Como a leitura de 'O Escaravelho do Diabo' despertou o meu gosto pela narrativa

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Como a leitura de 'O Escaravelho do Diabo' despertou o meu gosto pela narrativa

Às vésperas da estreia da adaptação do livro nos cinemas, me pus a refletir sobre a influência da autora no imaginário de toda uma geração.

Lúcia Machado de Almeida foi a autora do primeiro livro infanto-juvenil imposto pela escola que eu li sem me revoltar. Sempre gostei de ler, e de consumir gibis e revistas em geral. Mas os títulos sobre os quais éramos obrigados a nos debruçar a partir da terceira série significavam deixar de lado O Almanacão da Mônica, as coisas do Ziraldo (Coleção Corpim; O Menino Maluquinho), da Chiclete com Banana, do Mario Prata e do Curso Globo de Violão e Guitarra, de interesse pessoal, para enfrentar textos pouco convidativos indicados no programa de ensino. O que sei é que, na época, foi um porre. Tamanho desgosto era refletido em toda a molecada da turma. Daí que a professora trouxe para a sala O Escaravelho do Diabo, e o quadro mudou.

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Vários títulos da coleção Vaga-Lume, da editora Ática, conquistaram os pré-adolescentes no colégio, numa estratégia pedagógica que tirou os livros rebuscados do plano de ensino para incorporar obras mais fluídas, fantásticas e cheias de mistérios. Até com a coletânea do Edgar Alan Poe, Meu Pé de Laranja Lima (José Mauro de Vasconcelos), A Revolução dos Bichos (George Orwell), O Gênio do Crime (João Carlos Marinho) e Oito Minutos Dentro de uma Fotografia (José Ganymédes), a rapeize pegou bem. Mas foram mesmo obras da Vaga-Lume como A Ilha Perdida e Éramos Seis (Maria José Dupré), Meninos Sem Pátria (Luiz Puntel), O Rapto do Garoto de Ouro e Sozinha no Mundo (Marcos Rey) que a maioria pegou gosto pela leitura. Era a união das tribos, um amor compartilhado tanto pelos CDFs como pelos repetentes.

Nesse bolo, a Lúcia Machado se sobressaía pela quantidade de títulos que conseguiu emplacar na série. Talvez a arquitetura de suas histórias não seja tão engenhosa como a do Marcos Rey, deixando algumas pontas aqui e ali, como já vi alguns críticos observarem. Mas a fácil absorção dos fatos, a musicalidade de sua escrita e o modo como os mistérios e reviravoltas são distribuídos ao longo dos textos realmente eram capazes de segurar o leitor. Spharion, O Caso da Borboleta Atíria e todas as aventuras de Xisto gozam dessas valiosas qualidades. Por alguma razão, O Escaravelho do Diabo foi o que mais me marcou. E, vejam só, uma adaptação para o cinema estreia neste mês, dia 14, sob a direção de Carlo Milani.

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Quando fiquei sabendo que O Escaravelho seria transposto para o audiovisual, me pus a refletir menos sobre a justiça que o longa fará à obra original do que a respeito da importância que a Lúcia Machado teve no imaginário infanto-juvenil brasileiro durante pelo menos quatro décadas. O Escaravelho, por exemplo, saiu pela primeira vez na revista O Cruzeiro, em forma de folhetim, em 1956. Em 74, foi reeditado para a Vaga-Lume, com reimpressões sucessivas que mantiveram a influência da publicação até meados dos anos 90. Ainda hoje, consta como o segundo livro mais vendido da série, que chegou a ter mais de 100, ficando atrás apenas de A Ilha Perdida. Mesmo com toda essa moral, é intrigante que faltem registros mais apurados sobre a trajetória, as referências, os elementos humanos da vivência que desembocaram na estética criada pela escritora. O universo literário tem dessas. Escritores muito lidos são, por vezes, pouco interessantes às análises, documentários e biografias.

