Paisagens Complexas

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Paisagens Complexas

Completada meia década de sua ocupação em 2010, desenhos de crianças do conjunto de comunidades do Alemão ilustram as histórias de moradores sobre as mudanças bruscas trazidas pela pacificação.

A violência que apagou Eduardo e Uanderson é a mesma que deixou suas marcas nesses desenhos cedidos por familiares.

Todos tinham opiniões de quem eram os culpados por suas mortes, menos a filha de Uanderson e a mãe de Eduardo. Durante seus velórios, a primeira queria apenas que seu pai a ouvisse falando. "Levanta daí, pai. Levanta." Já a segunda apenas estava aliviada de enterrar seu filho longe do Rio de Janeiro, cidade na qual ele queria crescer para ser um bombeiro e salvar vidas.

Apesar de não terem se conhecido, tanto Uanderson Manoel da Silva quanto Eduardo de Jesus fazem parte da história recente do Complexo do Alemão, que, desde 2010, vem sofrendo imensas mudanças por conta de uma nova política de segurança. Primeiro, veio a ocupação do Exército; depois, as Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs. Entretanto, mesmo contando com um dos maiores projetos de pacificação até então, com quatro unidades operacionais; mesmo com todo o histórico de ausência do Estado na região; mesmo com toda complexidade espacial, o Cpx, como é conhecido, vem sendo resumido por quem vive e por quem trabalha ali em uma palavra simples: problema.

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Desde as primeiras ocupações que se iniciaram no Cpx, aos pés da Serra da Misericórdia, várias pessoas já foram vistas como "xerifes", dada a histórica falta do Estado no local. China, Cícero e Mão Branca foram alguns desses. Todavia, quando a conversa chega ao nome de Orlando Jogador, os pais de família Júlio e Suzana Mineiro levantam seus olhos pra cima, como se se lembrassem de um parente próximo cujos defeitos já tivessem sido deteriorados pela honra que a morte trouxe.

"É uma pena que minhas filhas não tenham vivido essa época daqui do Alemão", comentou Júlio, seguido por sua esposa. "Aqui era calmo, não tinha nem tiroteio. Além disso, o Orlando não deixava as pessoas se drogarem na rua que nem hoje." A reverência é tão grande que alguns moradores juram de pés juntos que até mesmo policiais confidenciaram sentir a falta daquele que foi um dos grandes traficantes do Rio de Janeiro, que ficou no "poder" de 1986 até 1994. Já para a educadora Joana, de 52 anos, e moradora do Areal, Orlando Jogador significa um passado de bandidos "Robin Hood", os quais, apesar de serem criminosos, "davam de volta" pra comunidade. Ela inclusive relembra uma vez que, no topo de uma grande escadaria que corta sua comunidade, Orlando Jogador, de cima de uma pedra, avisou: "O dia [em] que eu morrer, o Rio não vai ter mais paz". Ele foi assassinado algumas semanas depois por um ex-protegido.

Durante uma aula, o/a professor/a X pediu para seus alunos — todos em volta de seus 10 anos — retratarem a paisagem cotidiana de suas vidas no Complexo do Alemão. Os desenhos acima e os posteriores são todos partes de uma mesma turma de um colégio da região.

Os anos passaram, e o Cpx realmente viu pouca paz. Além dos confrontos de facções rivais, houve duas grandes invasões policiais: a primeira em 2007, graças ao Pan-Americano, e a segunda, que marcou a "retomada" da região pelo Estado, em 2010. Foi nesse contexto de esperança e investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que nasceu o famoso Teleférico do Alemão, cujas estações vão de Bonsucesso até a Estação Palmeiras em seis paradas. Com ele deslizando cinematograficamente, a viagem mais parece uma propaganda da prefeitura. Apenas os eventuais tiros acabam estragando a viagem, forçando as pessoas a esperar nas estações cada vez mais vazias. Uma funcionária da limpeza fala que "muitos colegas já foram demitidos" e adiciona que todas as catracas estão abertas depois da primeira estação, uma vez que pouca gente vem usando o teleférico.

