional de resistência civil, com os cidadãos fazendo greves, bloqueando estradas e parando o transporte público. Quem não podia sair de casa se mobilizou de outras maneiras, como batendo panelas entre as 23 e 23h15 toda noite.

Na democracia você tem opções e plebiscitos”, continua Popović. “Em autocracias você tem o governo exercendo controle e abusando dos pilares do estado para continuar no poder. Oprimindo as pessoas, controlando a mídia, evitando que a oposição concorra nas eleições – é um jogo diferente.”

Pensados para atrapalhar serviços básicos e provocar uma resposta exagerada, campanhas pacíficas têm suas raízes na escola de pensamento do Otpor. Dessa vez, apesar de estudantes terem seu grande papel típico, o impulso original veio de um partido de oposição. Foi um grito de guerra contra a corrupção – algo que Popović chama de uma questão não-política “pão com manteiga”. Se alguém do governo está abusando do dinheiro dos contribuintes, a maioria das pessoas sente isso de maneira mais pessoal do que lutando por uma questão menos tangível, como democracia e direitos humanos. Ainda assim, o movimento tinha uma ação não-violenta coordenada com um objetivo claro. O movimento capturou o espírito da nação e conseguiu o que muitos ex-estados da União Soviética fizeram no passado: a remoção pacífica de um antigo líder. No décimo primeiro dia do protesto, Sargsyan renunciou. O que o movimento ainda não conseguiu foi gerar uma mudança sistêmica real. Como no caso do Egito e Síria depois da Primavera Árabe, eles cortaram a cabeça da Hidra, mas a besta ainda não está morta.

Em 2018, uma época em que as divisões políticas nunca foram maiores ou mais aparentes, o peso de gerar mudança está novamente sobre o envolvimento dos jovens. Seja estudantes do colegial na Flórida, organizando o movimento Nunca Mais para defender o controle de armas depois do atentado em Parkland, ou os protestos de jovens indígenas contra o Oleoduto Dakota Access, resistência civil não-violenta – nos EUA, pelo menos – parece profundamente pessoal e visivelmente jovem agora. Mas Popović diz que é importante entender que essa nova geração não está sozinha.

“Quando o Otpor foi criado, a primeira ramificação depois dos ramos de universitários e estudantes foi o chamado 'mães da resistência'”, me diz Popović. “Eram as mães dos ativistas, que estavam apoiando os eventos, ficando na frente da polícia e assando bolos. Os estudantes nunca teriam conseguido mudança política sozinhos, nem mesmo nos protestos de 1968. Para ter um movimento de sucesso você precisa de diversidade. Você precisa construir pontes entre os círculos eleitorais. Seus objetivos e suas táticas têm que levar o movimento da minoria para a maioria – do extremo para o mainstream.”

Matéria originalmente publicada na Edição Poder e Privilégio da Revista VICE nos EUA. Leia o texto original em inglês aqui.

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