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Música

O “Hipco” É a Trilha Sonora da Juventude Pós-Guerra de Monróvia

Um som legitimamente liberiano, cantado na língua local misturada com inglês (conhecida como “colloqua”) e enraizado nos medos, alegrias e no humor cáustico da juventude urbana e pobre do país.

Festival de hipco em 2013.

Faltam duas semanas para o Natal na Libéria e Monróvia, a capital antes devastada pela guerra, está num clima festivo. A rua principal, que passa em frente ao quartel-general da missão de paz da ONU, está envolta em luzes vermelhas, brancas e azuis, e os pedidos de suborno à beira de estrada de policiais e trabalhadores mal pagos da cidade mudou de “Uma água gelada para o oficial?” para “E meu Natal, hein?”.

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Alguns quilômetros além da fumaça dos exaustores e mercados do centro de Monróvia, cerca de dez mil liberianos se reúnem numa faixa de areia conhecida como “praia do Bernard”, assistindo a um show num palco de frente para o Oceano Atlântico.

Os últimos raios de sol iluminam os Nikes, as camisetas Calvin Klein e os óculos escuros Gucci falsificados que parecem ser o uniforme obrigatório entre a multidão. No palco, uma jovem chamada Peaches pula de um lado para o outro, jogando os braços para o ar e fazendo rap com um pesado sotaque liberiano. Uma placa de compensado atrás dela diz: “2013 LIB HIPCO Festival” em letras brilhantes.

“Hipco” é um estilo musical que emergiu das ruas de Monróvia alguns anos atrás. Um som legitimamente liberiano, cantado na língua local misturada com inglês (conhecida como “colloqua”) e enraizado nos medos, alegrias e no humor cáustico da juventude urbana e pobre do país.

O gênero tem alguma inspiração do rap e do RnB, assim como de outras cenas de música dance da África Ocidental, mas é seu caráter local que define o estilo. A música pode ser um pouco crua — os parâmetros de produção ainda podem ser considerados baixos pelos padrões modernos e o som ainda está evoluindo — mas, em seus melhores exemplos, esse é um dos gêneros mais inovadores na música africana moderna — otimista sem ser piegas, político sem ser autorreferente e sempre bom de dançar.

Enquanto a noite segue, mais alguns artistas apresentam as canções que ouvi nos pequenos rádios dos mototáxis em Monróvia. A segurança ao redor do palco é pesada, e vez por outra um bêbado ou membro mais ousado do público chega muito perto de um guarda-costas e é empurrado de volta ou golpeado com um cassetete. Finalmente, um cara alto e magro de bandana e regata preta sobe ao palco. O apresentador grita: “Vocês estão prontos para Takun J?” e o público enlouquece.

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Takun J se apresentando no festival Hipco.

Jonathan “Takun J” Koffa é um ícone produzido pela indústria musical em formação da Libéria. Ele é um “garoto da cidade” de Monróvia — nascido e criado num lugar que, até pouco tempo atrás, era definido por barões da guerra e instáveis pacificadores nigerianos. A juventude da cidade vê nele uma história de sucesso: alguém que não precisou de um diploma de escola norte-americana ou um cargo público para se tornar alguém.

“Hipco é nossa maneira de nos relacionarmos uns com os outros”, ele diz, enquanto bebe um copo de uma bebida amarga vermelha chamada Mandingo Bitters. “Estou tentando falar sobre meu país e quero que as pessoas entendam o que estou dizendo, por isso trago isso para essa língua materna.”

Sentados num pátio no centro da cidade que ele converteu em bar improvisado, Takun explica os valores da música local. “Os artistas falam com um sotaque americano e as pessoas dizem: 'o que esse cara está falando?'”, ele ri. “O que precisamos na Libéria é continuar fazendo o que estamos fazendo e reconhecer nossa própria cultura. Acho que isso é mais rápido do que tentar fazer rap como americanos, ser como um americano.”

Takun tem uma relação complicada com identidade e nacionalidade. Os EUA pairam sobre a vida na Libéria; o país foi fundado por escravos norte-americanos libertos sob a supervisão de uma organização comandada por brancos e sua bandeira é uma versão simplificada daquela das estrelas e listras. Enquanto muitos liberianos têm orgulho de sua conexão histórica com os EUA, eles também têm consciência de que foram negligenciados por seus fundadores distantes, e ressentem a arrogância da ideia de que a cultura norte-americana é de alguma forma melhor do que a deles. Na verdade, o hipco se afasta da crença de que o sucesso musical só pode ser alcançado quando se coloca um toque liberiano no som norte-americano, e não o contrário.

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Takun em Monróvia.

Takun estourou depois do sucesso de “Police Man”, em 2007, um ataque contundente à corrupta força policial local. Logo depois do lançamento, ele teve uma lição de liberdade de expressão pós-conflito quando policiais apareceram em um de seus shows. “As pessoas perguntavam: 'quem é esse pekin [gíria local para garoto] que canta aquela música da polícia?'”, ele relembra. “Eu estava no camarim quando as luzes do prédio se apagaram. Depois de dez minutos, a eletricidade voltou e, do nada, a polícia estava dentro do bar. Comecei a tirar fotos e um deles me deu um tapa. Lutei com eles e eles me jogaram num camburão, me levaram para a delegacia e lá uns sete policiais me bateram.”

