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Música

Ó Só Pra Eternidade

Não sei muito de rap, mas em tudo nessa vida busco conhecimento, então quando aconteceu de ele vir à redação, aproveitei pra alugar o cara e fazer ele explicar essa história.

Facebook do Kleber Gomes, segunda às 15:59: “difícil explicar a importância dessas músicas pra essa nova geração de MCs”. Por acaso esse é o Criolo, que tinha postado umas faixas do Consciência Humana e Sistema Negro. Não sei muito de rap, mas em tudo nessa vida busco conhecimento, então quando aconteceu de ele vir à redação, aproveitei pra alugar o cara e fazer ele explicar essa história. Pro registro, o que ele disse tá aí embaixo. Assim, a gente almoçou junto e tal, mas continuo não me sentindo à vontade pra soltar um “a rua é nóis” a plenos pulmões. Mas isso é coisa minha. Agora diz, você ainda quer mesmo ser menos rua que eu?

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Explica.
Não sei se eles [a nova geração] não dão a devida importância porque em primeiro momento eu acredito que uma grande parte dessa turma simplesmente não conhece. Então fica difícil dar importância praquilo que não existe. E os tempos são outros, né?  Antigamente você curtir rap era realmente algo inimaginável pra família e pros amigos. Até quem tinha uma namorada ou paquera ficava meio complicado manter, porque era uma coisa muito ligada à marginalidade mesmo, não à marginalidade estética – que também já o era por natureza, né? – mas a essa lance de estar fora das regras e de contestar as regras. Só que não desse jeitinho doce que eu estou falando, na pedrada mesmo. E aí às vezes eu fico pensando assim, né, o quanto essas músicas foram importantes pra mim ou quanto elas me acompanhavam pra passar as horas do dia. E o quanto de força elas me davam. E tinham muito a ver, eu escutava e elas tinham muito a ver com o meu cotidiano, meu jeito, as coisas que eu queria. Aquilo me alimentava, me dava força. E o MC também naquela época era… Acho que era realmente um cara como se cuidasse de uma igreja, que cuidava de suas ovelhas. Ele era um cara seguido. Não por twitter. Os seguiores eram por outras coisas. As questões ideológicas não tinham tanta frescura, era algo simples, algo que podia ser tocado. Temos um problema e o problema é esse, não precisava ficar falando muito porque a grande maioria passa por esses problemas. Por isso que rola essa dificuldade. Eu acredito que as dificuldades continuem existindo, mas o modo de as pessoas se comunicaram é outro, e o rap pegou uma proporção enorme assim, ele é algo popular mundialmente, né? E exacerbou essa ideia que era só pra alguns segmentos, alguns temas. Hoje você vende carro importado, vende refrigerante, vende creme dental com essa estética de rap, né? Então dá pra você perceber mesmo que algumas coisas mudaram.

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E se tivesse que explicar a importância do Consciência Humana?
O Consciência Humana, por exemplo, em 90 eles já abordavam essa questão do crack, né? E hoje, devido ao crack bater na porta da classe média, isso é abordado de forma mais contundente. Existem campanhas de saúde, né, esse serviço público. Mas essa desgraça toda já vem acontecendo. Eu sei que não é um tema gostoso pra se falar na hora do almoço, peço desculpa, mas vamo aí, né? Então eles abordavam determinadas coisas que hoje a gente fala “nossa, mas como?” Mas como? Já há 20 anos acontece. Muito mais que repressão policial e esse problema da química, existe uma coisa desde que o mundo é mundo que é a pessoa adorar a ignorância do outro. Né? Eu acho que é isso que tá ferrando as coisas, e eles, do jeito deles, mostravam isso. Só que, como falei, de um modo sem frescura. Então quando eu saia da minha casa – eu moro numa rua que já foi uma das mais perigosas do meu bairro – e ia até a minha escola e escutava as músicas deles falando dessas questões de violência urbana, problema com drogas… É… Você entendeu por que é real? São as mesmas ruas, as mesmas histórias. Consciência Humana, Sistema Negro – que fala da importância de você ter sua postura, de acreditar em você… Por isso eles foram importantes pra mim, porque escutei isso quando tinha 14 anos de idade. Imagina? Num ambiente que a gente chama de bairro mas poderia ser chamado de campo de concentração. A educação só foi aberta pra geral por causa da revolução industrial, quando precisavam de mão de obra um pouquinho mais qualificada pra apertar os botões das máquinas. Então daí você já tira. E aí você cresce dentro de um barril de pólvora que pode explodir a qualquer momento. Essas músicas, por mais duras que fossem, na verdade elas refrigeravam nossas almas, porque você via que tinha alguém falando por nós. Não era só a gente que tava passando por aquilo. Então jovens de vários lugares da cidade e do estado passavam por isso também. Por isso que acho que é meio complicado, porque hoje a um clique você pode conversar com um cara que você curte o som dele. Se ele estiver online. Mas até que ponto a gente tem algo a dizer, né? E por que dizer? E descobrir, no final de tudo, que apenas falamos. Não dizemos nada. Por isso que surgiu esse lance de eu colocar esses… Relembrar alguns amigos e passar aos jovens um pouco disso aí. Apenas quis dividir um pouco das coisas, enfim, uma tentativa. Uma tentativa de algo positivo.