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Mariluce Maria, artista plástica e empreendedora de turismo no Alemão, sabe disso muito bem. Até o final da Copa do Mundo, ela levava grupos de até 300 turistas por dia para conhecer o Complexo, sendo o teleférico o grande chamariz e meio de transporte. No entanto, ela afirma que, "de julho de 2014 pra cá, eu não recebi mais nenhum turista novo. Zero. Tudo por conta da violência". As estações só não estão desertas porque, além do fluxo de moradores, existem serviços antes indisponíveis, como correios e bibliotecas públicas.

"Com esse dinheiro, eles podiam ter feito umas quatro ou cinco Praças do Conhecimento", critica um morador, se referindo ao interessante projeto da prefeitura situado em algumas comunidades do Rio de Janeiro, um deles no Cpx, servindo como polo de inclusão da comunidade, com cursos profissionalizantes, amplo espaço para debates e atividades culturais – e até mesmo um cinema próximo. A jovem Juliana Mineiros, de 19 anos, é uma que adorava ir lá, até que, certa vez, após uma sessão, começou a rolar um tiroteio, fato que se tornou constante. "Pra piorar, a boca de fumo foi passando, com o tempo, pra dentro da praça. Então, de um lado, nós temos uma UPP e, do outro, o tráfico."

A implantação, em maio de 2012, da primeira UPP no complexo foi vista com um otimismo receoso pelos moradores. Mas, progressivamente, o clima tenso, com confrontos e balas perdidas, voltou a se instaurar, criando uma insegurança diferente até daquela vista na década de 90, quando fogos avisavam sobre a entrada da PM, o que dava tempo para os moradores se esconderem. Suzana Mineiros, enfermeira, eventualmente é pega de surpresa e vê-se no meio de tiroteios na Rua Canitá, tanto na ida quanto na volta do trabalho.

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'Os postes e as portas aqui têm olhos. E as ruas aqui têm ouvidos', avisa uma mãe, moradora do Morro do Adeus.

Os policiais de UPP, por sua vez, têm um cotidiano ainda mais desequilibrado, tanto é que muitos moradores os descrevem como "baratas tontas", já que poucos conhecem intimamente o gigantesco terreno que policiam. "Uma vez, um PM se perdeu do seu grupo, e alguns traficantes acabaram o encurralando. Ele só não morreu porque a gente impediu; senão, quem paga é o morador depois", lembra Karina, que mora próxima à UPP do Alemão.

O soldado Flávio já foi uma dessas baratas tontas. Com 29 anos e 2 como policial, o jovem preferiu sair da UPP Fazendinha e agora trabalha em um batalhão da Zona Oeste. "Não poderia estar melhor. Antes, como muitos amigos meus, eu não sabia se voltaria ou não vivo pra casa", comenta.

A fragilidade de um terreno montanhoso, somada ao tamanho do local e à quantidade de policiais presentes na comunidade, faz com que uma ocupação desse porte seja fadada ao fracasso, como afirmou o coronel Íbis Silva no 9º Encontro Anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Contudo, a primeira parte da ocupação, quando o Exército esteve presente no dia a dia do Alemão, de 2010 a 2012, foi vista com mais boa vontade por parte dos moradores do que atualmente. "A gente se sentia seguro com eles, além de eles nos tratarem bem", destaca Teresinha de Jesus, mãe de Eduardo de Jesus. "Uma das diferenças é que o Exército tinha contingente pra ocupar aqui, inclusive as partes altas", compartilha o jornalista Betinho Casas Novas, do jornal A Voz da Comunidade.

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Hoje, de acordo com a assessoria das UPPs, há cerca de 1.400 policiais trabalhando no complexo. Entretanto, com folgas e trocas de turnos, simultaneamente são apenas 350, bem menos do que os cerca de mil soldados do Exército que trabalhavam ao mesmo tempo em todas as comunidades do Cpx.

Na visão de muitos moradores, UPP e bandidos são as duas faces da mesma moeda.

