FYI.

This story is over 5 years old.

Noticias

As Imigrantes na Austrália Abortam para Evitar o Sofrimento dos Filhos

Suicídio, autoflagelação, assassinato e loucura disparam entre adultos e crianças que buscam refúgio.

Foto via Flickr DIBP.

O público australiano já se acostumou a ouvir histórias de terror sobre os centros de detenção de imigrantes existentes no país. São relatos de autoflagelação, de suicídio e até de assassinatos, como o do iraniano Reza Berati, de 23 anos, morto numa gigantesca rebelião em fevereiro, no presídio de Manus Island, na qual mais de 70 detentos ficaram feridos. Se, por um lado, situações como esta se tornaram quase corriqueiras, parece algo realmente muito mais difícil ignorar ou se acostumar com os casos das mulheres que preferem abortar seus filhos a dar à luz nestes locais de detenção.

Publicidade

As australianas optam pelo aborto por várias razões: simples falta de segurança financeira, impossibilidade de fazer nascer uma criança num lar estável ou simplesmente não estarem prontas para ter filhos. Mas imagine ter de encerrar uma gravidez mesmo querendo ter o bebê, tudo porque você tem medo de que ele morra, de que dependa de um sistema de saúde precário ou tenha de dar seus primeiros passos atrás das grades. Em fevereiro, um casal tomou exatamente essa decisão.

Salima e Mamun Motiur são membros de uma pequena comunidade étnica muçulmana de Myanmar chamada Rohingya. Apesar das reformas democráticas, os rohingya ainda enfrentam violência e perseguição em seu país. Salima e Mamum estavam detidos em Nauru, na Micronésia, quando ela engravidou. Ali, o bebê seria trazido a uma realidade de detenção indefinida em condições de calor opressivo, com oito famílias dividindo uma barraca e uma fila de mais de duas horas para conseguir cada refeição.

Então eles escolheram encerrar a gravidez.

Um porta-voz do Ministério da Imigração e Proteção de Fronteira disse à VICE que “todas as pessoas em detenção de imigração, incluindo grávidas, recebem cuidado médico profissional e coordenado, em linha com os padrões da comunidade Australiana”. Mas o advogado dos Motiur, Mark Johnson, contesta. Para ele, o que o ministério informa ao público sobre as instalações de detenção não é verdade.

Johnson explicou que o casal temia pela morte de seu bebê em Nauru. Salima foi examinada por um médico cerca de um mês antes do aborto. Ela estava pesando apenas 35 quilos. “Isso dá uma indicação das condições em Nauru. Fico surpreso deles terem conseguido conceber uma criança”, frisou o advogado.

Publicidade

Atualmente, 983 crianças estão detidas em instalações de imigração: desse número, 208 em Nauru e 196 na Ilha Christmas. Em resposta a preocupações com o aumento do tempo de detenção de meninos e meninas, resultante da linha dura do governo do premiê Tony Abbott, a Comissão de Direitos Humanos da Austrália (AHRC, em inglês) começou um inquérito sobre as condições enfrentadas pelas crianças requerentes de asilo. Os resultados divulgados semana passada não foram nada bons.

Testemunhos do inquérito revelaram altas taxas de sofrimento e desordens mentais, incluindo 128 casos de menores detidos cometendo atos de autoflagelação nos últimos 15 meses. E o nível de doenças físicas entre os que vivem em centros de detenção também é alto.

A professora Elizabeth Elliott, da Sydney Medical School, visitou recentemente as instalações da Ilha Christmas como parte do inquérito. Ela relatou à VICE ter ficado horrorizada com as condições do lugar. “Eles estão vivendo em pequenas salas de metal superlotadas, com uma única janela, uma única porta e pouquíssimo espaço para uma criança aprender a engatinhar, andar e brincar”, ela disse. “Infecções respiratórias e gástricas agudas são exacerbadas pela proximidade.”

Elliot também entrevistou algumas das crianças detidas na Ilha Christmas. “Os garotos mais velhos conseguiam verbalizar que se sentiam deprimidos e sem esperança”, continuou. “Alguns expressaram ansiedade severa sobre a possibilidade de transferência para Manus.” Há crianças que dão sinais de regressão psicológica: “Depois de ficarem um ano inteiro no acampamento, elas começaram a urinar na cama, gaguejar ou parar de falar.”

Publicidade

Salima e Mamun não são os únicos que não quiseram cuidar de um bebê nessas condições. Há relatos de outros dois casos de aborto em centros de detenção. A VICE tentou esclarecer o número exato de casos com o Departamento de Imigração, mas um porta-voz afirmou que “mais detalhes sobre essa questão não podem ser fornecidos por razões de privacidade”.

O inquérito também revelou que requerentes de asilo têm suas propriedades apreendidas na chegada aos centros de detenção. Gillian Triggs, presidente da AHRC, falou à VICE que uma das revelações mais chocantes foi a de que óculos e aparelhos de audição estavam sendo tirados de quem chegava aos centros. “Eles precisam ficar ali sem esse apoio”, disse.

“Eles tiraram os remédios de uma criança epilética e não foram capazes de estabilizá-la com qualquer outro remédio disponível na ilha. Logo ela começou a ter convulsões, o que, claro, era o que o medicamento devia prevenir. Um garoto pequeno teve seu aparelho auditivo apreendido, então teve que começar a ler lábios”, explicou Triggs. “Esse tipo de mesquinhez dentro do sistema tem um impacto muito pessoal sobre os detidos.”

A presidente da AHRC atestou que o Departamento visa a criar um ambiente tão pouco convidativo que os imigrantes acabem desconsiderando a possibilidade de vir à Austrália – e que isso está se sobrepondo a suas obrigações legais e morais. Algumas pessoas no comando “entendem que o interesse das crianças é uma consideração primária, mas que a política de ajuda do governo está dando lugar à política de impedimento do ministério”. Ela frisa: “Impedimento parece ser a carta trunfo”.

“Claro, tratando-se de lei internacional, você não pode usar refugiados, particularmente crianças, como ferramenta, achando que isso vai ter algum tipo de impacto no tráfico de pessoas”, opinou Triggs.

Apesar de tudo isso, algumas mulheres decidem dar à luz na detenção ou já têm crianças quando chegam ali. Quando Elliot esteve na ilha, dez mulheres estavam sob observação contínua por terem tentado se autoflagelar. “Eram todas mulheres com bebês pequenos e estavam se autoflagelando porque queriam melhores condições para os filhos. Elas disseram que era intolerável continuar vivendo mais tempo nessas condições”, explicou. “Acho que isso mostra a força do sentimento dessas mães de que a detenção não é lugar para se ter um filho.”

Siga a Lauren no Twitter.

Tradução: Marina Schnoor