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E tá acontecendo isso? Muita gente não conhece?
Eu acredito que tá rolando isso, mas não por maldade. Eu acho que o rap já fez tanta coisa bonita, já teve um posicionamento político tão forte, mas não estão cuidando da sua memória. Igual cuidam da memória, por exemplo, de um grande atleta, de determinado segmento esportivo. Não tem isso com os nossos pensadores. Quem são os nossos pensadores? Até onde eles podem chegar se eles tiverem apoio? Nós tivemos aí um presidente que era metalúrgico, cara. Isso era inimaginável. E até que ponto um cara que cantou rap nos anos 80 e 90 poderia até hoje estar influenciando o poder público com suas ideias, pra algo positivo pra população? Então não tô falando que “ah, o pessoal é café com leite”. Não é isso que tô falando, mas tô falando que existem coisas fortes que podem ser positivas na vida dessas pessoas, já que existe uma fala de que eles abraçaram o rap como seu lifestyle, né? É só esse contraponto que eu faço.

Por que a memória do rap não tá sendo preservada?
Porque o cara do rap sempre teve que fazer tudo, e ninguém consegue fazer tudo. Nem o cara mais inteligente e mais rico do mundo. O que o pessoal reclama hoje que você tem que ser o produtor, que tem que ser o cara que fecha o show, o cara que escreve, vai lá, canta, volta e depois vai cuidar do cachê, isso sempre existiu. Desde sempre. A gente sempre foi dum lance de arregaçar as mangas e fazer, então não dá pra se fazer tudo, e não dá pra se registrar a história sendo que você nem enxerga que tá fazendo história. Você tá fazendo aquilo que seu coração pede, você não imagina que um dia vai ser referência. Os caras faziam essas músicas, cantavam essas coisas, porque eles tinham uma necessidade gigantesca de reclamar e falar das coisas erradas que estavam acontecendo. Jamais eles iam imaginar, “Ah, nós fazemos parte da história”. Isso é só 20 anos depois. Hoje já não tem mais desculpa, têm muitas pessoas que dizem que amam o rap, que vivem isso, que têm acesso a várias tecnologias, que se tiver um pingo de sensibilidade vão perceber que tudo está se renovando e que existem pessoas que valem a pena você fazer um registro. A gente não tinha dinheiro nem pra ir no outro bairro cantar, cara. Tinha que pegar carona. Que dirá pra registrar nossas coisas? Era um luxo ter uma instrumental pra cantar. Então a sociedade, os meios de comunicação, deram um boom muito gigante de dez anos pra cá. Muito brutal. Então acho que isso, de uma certa forma, influencia o que tá posto hoje e o porquê de não ter registro antigamente. Quando tá no avião não dá pra tirar foto se eu to pilotando ele.

E quais músicas te marcaram mais desses grupos? Se tiver que destacar?
Ah, fica difícil, porque cada um tem um jeito de cantar, aborda de modo diferente as coisas. Fica difícil. Tem que ser uma de cada, porque sentimento não dá pra recortar.

Beleza. Mais alguma coisa?
Não. Só obrigado mesmo. Valeu. Só isso. Esqueci de agradecer.