A Unidade Fazendinha teve, porém, um começo tranquilo, de acordo com o soldado Flávio. Foi o passar do tempo que levou a esperança dos moradores a ser dissolvida devido à volta dos confrontos entre o tráfico e a polícia. Hoje, os moradores e até alguns policiais admitem que os criminosos vêm obtendo vantagens estratégicas na questão espacial, em mobilidade e de armamento. "Foi correndo frouxo, e cada vez mais eles foram se fortalecendo", critica Flávio. Um quadro que expõe essa presença maciça de armas de grosso calibre é o recenterelatório do Instituto de Segurança Pública(ISP), que quantifica que, de setembro de 2012, quando houve a implantação das UPPs no Alemão, até julho de 2015, 46 fuzis foram apreendidos na Área Integrada da qual o Cpx faz parte.

Isso, no entanto, parece ser apenas uma pequena parte do que está presente no Cpx. Não há estimativas oficiais da quantidade de armas de grosso calibre no local, embora o tráfico de armas continue presente, mesmo com a polícia ali constantemente. Karina afirma que já presenciou, enquanto acontecia um show de uma cantora conhecida em uma igreja evangélica, um caminhão sendo descarregado pelos criminosos. "Era fuzil que não acabava mais", relembra.

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É nesse ambiente de tensão constante que ocorrem erros graves. Nos dias 11 de setembro de 2014 e 2 de abril de 2015, foi o que aconteceu. Tanto o comandante Uanderson, da UPP Nova Brasília, quanto Eduardo de Jesus morreriam pelas mãos justamente daqueles que invadiram o Cpx para pacificar – ou, como muitos moradores falam atualmente, "falsificar" a comunidade.

'Não se fortalece a juventude aqui dentro. Cadê os projetos? Os empresários que investiam aqui tão tirando o corpo fora', comentou Joana, educadora local.

O primeiro faleceu por conta de fogo amigo causado pela imperícia de um PM durante um confronto com traficantes no Nova Brasília. O segundo levou um tiro de fuzil que partiu da arma de um dos vinte policiais que desciam a Travessa Lagoinha, no Areal. Ele estava na frente de casa, esperando pela chegada de sua irmã. Não havia confrontos naquele momento.

"Infelizmente, existe um problema grave que precisa ser reconhecido", reitera a capitã Bianca, viúva do comandante Uanderson. Para ela, parece que apenas a PM está presente no cotidiano do Cpx. Bianca frisa que "cinco anos é pouca coisa pra mudar tanto a comunidade quanto a polícia. Não deixa de ser uma questão cultural". Contudo, quanto mais o tempo passa, mais parece que as coisas pioram para os moradores. De acordo com o jornal A Voz da Comunidade, foram 14 as mortes em 2014 e 20 até o presente momento de 2015.

Recentemente, durante a organização de uma festa junina, um policial de UPP simplesmente arrancou a decoração, gritando: "Eu passo [por] tiroteio dia e noite, então vocês não vão curtir também". Enquanto isso, os traficantes parece igualmente desequilibrados. Antes mesmo da morte do Eduardo, outro policial começou a assediar a filha menor de idade da dona Teresinha. Mesmo que de forma injusta, logo veio o aviso dos traficantes para que ela saísse da comunidade.

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A violência policial e a falta de oportunidades, somadas a outras variáveis, fazem com que muitos jovens entrem no tráfico. 'A revolta de ser apenas oprimido traz isso', comentou dona Judite.

Por essas e outras que Flávio se pergunta: "Como é que dá pra acreditar nesse projeto?". Seu escasso treinamento também foi criticado: 8 meses de aulas e 3 semanas para treino de tiro, patrulha e abordagem, sendo esse último para ele o momento mais perigoso do trabalho. "A seleção de novos recrutas tem sido igualmente problemática", afirma a capitã Bianca, "Deve haver uma melhor seleção para os policias que entram na corporação, lembrando sempre que os policiais são reflexo da nossa sociedade."

