A Maré Rainha
​Arte: Koren Shadmi.

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A Maré Rainha

Um truque particular da Lua, o clima e a proximidade entre a Terra e o Sol puxaram a maré até a Quinta Avenida, meio quarteirão além do normal.

Um truque particular da Lua, o clima e a proximidade entre a Terra e o Sol puxaram a maré até a Quinta Avenida, meio quarteirão além do normal. As autoridades transmitiram um alerta, então Jordyn ficou sabendo que deveria esvaziar o porão antes da hora. O proprietário foi esperto e selou a base da casa anos atrás — tudo bem —, mas não havia muito o que fazer com as caixas de papelão e futons antigos. Eles precisavam ficar acima da linha da maré, ou virariam sucata.

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Sua namorada, Mia, parou no primeiro andar para respirar, com uma tumba despedaçada em mãos, diversos álbuns da família de Jordyn. O peso abrandou por um instante enquanto ela descansava, apoiada no balaustre.

"Deveríamos jogar isso fora", disse Mia. "Você digitalizou tudo há anos."

"Ah, mas não é a mesma coisa", Jordyn tinha dito, e não era.

Agora, ela estava sentada de pernas cruzadas, na cama delas, enquanto Mia tomava banho. Havia uma pilha de álbuns sobre o edredom, ao lado, e um em seu colo. Ela estudou a legenda de cada foto, a letra cursiva delicada, nomes e datas e piadas internas, a maioria incompreensível. As fotos foram tiradas com celulares e impressas com cuidado, um anacronismo até mesmo para aquela época. A avó pressionou a caneta vigorosamente quando escreveu, e Jordyn podia sentir os entalhes sob a tinta ao passar a ponta dos dedos sobre as páginas. O álbum tinha cheiro de pó e cola velha e um toque preocupante de mofo.

Jordyn havia copiado uma delas — tirou foto de uma foto, encontrou um lugar em Bushwick que ainda oferecia pequenos serviços de revelação, comprou uma moldura prateada, de segunda mão, em um bazar do Brooklyn, e colocou o retrato sobre a cômoda de madeira, ao pé da cama. Sua avó havia tirado as fotos décadas antes, quando sua mãe ainda era uma garotinha e o canal de Gowanus raramente se atrevia sobre as ruas.

Na foto, uma pequena versão sorridente da mãe de Jordyn estava sentada nos degraus da entrada da casa de seus avós. Era quase uma cópia da própria Jordyn: cabelo preto encaracolado, sardas nas bochechas e nos ombros nus. A casa era de tijolos amarelos, com barras de ferro branqueadas ao redor das janelas e um pequeno jardim de flores aninhado entre a escadaria da fachada e os degraus para o porão. Seus avós compraram a casa nos anos 70 por pouco dinheiro e, na época da fotografia, esnobavam o prospecto com razão. Na época, poderiam ter vendido por um milhão de dólares para construtoras, que alegremente a substituiriam por um amontoado de prédios estreitos.

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Pararam de usar o porão após o Furacão Oscar. O Furacão Andrea arruinou as cortinas e o carpete do primeiro andar, e foram forçados a vender a casa por pouco mais do que custaria um carro novo.

Agora, Jordyn morava no alto da colina, ali perto. A casa amarela da foto não era muito grande — dois andares e um porão —, mas na maioria dos dias, o andar de cima dava na lagoa. Ela gostava de observar a casa de seu telhado, no fim da tarde, quando a luz morna e dourada do sol a deixava amanteigada e romântica. Era assim que soava nas histórias de sua mãe, de quando ela ainda estava viva e as contava.

Os canos estremeceram quando Mia desligou o chuveiro. Ela saiu do banheiro numa nuvem de vapor, com seu corpo moreno e troncudo nu, pingando, enxugando o cabelo.

"A lua está dando as caras", disse ela.

Jordyn fechou o álbum em seu colo e o colocou no topo dos demais. A cama rangeu quando ela sentou na beirada, vestiu os chinelos e se levantou; ela esticou os braços sobre a cabeça e seus músculos se reassentaram.