Pouco sabemos sobre Lúcia Machado de Almeida, além daquilo que consta nos verbetes de natureza enciclopédica. Quando ela morreu, em 2 de maio de 2005, vítima de uma forte pneumonia, corri para os sites e periódicos à busca de conhecer detalhes de sua vida e obra. Seus 94 aniversários, contudo, renderam um breve obituário com cerca de 187 palavras no Estadão. A Folha, por sua vez, publicou um texto ainda mais enxuto. O Will Eisner morreu naquele mesmo ano, em janeiro, e, sem fazer julgamentos, mas apenas para traçar um paralelo, o Jornal da Tarde dedicou uma espirituosa página inteira ao seu legado.

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Os demais arautos da cultura de massa, à época, ofereceram equivalente espaço para a notícia. Nada revelador como os apurados perfis que preenchem O Livro das Vidas – Obituários do New York Times. Penso que era esse padrão de texto o que a sua encarnação merecia. Daria pra contar muita coisa. Até porque, além de seu trabalho voltado ao público juvenil, ela concretizou um rico e definitivo apanhado sobre o Ciclo do Ouro em Minas Gerais. São eles os volumes Passeio a Sabará, Passeio a Ouro Preto e Passeio a Diamantina. Na mesma pegada, ela desvendou as peculiaridades das terras portuguesas em Passeio ao Alto Minho, inspirada pelas descobertas feitas em suas viagens.

Ela se foi uma semana antes de completar 95, em 9 de maio. Nascera na Fazenda Nova Granja, no município de Santa Luzia, Minas Gerais. Cresceu em Belo Horizonte, para onde sua família de intelectuais se mudou quando ela tinha seis anos. Era irmã de Aníbal Machado, tia de Maria Clara Machado e prima de Murilo Mendes. Atuou como jornalista por quase 60 anos. Reportou para os Diários Associados e, a convite do Ministério das Relações Exteriores, viajou à Europa e aos Estados Unidos para dar palestras sobre Aleijadinho e as cidades mineiras do Ciclo do Ouro. Como tradutora, passou para o português livros de Honoré Balzac, Bernard Hollowood e Astrid Lundgreen.

Desde que se tornou escritora, Lúcia Machado de Almeida sempre contemplou as crianças e adolescentes. Tudo começou em 1942, ao acaso. Foi pensando em distrair os próprios filhos, que estavam com sarampo e não podiam sair de casa, que ela criou a personagem Piabinha e suas aventuras no fundo do mar. Já nos primeiros enredos a narrativa de mistério estava presente. Piabinha era detetive, e passeava por diversas histórias. Esse lance de colocar um personagem heróico protagonizando diferentes tramas foi replicado por ela mais tarde na série Xisto – As Aventuras de Xisto (1957), Xisto no Espaço (1967) e Xisto e O Pássaro Cósmico (1982). Os dois primeiros chegaram à Vaga-Lume em 75 e em 80, respectivamente, enquanto O Pássaro Cósmico teve a primeira edição já dentro da coleção.

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Imagem: arquivo pessoal

Num texto intitulado "Um Pouco de Mim", ela conta que os primeiros anos de vida passados na fazenda onde nasceu foram decisivos para o desabrochar de sua veia criativa. Ela diz: "Criança solitária, eu passava os dias trepada nas árvores, acompanhando a maturação das frutas, visitando ninhos de passarinhos e observando as borboletas que saíam dos casulos. Ou então, descalça, eu me metia num córrego que por ali passava, a brincar com as piabas. Eu não imaginava que esse contato direto com a natureza me marcaria para sempre."