Depois que uma multidão ameaçou incendiar a delegacia, o comandante da polícia ordenou a soltura de Takun, permitindo que ele retornasse ao show, ainda usando sua camiseta ensanguentada e com o rosto machucado por causa da surra.

Takun lançou seu primeiro álbum em 2012, e ele tem praticamente dominado as rádios liberianas desde então. O título do disco, My Way, é uma visão realista de Monróvia, apresentando faixas dançantes com batidas rápidas, um pouco de reggae liberiano e mais comentários sobre corrupção e negligência do governo.

Independente de qualquer coisa, ser músico na Libéria é difícil. Enquanto as elites e empresas estrangeiras prosperam, a grande maioria do país é pobre, e o dinheiro é curto para os artistas. Promotores cautelosos dão preferência a gêneros que sabem que vão atrair multidões, como música dance nigeriana ou azonto de Gana. Quem financia esse tipo de coisa ainda não reconheceu o potencial do hipco como produto de exportação regional, deixando na mão os artistas que esperam mais apoio local para a cena. “Uma coisa que me deixa muito puto é quando eles dão prioridade de shows a artistas estrangeiros”, diz Takun. “Se você traz um artista de outro país para um show aqui e não me valoriza, é como se você não respeitasse sua própria cultura.”

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Mas, apesar do baixo retorno financeiro e do ambiente complicado, o hipco floresce numa cena artística baseada no apoio da comunidade. Nos últimos anos, sucessos locais começaram a competir com D'banj, Akon e grandes artistas internacionais que antes dominavam as paradas de sucesso na Libéria.

Takun se apresentando num bar de Monróvia.

Na sociedade fraturada da Libéria, artistas hipco como Takun são os porta-vozes de uma geração difamada. Criminosos dos tempos de guerra — como o bizarramente ainda popular Charles Taylor — contavam com adolescentes para lutar e matar, e muitos deles ainda vivem na cidade, eternamente em busca de trabalho, traumatizados e sozinhos. Takun tem simpatia por eles. “Não os culpo”, ele diz. “Eles foram atraídos por pessoas com dinheiro. Quando você não consegue sustentar sua família — sua mãe está doente, seu filho não tem nada para comer — e alguém chega com a grana que você precisa e diz: 'Ei, pegue essa AK-45 — vá lá e lute, mate aquelas pessoas…', não é culpa sua.”

A mensagem de redenção da música da Takun tem um forte apelo para essa geração de liberianos, assim como para aqueles que crescem sob a sombra do longo conflito interno do país. Por exemplo, desde que a guerra civil trouxe um aumento na violência sexual, estupros e outras formas de abuso sexual continuam sendo os crimes mais cometidos na Libéria. Isso fez Takun escrever um conto fictício — “Song for Hawa” — sobre uma garota que é abusada sexualmente. Não é raro ver garotas caindo de joelhos e chorando silenciosamente quando ele canta essa música nos shows.

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O país está tentando escapar de seu passado. E mesmo que a eleição da vencedora do Prêmio Nobel, Ellen Johnson Sirleaf, como presidente e uma década de armas silenciosas sejam um sinal de que o país está voltando à sua estabilidade pré-conflito, nem tudo é como deveria ser. A corrupção é profundamente enraizada, é quase impossível encontrar trabalho decente e a imensa fortuna adquirida pela elite do país não transborda para o lado dos que mais precisam. Artistas como Takun são os primeiros a expressar a resistência, o humor e a frustração da vida nesse ambiente.

Takun J no palco do festival Hipco.

De volta ao festival Hipco, as estrelas brilham no céu e um cheiro forte de maconha vem da estrutura de concreto rachado que serve de área VIP. Takun está sob os holofotes e levanta os braços. Depois de uma longa pausa, ele começa a recitar a letra do maior sucesso de seu disco, “My Way” — um apelo por dignidade e mais poder para o liberiano comum. O público grita, cantando a letra da música.

“Meu objetivo não é manter o hipco na Libéria, mas sim, levá-lo para mais lugares”, ele diz depois do show. “Estou tentando afiliar isso em diferentes dimensões para garantir que a música liberiana seja ouvida de todas as maneiras.” E ele pode estar perto de seu objetivo. Com o acesso à tecnologia se expandindo por toda a África, permitindo que cada vez mais artistas utilizem as redes sociais e a promoção via internet, parece que gêneros como o hipco estão prestes a dar o passo da cena regional para a nacional — quem sabe até para a internacional.

Artistas como Takun ocupam, no momento, um nicho estranho e frustrante, alimentando um movimento de fundo de quintal enquanto sonham com um hit que ultrapasse fronteiras e impulsione sua música para novas alturas. Mas, por enquanto, eles fazem um bom trabalho inspirando os fãs locais; enquanto milhares de vozes na praia de Bernard cantavam junto a música final de Takun, a Libéria parecia um lugar de celebração e renovação, não de pobreza e guerra.

@unkyoka