"É uma Maré Rainha", disse. "Mais alta este ano. Bem mais alta."

Mia enfiou a cabeça numa camiseta de algodão.

"Podemos beber algumas cervejas no telhado."

"Sério? No inverno?"

Mia deu de ombros.


Jordyn abriu a porta para o apartamento delas, e então se virou para trancá-la, encaixando a corrente no fecho de tal forma que a porta ficasse entreaberta. Elas moravam no último andar; subiram um lance íngreme de escada, de mármore, rumo ao telhado. Duas garrafas tilintavam nas mãos de Mia, que as segurava pelo gargalo, entre os dedos.

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O inverno estava suave, mas pequenos montes de neve podre escondiam-se sob as sombras, e Jordyn esfregava os braços por baixo do moletom à medida que caminhava sobre o telhado de alcatrão. Através do vapor de seu hálito, ela enxergava uma cidade de tijolo e pedra e água. Atrás dela, estendia-se o bairro de Park Slope, com sobrados de alto escalão subindo o morro até Prospect Park, Flatbush, Windsor Terrace, Crown Heights. Vizinhanças que ficavam desertas nesta época do ano, quando todo mundo fugia para os condomínios na Geórgia.

À sua frente, um arquipélago.

Agentes imobiliários passaram a chamar o lugar de "Praia de Gowanus", o que Jordyn achava bem enganoso, mesmo para os padrões de imobiliárias. Pelo menos quando diziam que Red Hook era "A Veneza do condado de Kings", isso evocava uma imagem condizente: moradias urbanas manchadas de água, passarelas de madeira flutuantes, caiaques de plástico amarrados a bodegas de esquinas, mulheres bronzeadas em vestidos de verão vagando em pequenos botes com motores de popa, o Rio East contornando batentes de segundos andares. "Praia de Gowanus" implicava areia, talvez pedras lisas marítimas, quem sabe até a margem lamacenta de um lago. Não havia nada de "praia" no asfalto despedaçado, ou no concreto carcomido pelas marés, ou nos esqueletos de vergalhão expostos, enferrujados, desmoronando, ou nas carcaças inchadas de móveis baratos, de estudantes, emergindo de apartamentos afogados.

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O vento estava úmido e pesado. Jordyn tremeu de frio e observou, abaixo, as ondulações da água cinzenta. A maré havia engolido a casa de seus avós por completo.

Mia abriu as garrafas na mureta baixa da fachada. Elas permaneceram ali, observando a cidade, a lua cheia no céu azul noturno, as ondas. Uma embarcação de lixo navegava nas ruas abaixo, pausando a cada meio-quarteirão para os prédios reforçarem seu carregamento. Jordyn ouviu a sirene de um barco de bombeiros, mas não conseguiu avistá-lo, nem a fumaça.

Tomou um gole da cerveja, que estava quente e tinha gosto de lúpulo e cardamomo.

"Parece que a maré passará da Quarta Avenida", ela disse. "Pensei em sair para uma caminhada."

Mia mordeu os lábios.

"Vai estar escuro."

"A maré não sobe assim há anos."

"Mesmo assim."

Mia acalentou sua cerveja em silêncio por um instante, o tempo mensurável por assobios de gole.

"Quando foi sua última dose de vacina contra tétano?"

"Dois anos atrás. Lembra? Caí das docas de Madison."

Mia suspirou.

"Use os sapatos de mergulho, tá?"

As sirenes esmoreceram. Jordyn caminhou até espaço quente ao lado do corpo de Mia e colocou um braço em torno de sua cintura grossa, enfiando a mão no bolso mais longínquo do casaco de Mia.  "Eu me viro", disse ela.


A ansiedade mal deixou Jordyn dormir, e ela acordou antes do despertador tocar. Ela sonhou que usava o antigo sistema de metrô, do qual sua mãe costumava falar. Vestiu-se sob a luz âmbar dos postes da rua, vestiu um capote sobre a roupa de mergulho, calçou os sapatos especiais. Beijou Mia na testa e fechou a porta do quarto.