Em 1972, seu primeiro volume redigido especialmente para a Vaga-Lume deu-se no mesmo ano da reedição pela Ática d'O Escaravelho. O Caso da Borboleta Atíria também trazia os elementos de mistério envolvendo um detetive. Nesta narrativa policial que se passa no mundo dos insetos, a noiva do Príncipe Grilo é assassinada e a borboleta Atíria, sequestrada. Quem seriam os responsáveis e qual o motivo do crime são mistérios investigados pelo detetive Papílio (que significa borboleta em esperanto). Preocupada em educar, a autora incluiu notas de rodapé com os nomes científicos dos bichos, tempo médio de vida, aspectos, comportamentos e curiosidades. Foi assim que eu descobri, por exemplo, que existe um tipo de cigarra, na América do Norte, que permanece 17 anos enterrada até completar sua evolução. No sumário, a bibliografia indica as obras de consulta científica dessas informações.

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Insetos e animais eram uma tática da escritora para cativar os jovens leitores. Tal recurso encontra-se na coletânea da Melhoramentos Estórias do Fundo do Mar (1980). Seres marítimos emulam o comportamento humano nessas três narrativas escritas a partir de 1971. São elas No Fundo do Mar, O Mistério do Pólo e Na Região dos Peixes Fluorescentes. Mais uma vez, temos aqui desaparecimentos misteriosos – as alunas de canto da Dona Leoa-Marinho –, um detetive (Piabinha), e recursos de construção próprios ao romance policial e à fantasia. O Escaravelho do Diabo traz um pouco disso tudo, também.

O enredo não engloba animais falantes, mas há um inseto, o besouro — o tal do escaravelho — que dá nome ao livro e que um assassino em série envia para suas vítimas, só gente ruiva, dias antes de matá-las. No jeitão de constituir os enigmas, arrisco uma relação com alguns contos do Alan Poe, que curiosamente assina um texto muito legal envolvendo mistério, imaginação e fantasia, chamado O Escaravelho de Ouro. Estão presentes, como nas demais tramas, um investigador e um auxiliar. São eles Alberto e o Inspetor Pimentel. A saga toda começa quando Hugo, irmão do Alberto, é assassinado. Novamente a autora inclui toques educativos ao desenrolar da narrativa, com direito a alguns termos biológicos, científicos, e em inglês e francês.

Preocupada em atribuir panos-de-fundo contemporâneos às histórias, Lúcia Machado de Almeida lançou mão de variados recursos narrativos. É latente, em seus escritos, a dedicação à estética, a inovação do discurso, a intertextualidade e a intratextualidade. O Inspetor Pimentel, d'O Escaravelho, por exemplo, é quem auxilia na resolução do mistério de Spharion. A obra trata de parapsicologia ao falar de um menino sensitivo que julgam estar endemoniado (alguém aí pensou em O Bebê de Rosemary?).

O discurso importa recortes de jornal, relatos de um diário, ilustrações e a reprodução de um retrato. Quando temos acesso aos pensamentos de Dico, sua voz interior é apresentada em itálico, saindo da terceira para a primeira pessoa. Como não poderia deixar de ser, surgem na história explicações sobre os fenômenos que acometem a criança, como quando sua para-normalidade o torna capaz de ver o que acontece com o organismo doente de seu pai. Dico observa os milhares de micróbios invadindo o corpo e sendo combatidos pelos anticorpos. Recursos desse tipo ajudaram a aguçar a esperteza dos leitores de primeira viagem da minha geração, que absorviam conceitos refinados da literatura e o conhecimento das coisas do mundo sem o malefício da entropia.

Lúcia Machado costumava dizer que "o livro bom para criança é aquele que desperta nela uma curiosidade para o mundo". Certa vez, Carlos Drummond de Andrade resenhou: "Lúcia Machado de Almeida conta história do jeito mais natural (quer dizer, mais artisticamente natural), de sorte que o leitor infantil não se sente desconfortável com a pressão de uma inteligência adulta a querer estabelecer uma falsa intimidade com o espírito infantil. Dir-se-ia que a própria Lúcia tira prazer de seus contos e se diverte com eles como se fosse uma leitora pequena. Em suas histórias, combinam-se a poesia e a realidade, o cotidiano e o fantástico."