Todavia, a atuação do tráfico também se alterou com as UPPs. Não existem mais figuras como a do "fogueteiro", que vigiava e avisava com fogos a chegada da polícia e de outras facções. Essa figura foi transmutada em uma nova categoria, o "marca-beco", papel mais discreto de um observador, normalmente feito por menores de idade desarmados. "Eu já vi menino de 10 anos servindo de marca-beco", comenta dona Judite, doméstica com 50 anos no Cpx e que viu geração atrás de geração se criar no Alemão. Ainda assim, é a primeira vez que ela afirma ver jovens tão novos se envolvendo, fato que foi corroborado por todos os moradores entrevistados. "Na década de 90, traficante era homem feito, e criança não se metia", muitos afirmaram.

Até mesmo o lucro rápido, que era um dos grandes chamarizes de antigamente, não é mais tão interessante. "Um soldado mirim ganha hoje 300 reais por mês, tendo de fazer inclusive plantão", informa dona Judite. O soldado Flávio confirma que esse é o atual valor médio do salário desses novos traficantes. Apenas para efeito de comparação, umapesquisa do Ibiss (Instituto Brasileiro de Inovações em Saúde Social) de 2009 afirmava que soldados ganhavam cerca de 800 reais mensais.

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A educadora Joana acha que, entre os moradores, quem mais está revoltado com a situação do Cpx tem sido os mais jovens. "Aí aqueles que têm menos estrutura muitas vezes acabam ficando fascinados pelo enredo de confronto do tráfico e se aproximando", atesta. A prevenção para alguns pais tem sido deixar os filhos em casa, enfurnados nas redes sociais ou vendo TV. Dependendo do local, nem soltar pipa na laje ou jogar futebol pode mais. A cuidadora Karina admite que sequer pode tomar seu banho de sol ou ficar tomando uma cerveja na varanda de sua casa, que fica perto da UPP Alemão, porque os tiroteios são constantes. "Eu tomo antidepressivo pra aguentar, já que minha casa tem sido furada praticamente todo dia por bala."

'A opção do Lula de acabar com qualquer opção comunitária aconteceu porque ele queria aliança com o PMDB. O que o Cabral quis, o ex-presidente deu. O Lula fez o pacto com o diabo', lamenta Maria Helena Moreira Alves.

De todas as sugestões de como resolver a situação da violência no Brasil, o elixir mais vendido da farmacopeia política brasileira tem sido a militarização. No entanto, antes da criação do projeto das UPPs, em 2008, havia um projeto de estabelecer um policiamento mais comunitário, voltado à promoção dos Direitos Humanos, que valorizaria os profissionais de segurança e a juventude, maior vítima da violência. Esse plano era o Programa Nacional de Segurança com Cidadania,o PRONASCI. "Contudo, quando o Sérgio Cabral virou o menino favorito do Lula, ele mudou tudo e inventou a UPP – e disse que tinha de invadir", destaca a socióloga Maria Helena Moreira Alves. "A UPP é um foco de infiltração militar."

Em Vivendo no fogo cruzado, livro de 2008, a estudiosa também se utilizou de desenhos em sua análise de comunidades que estavam recebendo as UPPs, inclusive o Cpx. "Queríamos ver as experiências que eles estavam tendo." Sete anos depois, ao ver os desenhos (resultado de um simples dever de casa proposto por uma professora de Geografia) que ilustram esta reportagem, a socióloga avalia que há um quadro similar àquele visto por ela em sua pesquisa. "Pode ter melhorado um pouco. Mas o fato [de] que ainda tem tiroteio e impunidade significa que os problemas persistem", diagnostica.

Nenhuma dessas paisagens atuais do Cpx pode fornecer respostas, mas apenas indícios de que algo não está bom na política de segurança do Rio de Janeiro. "Eu só não quero ser mais um", comenta uma dos vários jovens temerosos de ser o próximo Eduardo ou Uanderson, que deram suas vidas pela paz. Nesses cinco anos, ela tem cobrado um preço muito alto.

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