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Mia deixou a lanterna grande carregando antes de se deitarem. Jordyn pegou a lanterna e seu chaveiro, trancou o apartamento, desceu as escadas em silêncio de solas de borracha e andou até a calçada vazia. Não havia mais água, mas as raízes das árvores estavam enlameadas, congeladas.

Quando Jordyn desceu a ladeira rumo à Quarta Avenida, abaixo da linha normal da maré, teve que desviar de troncos encharcados, pedaços de isolamento térmico velho, latas de refrigerante enferrujadas, sacolas de plástico atadas em nós — o rastro cotidiano de detritos urbanos deixado para trás pela maré alta. Ela passou por baixo de um calçadão elevado, beirando o leste da avenida, uma atração turística que algum prefeito construiu quando ela era criança. Os destroços de uma gaivota estavam presos a um entulho.

À frente do calçadão, ruas despedaçadas dissolviam-se numa espécie de cascalho negro, grosso, pedaços de asfalto misturados com a areia e a terra e as pedras que um dia os sustentaram. Pelo caminho, os tubos de aço e cilindros de concreto da antiga infraestrutura estavam expostos — linhas de gás, redes de água, esgoto, eletricidade. Buracos negros, redondos, encontravam-se abertos, lacunas na trilha, repercutindo os sons líquidos do subsolo. A maioria das tampas de bueiro foram roubadas por caçadores de troféus anos atrás. Jordyn mediu as passadas com cuidado, de olho no chão.

Assim que chegou aos prédios do outro lado da avenida, ela parou para olhar para trás. Somente alguém muito tolo ou desesperado comeria algo retirado da lagoa de Gowanus, mas o calçadão estava repleto de restaurantes de frutos do mar, tentando tirar proveito da atmosfera marítima. Sobre as portas e janelas reforçadas, os letreiros de neon dos restaurantes ainda piscavam para ela, atravessados por fiações.

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Os canais da lagoa estavam acesos, mas não muito bem, e a maré baixa deixava o cenário estranho, perturbador. Os prédios pareciam mais altos do que ela se lembrava; barcos ancorados na água rasa agora descansavam no solo.

A lagoa havia recuado alguns metros aquém da avenida. Jordyn ligou a lanterna e caminhou com cautela, um passo de cada vez, atenta para não inclinar seu peso até que estivesse segura da pisada.

A água estava gelada. Depois de meio quarteirão, os dedos dos pés já estavam dormentes, mas tudo bem. As solas dos sapatos eram fortes o bastante para pregos e vidro, e não faltava muito.

Sob o brilho de LED da lanterna, a casa de tijolos amarelos parecia quase branca. Por um instante desorientado, ela se perguntou se não havia descido a rua errada, ou esquecido de que lado ficava a construção. Alguém — um ladrão, um proprietário interino — havia retirado as barras das janelas do primeiro andar. E os tijolos estavam listrados; cada linha era uma marca do progresso vagaroso da lagoa morro acima.

Mas os números negros de ferro, pendurados sobre a porta, ainda eram os mesmos. Era a casa sim, recuperada da maré, ao menos por esta noite. Da escadaria da entrada, sua mãe testemunhou a vinda da maré.

Jordyn estava com a água até a cintura. Ela ainda sentia um pouco os pés, e com eles apalpou o chão sob a lagoa negra, procurando o primeiro degrau. Ao encontrá-lo, ela subiu a escadaria irregular, a água escorrendo de sua roupa de mergulho, pingando da bainha saturada do casaco, até enfim sentar na fachada, de costas para a porta. Seus pés ainda estavam imersos, e as ondulações no tornozelo faziam cócegas.

Ela secou as mãos no cabelo, e então tirou seu telefone de um bolso à prova d'água do sobretudo. Ela o segurou à sua frente, encarou o olhinho preto da câmera e sorriu.


Esta remessa é parte da seção Terrafo​rm, nosso novo lar online para ficção futurístca.

Tradução: Stephanie Fernandes